5. Conclusão

A superação da ordem medieval apoiada no “teocentrismo”, faz ressurgir a preocupação com o homem.

Importa dar outro sentido à vida: o antropocentrismo substitui o “teocentrismo” e elege como o centro de sua preocupações, a relação dos homens entre si e com a natureza.

A superação do trabalho servil acentua as preocupações cotidianas, dá ênfase ao trabalho e reforça o individualismo, à medida em que se trabalha não mais para a sociedade de ordens e nem somente para a Glória de Criador, ma para satisfazer as necessidades pessoais.

Esta concepção de mundo oriunda da burguesia, se faz sentir nas artes (Poesia, Literatura, Escultura, Pintura) e nas ciências (Química, Física, Matemática, História). As descobertas científicas e a criação artística vinham acompanhadas de um novo sentimento e de novas sensações diante do mundo: a contemplação.

Em Heller, compreendemos esse deslumbramento do homem moderno diante do mundo “A humanidade descobriu a magnificência, as ‘maravilhas’ do seu própri mundo.” (149) Emergem os ideais de liberdade e dignidade humana. Há uma exaltação pela natureza física e psíquica. O mundo não era somente um lugar de adoração porque Criação Divina, mas também podia ser explicado pela razão. A busca de sentido marca a relação entre o mundo físico e psíquico, que refletem respectivamente os fenômenos naturais e as relações humanas.

A busca do sagrado não exclui a preocupação com a vida cotidiana. A imanência não exclui a transcendência: Criador está dentro do mundo e ao mesmo tempo fora dele. Não pode ser explicado, mas se revela através “…de vestígios, como diriam os platônicos; de efeitos remotos, como dizem os peripatéticos; de vestes, como dizem os cabalistas… (150)

A terra é apenas mais um entre inumeráveis mundos. O que antes constituía uma verdade teórica – o geocentrismo -, passa a ser visto como “pura imaginação” ou “ilusão”. Os modernos destronam o geocentrismo e o “teocentrismo”, reforçados pelo poder político e religioso, e inauguram a era da razão e das descobertas científicas.

A idéia de história da Renascença pode ser identificada como um processo de criação contínua, no qual o homem é responsável pelo mundo. A existência humana passa a ter um novo sentido; a arte revela a explosão da vida profana e religiosa. Há uma inquietude espiritual que define o gosto pela descoberta.

Este período caracteriza sobretudo a busca de um caminho próprio, embora orientado pelo pensamento antigo. Entre tantas expressões artísticas, literárias e filosóficas, a interpretação da realidade une o místico e o racional. Homem e natureza se complementam. A noção de natureza é identificada pelo conjunto das coisas produzidas pelo movimento; entre estas coisas está a Terr (151), os inumeráveis mundos, ao lado de sóis e estrelas.

Há uma realidade mágica, racional, a que se integra o homem, agora visto e sentido como um ser histórico; um ser que busca compreender a si mesmo e o mundo no qual se move. É um ser de descobertas, de movimento, que pode transformar o presente e projetar o futuro. Está na história, mas pode transcendê-la; pode pensar um novo mundo: o mundo das “Utopias”; da “Cidade do Sol” ou mesmo da “Nova Atlântida”.

Inserido no Renascimento, o homem moderno amplia a consciência acerca de si mesmo e do mundo. Sente-se capaz de interferir no mundo através da ciência e artes em geral. Nas palavras de Shakespeare, citadas por Agnes Heller, podemos compreender o potencial criativo e transformador dessa nova visão de mundo:

“A verdadeira esperança é ágil, e voa com as asas da andorinha Dos reis faz deuses, e das criaturas medíocres, reis.” (152)

Essa nova atitude pressupõe conhecimento interior e a busca de auto-afirmação e confiança. Revela um fortalecimento psicológico que se reflete na percepção do mundo físico que passa a ser um objeto de exploração e contemplação humana. O homem moderno inicia um processo de superação da visão medieval acerca do mundo e atua sobre a natureza, objetivando melhorar sua condição de vida material. Através do trabalho e da utilização da técnica, o homem pode se apropriar das coisas por ele geradas. Impõe-se, portanto, sobre a visão medieval baseada na sociedade das ordens, a visão burguesa que se concretiza com o advento do capitalismo.

O homem moderno inaugura um novo tempo. O tempo de pensar a liberdade e de perceber o infinito. Nesse momento “o tempo e o espaço humanizam-se e o infinito transforma-se numa realidade social”. (153) Humanizar o espaço e o tempo significa atuar na história de forma consciente, objetivando modificar o mundo físico em função das necessidades humanas; retirar da natureza não apenas o necessário para a sobrevivência, mas acumular as riquezas de que ela dispõe.

