2.2 A Inumerabilidade dos Mundos

E o que dizer dos mundos inumeráveis?

“… em verdade, eu não me entrego a fantasias; e, se erro, não creio errar intencionalmente; falando e escrevendo, não disputo pelo simples amor da vitória em si mesma, mas por amor da verdadeira sabedoria e por dedicação à verdadeira contemplação eu me afadigo, me sacrifico, me atormento.” (56)

Essa é a imagem de Giordano Bruno: um espírito perscrutador das Verdades Universais, inconformado com os dogmas e com as verdades “imutáveis”, sempre em busca de si mesmo e da unidade de todas as coisas. Para ele, o Ser Criador é a Grande Unidade, para onde tudo converge; desde os átomos até as mais longínquas estrelas; está em tudo e tudo reflete o seu poder.

Bruno compreende o homem – na linguagem atual poderíamos dizer: ser humano – sempre em busca do Divino Objeto: a Verdade.

Procura desmistificar a crença nas verdades imutáveis, construída pelo ser humano, divulgando o Princípio Hermético de que tudo está submetido à transmutação. Através da Teoria da Inumerabilidade dos Mundos Habitados, contesta a crença de que a Terra seria o centro do Universo, indicando, através da razão e da intuição, a veracidade da sua teoria. Tirou-nos da solidão cósmica em que estávamos encerrados colocando-nos como participantes de uma Vontade Universal, que na linguagem pitagórica se traduziria como a necessidade de “ganharmos excelência”; ou seja, tornarmo-nos tão perfeitos e ordenados quanto o Universo. Esta teoria coloca o ser humano numa posição de duplo reconhecimento: diante da grandeza do Universo e dos limites humanos, além de levar em consideração as suas potencialidades.

A teoria da Inumerabilidade dos Mundos nos remete à discussão sobre o Infinito. Em “Acerca do Infinto, do Universo e dos Mundos”, Bruno inicia o diálogo primeiro com o seguinte questionamento: “Como é possível que o universo seja finito?”.

Esta pergunta encerra muitas reflexões e discussões acerca da concepção que se tem do Criador e da criação.

Para os que crêem que o universo saiu de mãos infinitas, como é possível concebê-lo de forma finita? Como é possível limitar a Criação dentro de nossos estreitos conceitos?

A partir de tais questionamentos, Bruno procura fundamentar a sua visão de Infinito, à qual relaciona as idéias de dilatação e limites.

Como demonstrar a finitude do Universo, como querem os representantes do poder temporal? Como impor limites ao Ilimitado? Ao que Bruno argumenta que não podemos compreender o infinito pelos sentidos, porque este não pode ser objeto dos sentidos. Por isso, ao recorrermos a eles, devemos fazê-lo com cautela. Os sentidos não servem para testemunhar sobre tudo; não servem para julgar nem para condenar. Devem ser vistos como um caminho a seguir, pois o seu testemunho é apenas parcial. Por isso, os sentidos não podem compreender nem perceber o Infinito. Para Bruno, é mais difícil imaginar o nada do que pensar o Universo como um ser Infinito e Imenso.

Aqui o Universo é apresentado como um ser que não possui limites. Poderia ser definido como ilimitado. Por outro lado, ainda no mesmo diálogo, Bruno o apresenta como pleno, porque não termina no vácuo ou no vazio e está sempre apto a receber algum corpo, como os inumeráveis mundos, estrelas e sóis. Para ele, não é apenas razoável que o Universo seja pleno, mas necessário. A idéia de perfeição também é apresentada como mais um argumento para a compreensão da infinitude do Universo: “Portanto, da mesma forma que este espaço pode, tem podido ser perfeito e é necessariamente perfeito pela continência deste corpo universal, como você afirma, assim também pode e tem podido ser perfeito todo o outro espaço.” (58)

Para ele seria um mal se o espaço que acolhe este mundo não fosse pleno, ou seja, seria um mal se o nosso mundo não existisse. A idéia de plenitude está intimamente associada ao existir. A conseqüência direta desta idéia traduz-se em sua dimensão infinita e nos seus mundos inumeráveis. Outra forma de compreensão do Infinito reside na pluralidade ou inumerabilidade dos mundos, apresentada por Bruno, a partir da Teoria Heliocêntrica. Sendo o mundo e o espaço, no qual este mesmo mundo se move, um bem… a mesma razão determina que deve existir um bem infinito, pois, onde existe um bem finito pela razão e conveniência, existe o Infinito por absoluta necessidade. Ou seja, a razão e a conveniência determinam a finitude; a necessidade, a infinitude. Para ele, a excelência infinita se apresenta melhor em indivíduos inumeráveis que nos numeráveis e finitos.

