Renascimento

O rádio relógio tocou no horário de sempre, mas parecia ser três horas mais cedo, no mínimo. Luiza sentia-se pesada, era como se o colchão a imobilizasse. Não, não era uma preguicinha matutina qualquer. Já vinha sentindo isso há algum tempo. E parece que estava piorando. Um desânimo crescente, um descontentamento sem causa, uma tristeza indefinida. Difícil descrever.

Iria chegar atrasada de novo, paciência. Uma conversa franca com o chefe deveria resolver o caso. Paulo sempre fora um sujeito compreensivo, e os 15 anos de casa como secretária do departamento de vendas – conduta irrepreensível – mais outros cinco como seu braço direito – eficiência à toda prova – certamente também contariam.

Vestiu-se com um esforço quase sobre-humano, o primeiro trabalho de Hércules do dia. Um dia como todos os outros, mas que parecia mais difícil que os da semana passada e, tudo fazia crer, seria menos penoso que os da semana vindoura.

Luiza deixou-se cair no banco do seu carro. Olhou o vidro traseiro para acertar o retrovisor e quase sorriu. Carro de mulher tinha que ser hatch, muito mais feminino. Sedan era coisa de homem, meio sisudo, nada a ver com sensibilidade delicada. Um conceito que agora parecia não ter mais, assim, tanta importância, tal como muita coisa em sua vida vinha perdendo a importância que já tivera. Sua própria vida lhe parecia sem importância alguma atualmente. O pior é que não havia uma causa distinguível. Não era propriamente solidão, pois sempre vivera sozinha. No entanto, sentia-se só agora, muito só, estranhamente só.

Ligou o carro, acionou o piloto automático do seu cérebro e, vinte e cinco minutos, depois estacionava na garagem do prédio comercial. Deixou a chave com o manobrista, acompanhada de um sorriso mecânico. Entrou no elevador, subiu até o 14º andar e foi direto para a sala do compreensivo Paulo.

Desculpe o atraso.

É “desculpe-me pelo atraso”, Luiza, disse ele querendo fazer graça. Em outros tempos ela teria rido dessa sua mania de português correto, mas agora não conseguia nem mesmo esboçar um sorriso gentil.

Não sei o que está acontecendo. Não estou muito bem…

Paulo olhou seriamente para ela.

O que você está sentindo, exatamente?

Não sei… um desânimo, uma falta de vontade de tudo, não sei se entende. Muito estranho. Não vejo graça em nada. Sinceramente, queria mesmo é estar na cama agora, com o cobertor até os olhos e a cortina fechada.

Parece um quadro de depressão. Já vi casos semelhantes, na minha família inclusive. Faça o seguinte, Luiza: vá para casa, descanse, marque consulta com um psiquiatra e só retorne quando estiver em tratamento e se sentir melhor. Não se preocupe com nada. Essa crise deixou as coisas meio paradas por aqui, você sabe.

Obrigada. Mesmo, viu?

Agradecimento sincero, mas sem muita ênfase. Um tímido sorriso ameaçou desenhar-se no rosto abatido, sem progredir. Luiza virou-se e, sem falar com os demais colegas, voltou para casa.

Deitada no sofá, com a televisão ligada, abriu o manual do plano médico. Ligou para o primeiro médico de alma que encontrou. Agenda lotada, só disponível em três semanas. O segundo da lista só poderia atender dali a três meses. E assim foi, de um em um, até que uma providencial desistência a permitiu marcar consulta para a manhã seguinte.

Durante a consulta já recebeu o diagnóstico certeiro, sem necessidade de exames complementares: depressão moderada. “Moderada? Como assim, moderada? O que sente então quem está com depressão profunda?…” Enquanto ruminava esses pensamentos, ficou sabendo que seu problema era ocasionado por um singular desbalanceamento químico no cérebro. Os níveis de alguns neurotransmissores estariam anormalmente baixos nas sinapses. Uma recaptação indesejável dessas substâncias pelos neurônios estava dificultando a troca de impulsos elétricos entre eles. O resultado disso era a depressão.

Médicos normalmente não dão informações assim tão técnicas aos pacientes, mas fora a própria Luiza que insistira. Queria entender o que estava acontecendo. “É como uma bateria de carro que fica sem água entre as placas”, complementou o médico, apontando para o hatch de Luiza, um pouco sujinho, visível através da janela.