Em contrapartida, o desenvolvimento das artes e das ciências possibilita a compreensão da natureza como Criação Divina e objeto da contemplação humana. A realidade social passa a ser influenciada não apenas por uma visão utilitarista da natureza, mas também por um deslumbramento e consciência do Infinito.

O Universo, a natureza e o ser humano, passam a ser considerados como expressões da Criação Divina. O Universo reflete o Poder Criador, a natureza é vista como o grande livro no qual estão expressas as Leis da Criação. Ao ser humano, cabe desvendar a natureza, compreender o funcionamento das leis universais e transformar a realidade social, objetivando a sua felicidade.

Encontramos na ética bruniana a busca dessa felicidade que somente pode se concretizar com a Liberdade. A Filosofia de Bruno parte de um amor heróico que considera o Ser Infinito e o Homem, o Universo e os Mundos. Um amor que arrebata o pensamento e lhe permite compreender a vida e a morte; o tempo e o espaço; o transcendente e o imanente; os diversos mundos e o Universo; a finitude e a infinitude.

Como enfatiza Bruno “… enquanto considerarmos mais profundamente o ser, e a substância daquilo em que somos imutáveis, ficaremos cientes que não existe a morte, não só para nós mas também para qualquer substância, enquanto nada diminui substancialmente, mas tudo, deslizando pelo espaço infinito, muda de aparência.” (154)

Bruno não foi ortodoxo. Como compreender o seu pensamento? À luz de pensamentos heterodoxos, como o Hermetismo e a Cabala Judaica. E por que exatamente Hermetismo e Cabala? Bruno estava convicto de que os escritos antigos, ligados ao Judaísmo e ao Cristianismo Primitivo – Hermetismo e Cabala -, continham partes da Verdade que tanto buscava. Porque as duas correntes tratavam da infinitude Universal e da natureza como um ser animado pelo sopro Divino. Era a mística dos magos e dos alquimistas, a busca da verdadeira sabedoria e contemplação que o fascinava. Dizia ele:

“Somente uma coisa me fascina: aquela em virtude da qual me sinto livre na sujeição, contente no sofrimento, rico na indigência e vivo na morte. Aquela em virtude da qual não invejo os que são servos na liberdade, sofrem no prazer, são pobres nas riquezas e mortos em vida, porque trazem no próprio corpo os grilhões que os prendem, no espírito o inferno que os oprime, na alma o erro que os debilita, na mente o letargo que os mata.” (155)

Em busca da Verdade e da Liberdade, precisou se afastar daquilo que o oprimia e o tornava morto em vida. Afastar-se da verdade e abrir mão da liberdade era o que ele não pretendia. E assim aconteceria, se Bruno tivesse seguido o caminho da ortodoxia filosófica e religiosa. Não teria nos falado do Infinito e do Universo com “amor heróico”; teria visto Copérnico apenas como um matemático e não como um pensador ligado ao Hermetismo; não teria ouvido a voz de Nicolau de Cusa, que indicava o caminho da “Douta Ignorância”.

Por certo não teria enfrentado um julgamento e uma condenação e sim, chegado ao ápice de uma vida acadêmica e religiosa. Mas não foi essa a sua escolha… Não se contentou em cruzar os braços diante do que se lhe apresentava. Não negou a sua fé, ao contrário, ousou ampliá-la através de outras filosofias.

Sua prática filosófica demonstrou que a fé é racional e pessoal. Que é um bem individual. Assim sendo, pode ditar uma concepção de mundo. Procurou demonstrar que a razão pode andar de braços dados com a fé para guiar o homem na história, e que a intuição conduz o espírito para as alturas infinitas.

No século XVI, esse era um problema a ser resolvido. Hoje, o “problema de Bruno” está “invertido”: a razão, transformada em valor supremo pelo homem (razão instrumental) rejeita a explicação do mundo a partir de elementos subjetivos, e sacrifica no altar do dogmatismo científico ou academicista as concepções filosóficas acerca da posição do homem no mundo e a sua relação com as Leis da Criação.

A ética bruniana, fundamentada na Infinitude Universal e na compreensão da natureza como uma expressão do Criador, traduz-se em seu aspecto social, pela tolerância e liberdade indicada por Yates (1964) (15) como “… direito de dizer em todos os países o seu pensamento, desconsiderando as barreiras ideológicas.”

A tolerância pressupõe, ainda, a convivência pacífica e harmoniosa das religiões entre si, e das ideologias políticas. Por isso, lembramos que Bruno se contrapôs às guerras religiosas, bem como às disputas políticas que compreendiam o poder como um fim em si mesmo.