Bruno identifica a Excelência Infinita com a Excelência Divina, ao afirmar:

“Assim, por causa dos inúmeros graus de perfeição, que devem explicar a excelência divina – incorpórea através dum modo corpóreo, devem existir inúmeros indivíduos, que são estes grandes animais (um dos quais é esta terra, mãe generosa que nos gerou, nos alimenta e não nos receberá de volta) e para os conter faz-se necessário um espaço infinito.” (59)

Ao que podemos concluir que o Infinito possui um atributo divino e, em assim sendo, não é ocioso, não é limitado, não é estéril, por isso criou um Universo Infinito e sem limites, de forma graciosa e bela.

Há uma diferença entre a infinitude do Ser Criador em Deus e a “infinitude” do Universo? Para Bruno, o Universo é “todo infinito” porque não possui limite, termo ou superfície; não é “totalmente infinito”, porque qualquer uma de suas partes é finita, bem como os seus inumeráveis mundos. O Criador é “todo infinito” porque não pode ser definido por nenhum termo e todos os seus atributos o fazem Uno e Infinito; é também “totalmente infinito” porque está inteiramente em todo o mundo, em cada uma de suas partes de forma infinita e totalmente. A infinitude do Universo, ao contrário, reside no todo e não nas partes. Compreendido desta forma, o Universo é para ele um reflexo da Mente Divina, uma criação de um “Pai fecundo, Gracioso e Belo”. O Altíssimo, é portanto, a Causa, o Princípio de todas as coisas, e é Uno. (60)

O Universo é infinito e imóvel, por isso não tem necessidade de um motor. Os mundos nele contidos são infinitos (inumeráveis); todos se movem por um princípio interno, que é a própria Alma do Universo. Estes corpos giram em razão de sua própria alma, movimento interno. O primeiro princípio, quieto e imóvel, porque perfeito, dá aos inumeráveis mundos o poder de se movimentarem, tendo cada um a razão da mobilidade e da mudança.

O movimento possui dois princípios ativos: um finito e outro infinito. O primeiro em razão do objeto finito que se move no tempo (inumeráveis mundos, imperfeitos); o outro, que age segundo a razão da Alma do Mundo (movimento), ou seja da Divindade, que está em tudo. Também a Terra e todos os corpos que se movem possuem dois movimentos. Considerar tais corpos movidos por um Poder Infinito é o mesmo que considerá-los não movidos “porque mover num instante e não mover é a mesma coisa” (princípio passivo do movimento, quietude). O princípio ativo existe no tempo e na sucessão dele mesmo; é diferente da quietude. A partir desses dois princípios, Bruno conclui que o Criador move todos os corpos e dá a possibilidade de movimento a tudo. (61)

O atributo da inteligência está ligado à criação do Universo e dos inumeráveis mundos, seguindo a trajetória do pensamento bruniano. Vida é o que anima o Universo e os mundos. A partir do movimento, não há separação entre matéria e espírito, pois existe uma única força e poder que a tudo anima.

Para Bruno, todas as coisas têm alma, por mais “defeituosas e imperfeitas” que se apresentem. (62) A Essência Divina anima e dá vida a todas as coisas. O Criador é o Primeiro Princípio e a Primeira Causa. Tudo o que existe vem dEle, mas dEle se diferencia. (63) A isso segue-se uma “ordem de prioridade” (de acordo com a natureza ou segundo a dignidade) à qual os cabalistas designam por Atributos de Deus (ou Sephirots), que exprimem a Eternidade, a Extensão Infinita e a Substância.

Como definir então esses atributos?

De acordo com os cabalistas, a Eternidade gera o tempo, que pode ser compreendido como passado, presente e futuro; a Extensão Infinita dá origem às medidas de comprimento, largura e profundidade, que definem o espaço, e a substância reflete a matéria e os seus estados sólido, líquido e gasoso. (64) Estabelecendo uma correlação entre a Tradição Judaica e a Teologia Cristã, podemos considerar que a Eternidade, a Extensão Infinita e a Substância compreendem, respectivamente, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Podemos estabelecer a mesma relação, a partir da Filosofia bruniana, quando consideramos O Infinito, O Universo e os Mundos, que podem ser identificados com o tempo, com o espaço e com a matéria. Consideramos, portanto, que, na Filosofia expressa por Giordano Bruno, em O Infinito, o Universo e os Mundos, encontramos pontos convergentes com a Tradição Judaica e com a Teologia Cristã. (65)

Para Bruno, o Criador está presente no mundo mas não se confunde com ele:

“Afirmamos que Deus é o primeiro princípio, porquanto tudo o que existe vem depois dele, seguindo uma certa ordem de prioridade e de posteridade, ou de acordo com a natureza ou segundo a dignidade. Dizemos que Deus é a primeira causa, visto que todas as coisas se diferenciam dele, como o efeito se diferencia do que o efetua, e a causa produzida se distingue daquilo que a produz”

Encontramos nesta passagem a idéia de um Ser que age no tempo, no espaço e na matéria e ao mesmo tempo está acima de tudo isso: Imanente e ao mesmo tempo Transcendente. Um ser de quem “não se pode dizer nada maior.” (66)