Luiza foi para casa com uma receita de antidepressivo de última geração e a recomendação de fazer exercícios físicos. Decorreriam pelo menos umas duas semanas até que começasse a sentir alguma melhora, talvez mais. Até lá, os sintomas poderiam até piorar, mas ela deveria resistir e não deixar de tomar o medicamento na dosagem recomendada.

Atravessou com bravura o período crítico. Depois, de fato, sentiu alguma melhora. Não que a alegria de viver tivesse voltado, longe disso. Mas, pelo menos, se sentia meio anestesiada. A tristeza não lhe pesava tanto, embora ainda estivesse ali dentro, quase palpável. O desânimo arrefecera um pouco, sem contudo dar lugar ao entusiasmo. Dava para ir levando. Mais alguns dias e estaria de volta ao trabalho.

Quando finalmente retornou, Luiza até já conseguia sorrir e conversar quase animadamente com os colegas que, a seu pedido, ainda não sabiam da causa do seu afastamento.

Por favor, Luiza, veja o que dá pra fazer nesse caso, disse Paulo certo dia, entregando-lhe um papel com umas anotações à mão. Fiz algumas sugestões.

Desde que ela havia retornado ao trabalho, Paulo estava sempre incentivando-a a desenvolver novos planos para a empresa.

Vou trabalhar essa ideia com cuidado.

É “vou trabalhar nessa ideia”. Transitividade indireta. E se você soltar outro “a nível de” leva suspensão de uma semana! Risos de ambos os lados. A vida seguia a uns 70% do normal para os dois amigos.

Era imenso o número de pessoas que padeciam de depressão. Isso Luiza constatou logo, numa simples pesquisa na Internet. Havia grupos de ajuda, terapias alternativas, comunidades em sites de relacionamento, e livros, muitos livros sobre o assunto. Ela acabou lendo alguns deles. E, dentre esses, quase todos falavam da necessidade de manter uma atitude otimista em relação à vida, de se cultivar pensamentos positivos.

Ela bem que tentou. Mesmo. Mas os resultados não foram os esperados, ou, melhor dizendo, não apareceu nenhum resultado, nada. Continuava a viver razoavelmente bem com o medicamento, mas o ânimo de antes nunca mais retornara. Esse negócio de forçar bons pensamentos lhe parecia justamente algo meio forçado, antinatural. Talvez por isso não desse resultado. Pelo menos com ela não estava funcionando.

Luiza se conformou. Dava para viver assim, e já estava bom demais… Meses se passaram nessa toada. O médico até diminuiu a dosagem do medicamento, mas nem pensar em ficar livre dele, isso ele havia dito com todas as letras.

Mesmo sem sofrer como antes, Luiza se tornara mais introspectiva, mais pensativa. Havia um vazio dentro dela, não tão dolorido como antes, é verdade, mas estava lá, alguma coisa meio oca. Continuava sentindo-se só, sem porém associar esse sentimento à quietude que tanto prezava. Esquisito. Difícil acreditar que tudo isso era produto de uns neurônios travessos que se recusavam a mandar impulsos elétricos uns para os outros, com a desculpa de que os neurotransmissores – um tipo de motoboy neurológico – haviam entrado em greve. Medicamentos antidepressivos, afinal, nada mais eram também do que eletricistas moleculares, e meio marretas, diga-se de passagem, já que nunca conseguiam resolver de vez o problema.

Quase um ano depois do recrudescimento dos sintomas da depressão e do início do tratamento, Luiza ainda pensava e repensava na sua situação. Num sábado à noite fez um rápido balanço de sua vida. O saldo não lhe pareceu muito animador. Se ela deixasse esse mundo agora, no que ele teria se tornado melhor com a sua passagem?…

“Calma, Luiza, é muita pretensão imaginar que você teria o poder, ou o dever, de tornar o mundo um lugar melhor. Você foi e é uma boa pessoa, e isso é tudo. Já está bom demais.” Certo., tudo bem, talvez fossem apenas pensamentos de um depressivo em tratamento, mas, de alguma maneira, ela achava que poderia, sim, que deveria fazer algo mais enquanto estivesse por aqui. Mas o quê?

“Vou fazer algo simples, sem pretensões. Vou apenas tornar-me uma pessoa um pouco melhor, mais simpática, só isso. Sim, não custa nada.”