A Cosmologia do nolano, bem como a sua exigência ética, que pressupõe uma transformação radical das individualidades e das hierarquias políticas e religiosas, não podem jamais ser compreendidas sem a mística: uma religiosidade profunda que valoriza a vida e considera não apenas a Terra, mas todo o Universo Infinito, povoado por outras humanidades. (157)

A grande inspiração de Bruno era a Natureza e o Universo… Contemplando-os, Bruno trilhava o caminho da Sabedoria e da Verdade, convicto de que nada perece, mas somente muda de aparência, permanecendo neste mesmo Universo Infinito. Sua religiosidade profunda e fundada na esperança, considera que esta Terra e tudo o que nela existe, renovam-se continuamente. Tudo muda, nada perece. As coisas vivas apenas mudam de aspecto, mas continuam como essência e como espécie. Considerando a ligação de Bruno com o Hermetismo – que tem suas raízes históricas ligadas ao Egito – Bruno tinha convicção na imortalidade e na pluralidade dos mundos habitados.

A concepção religiosa de Bruno não estava desligada da atitude política, mas lhe dava outra significação. É certo que, em nossos tempos, existe a liberdade religiosa, pelo menos formalmente, se abstrairmos os conflitos étnicos e religiosos em algumas regiões do planeta. (158) Entretanto, a liberdade proposta por Bruno vai além da escolha de um credo religioso. Consiste na busca da espiritualidade como um instrumento de transformação pessoal, com desdobramentos sociais definidos pelo amor heróico à Verdade e pela liberdade.

A esperança nunca é vã, como não é vã a Filosofia que tem como fundamento a Verdade, a Sabedoria e a Justiça.

Em que aspecto os problemas e questionamentos contemporâneos encontram ressonância na Filosofia bruniana?

Os problemas são inúmeros e as soluções muitas vezes parecem estar longe. Problemas religiosos, étnicos, sociais, políticos e econômicos.

Não existem fórmulas… deveria existir decerto, a boa vontade em resolvê-los. Ela existe?

Além do poder econômico e político, poderemos encontrar a resposta. Conseguiremos ultrapassar esta fronteira? Conseguiremos construir uma sociedade fundada na tolerância, na justiça e na reverência a todas as formas de vida?

As soluções encontram-se somente em uma corrente filosófica? Consideramos que não há somente um caminho a seguir. As várias correntes filosóficas presentes na História da Humanidade indicam caminhos distintos que encontram convergência numa concepção ética fundada na tolerância, na liberdade, na justiça, no amor à sabedoria e na reverência pela vida.

Decerto a Filosofia bruniana também pode responder a inúmeros questionamentos das sociedades contemporâneas, porque alicerçada na convergência de várias correntes de pensamento – Hermetismo, Cabala, Pitagorismo, Orfismo, Cristianismo - e na Liberdade.

Além dos desafios políticos e sociais, podemos relacioná-la também com a Ecologia, visto que, a partir da idéia de um Universo Pleno, considerando a Terra como um organismo vivo, Giordano Bruno indica também o caminho do reconhecimento da presença do Criador neste mundo material, através das suas Leis.

A compreensão do mundo como um organismo vivo nos conduz ao respeito à vida em todas as suas formas, principalmente à vida planetária. O Criador se revela ao mundo através das suas leis inscritas na Natureza. Nesta concepção, a vida passa a ser compreendida como um valor inestimável e está presente em todo o Universo, não apenas em nossa esfera.

Seres humanos, animais, plantas, microrganismos, pequenos e grandes seres da natureza, rios, lagos, cascatas… todos fazemos parte da Criação. A vida está circunscrita a todo o Universo e isso não pode ser ignorado. O amor heróico à Verdade pode nos possibilitar a compreensão de que todas as formas de Vida, tanto quanto os seres humanos, são detentoras do direito à Vida e à Liberdade.

Inspiradas em Giordano Bruno, reafirmamos a visão antidogmática e heterodoxa encontrada em todos aqueles que buscam a Verdade de forma sincera e heróica, expressa no Tao-Te-King:

“Quem se ergue às alturas e sem desejos,
Enche de silêncio o coração.

E ainda que todas as turbas ruidosas assaltem o homem isento de desejos,
Ele habita em profundo silêncio, contemplando, sereno, o louco vaivém,
porquanto, tudo que existe, é um incessante vir e voltar, um nascer e um morrer.

O que retorna volta ao Imperecível. Quem isto compreende é sábio. Quem não o compreende é autor de males. Quem é empolgado pela alma do Universo alarga o seu coração. E o homem de coração largo é tolerante, e o tolerante é nobre. O homem nobre cumpre a ordem cósmica.

E quem cumpre esta ordem se identifica com o Tao, o Infinito.
É imortal como Tao e não subjaz a destino algum.” (159)