Com surpresa, Luiza constatou que essa simples resolução de meio de ano lhe dava acesso a múltiplas possibilidades. Começou cumprimentando o seu João-porteiro com um sorriso mais aberto. Aberto e não forçado, pois de fato queria que ele tivesse um bom dia. “Bom dia, seu João! Esfriou, não? Final de outono e esse vento gelado. O senhor melhorou do joelho?” Seu João abriu um largo sorriso e discorreu alegremente sobre os derradeiros efeitos de sua última crise de gota.

E assim Luiza foi fazendo com as outras pessoas de sua relação, como se fosse um treinamento, um condicionamento da personalidade. Não precisava ser amigo, nem mesmo conhecido. Tratava todos muito bem, mostrava real interesse. “Menina, você não cansa de passar tanto produto nessa maquininha?”, perguntou certo dia à moça do caixa do supermercado. A jovem, surpresa, explicou que já estava acostumada, que no começo, sim, ficava um pouco cansada, mas agora não mais. Quando se despediram, o sorriso da moça não se desvaneceu de imediato, mas permaneceu por longos minutos, e ainda retornou vez por outra durante o dia.

Coisas pequenas passaram a ter um significado maior: um passarinho se banhando numa poça d’água, uma criança carregando um balão, um abraço de duas amigas que se encontravam casualmente. Começou a ver poesia em tudo. A vida parecia um poema. Não cabia a nós, as personagens, encontrar as rimas certas em cada situação?

Certo dia, no estacionamento do Shopping, encontrou uma senhora exasperada ao celular. Pneu furado. A ajuda ia demorar. Luiza lhe propôs encarar o desafio. Vencida a leve hesitação inicial da desafiada, ambas puseram mãos à obra. Levaram exatos 57 minutos para efetuar a troca, aí incluído o tempo em que se revezaram em pular sobre a chave de roda, para garantir a segurança da operação. Terminado o trabalho, já eram amigas de infância, com um evento conjunto agendado para o próximo sábado.

E assim seguia a nova vida de Luiza, de descoberta em descoberta, de vivência em vivência. Os colegas de trabalho comentavam a transformação visível que ela deixava transparecer no trato cotidiano. Nunca fora antipática, claro que não, mas agora andava especialmente solícita, sempre com um sorriso fácil, não estudado, a emoldurar suas palavras, independentemente do assunto. Ela mesma acabou contando aos colegas que tivera um episódio de depressão, mas que já se sentia muito melhor.

Puxa, esses remédios de hoje fazem milagres, não é mesmo D. Luiza?

É verdade, Ricoleta, é verdade! Olhar de ternura para a moça do café, e um sorriso franco pelo seu típico sotaque argentino.

Algo havia mudado dentro de Luiza. Era alguma coisa diferente, boa, como um bálsamo numa ferida. E ela se atreveu a chamar esse sentimento de paz. E procurou entender o que havia provocado isso.

“O remédio certamente ajudou. Não fosse ele eu não teria tido nem ânimo de tentar uma mudança qualquer em mim. Mas o que realmente fez a diferença foi justamente essa mudança tão simples. Tenho certeza disso, embora não entenda bem o processo.” Com esses pensamentos, foi dormir. Em paz.

Mais alguns meses e Luiza foi dispensada da medicação. Estava de volta à vida. Integralmente. Era como se tivesse nascido de novo. Com base na sua vivência particular, com seu reconhecimento de até então, procurou aperfeiçoar cada vez mais o seu modo de ser em relação aos outros. O interesse que manifestava aos que estavam à sua volta era verdadeiro, irradiava sinceridade. Nada de calculado. Com o tempo notou que a paz que habitava dentro dela ganhara um companheiro: a alegria. Mais um pouco e ambos os sentimentos se fundiram num terceiro. Luiza tornara-se uma pessoa feliz. Não buscara a felicidade conscientemente, mas fora encontrada por ela.

Vamos almoçar no chinês hoje, Luiza?, convidou Paulo.

Vamos, só um momento. Preciso terminar isso aqui. Me dá uns minutos.

É “dá-me uns minutos”. Não se pode iniciar uma frase com pronome oblíquo átono, impossível. Dar-te-ei três minutos.

E eu dar-te-ei um grampeador na cabeça!

Saíram juntos, Paulo assobiando uma música da MPB e Luiza cantarolando baixinho. A vida, afinal, tinha mesmo sentido. E nem era tão difícil assim descobri-lo.

Roberto C. P Junior

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