A Missão do Salvador

A Necessidade da Vinda do Messias

Se observarmos atentamente os fundamentos das grandes religiões monoteístas, verificaremos que elas apresentam uma característica comum: todas, sem exceção, ensinam que o Criador dos Mundos – em suas diversas denominações – é perfeito, a própria perfeição.

Disso se depreende então que tudo quanto Ele fizer, todos os Seus atos, terão de ser também necessariamente perfeitos, efetivados dentro da mais absoluta lógica e exatidão, como decorrência direta dessa Sua perfeição intrínseca. Portanto, não seria nenhum acinte, nenhuma arrogância desmedida, se as Suas criaturas procurassem compreender a lógica inerente aos atos divinos, ao contrário, essa disposição demonstraria um interesse legítimo pela Vontade perfeita de seu Criador.>

Certamente nenhuma criatura boa pensaria em fazer conscientemente algo que desagradasse a Quem lhe outorgou a vida. Por isso, ao se deparar com qualquer fonte de informações que alegadamente tenha provindo do seu Criador, ela deve esforçar-se ao máximo para compreendê-la acertadamente, deve empregar nisso toda sua capacitação. Isso significa fazer uso não apenas do raciocínio, mas principalmente da intuição, que é a voz do espírito. Em outras palavras, ela tem de sentir a verdade patente das informações com que se depara; estas têm de calar fundo em seu coração. Tal fonte não pode naturalmente conter falhas ou lacunas, antes precisa encadear-se numa lógica absoluta, perfeita, já que provém da perfeição. Caso ela encontre algo que não se coadune com uma lógica perfeita, então não lhe restam senão duas possibilidades: ou ela mesma não está se esforçando da maneira correta para compreender a lógica divina, ou, então, aquela fonte de informações não provém diretamente do Criador, pois evidentemente Ele jamais daria alguma orientação errônea às Suas criaturas.

As religiões monoteístas possuem como cerne justamente essas fontes, que são seus livros sagrados. Esses livros têm sua origem numa Palavra revelada, que em seguida toma a forma de Escritura sagrada. Os cristãos dispõem da Bíblia, um conjunto de 66 livros (sem contar os deuterocanônicos) divididos em duas partes, escritos por cerca de 40 autores num período aproximado de 16 séculos, e do qual já foram impressos mais exemplares do que qualquer outro livro na história humana. (1) Esse conjunto de obras literárias é apresentado como sendo a Palavra de Deus inspirada, e por essa razão tido por muitos cristãos como inerrante, infalível e perfeito. Desse modo, todos eles têm não somente a prerrogativa mas até o dever de procurar compreender a Palavra consignada nesses textos, para que possam abranger a coerência que necessariamente tem de estar embutida nela.

O Novo Testamento da Bíblia traz relatos da passagem de Jesus, o Filho do Deus Altíssimo, sobre a Terra. Esse acontecimento constitui a base desse conjunto de livros, e será nosso ponto de partida para examinar com lógica e acuidade os conceitos ali expressos.

Durante essa nossa jornada pelos meandros bíblico-cristãos iremos ver de tudo. Vamos nos deparar com recantos encantadores e abismos insondáveis, paisagens exuberantes e desertos áridos; cruzaremos com andarilhos idealistas, com quem trocaremos alegres cumprimentos, para logo em seguida esbarrarmos numa gente mal-encarada e mal-intencionada. Veremos o que é belo e o que é feio, o útil e o nefasto, alegria e tristeza. Quando a viagcoem tiver terminado, poderemos fazer um balanço do caminho percorrido. Teremos saído enriquecidos da expedição se, durante o trajeto, tivermos aproveitado para tirar fotos nítidas daquilo que realmente interessa à criatura humana: os verdadeiros ensinamentos provindos do Alto e, principalmente, se tivermos aprendido a gravar para sempre essas fotos no álbum de nossas almas, de modo que se tornem uma naturalidade no querer, no pensar e no atuar.

Repleto de siglas, pontuações e números que indicam os vários textos, capítulos e versículos extraídos da Bíblia, nosso livro se apresenta como um mapa-papiro, adaptado a fazer essa viagem no tempo por entre reinos e impérios. Essas indicações são necessárias, pois permitem a cada viajante verificar por si mesmo as passagens que mais lhe interessam, de modo a poder se aprofundar no tema tratado e chegar às suas próprias conclusões.

Vamos então dar início à nossa longa, instigante e algo acidentada viagem pelas Escrituras com a questão da vinda de Jesus. Quais foram as causas que motivaram a chegada do Salvador à Terra? Por que ele veio para cá justamente naquela época? Sua vinda poderia ter sido antecipada ou postergada, ou mesmo cancelada?

As doutrinas cristãs asseveram que Jesus veio até aqui para nos salvar e, segundo interpretação corrente, para redimir a humanidade do pecado original, cometido por Adão, através de sua morte na cruz. Essa concepção, porém, levanta de imediato algumas questões:

As dúvidas suscitadas pela análise mais acurada de uma passagem bíblica qualquer não devem ser encaradas como transgressões pecaminosas. Não são heresias nem propensões sacrílegas, ao contrário, constituem estímulos importantes, fundamentais mesmo, para se chegar à veracidade dos fatos. O espírito inquiridor é, antes de tudo, um espírito que se movimenta, condição incontornável para conservar-se sadio e útil na Criação. O movimento é justamente uma das leis da Criação, da qual trataremos mais à frente. É justamente a movimentação espiritual que torna possível a compreensão acertada das verdades bíblicas e sua aplicação no cotidiano, como, aliás, este próprio livro aqui procura fazer, no uso das inúmeras e valiosas citações bíblicas que compõem e emolduram o texto. Já no início do Cristianismo esse tipo de abordagem era tido como uma especial consideração e grande apreço pelos textos bíblicos. O apóstolo Paulo, por exemplo, faz em suas cartas nada menos que 104 citações formais do Antigo Testamento, mas sempre apenas daquilo que julga verdadeiro, como apoio às suas posições.

Um grande erro cometido pelos muitos intérpretes da Bíblia é considerá-la em seu sentido literal, ao pé da letra por assim dizer. E, dentre esses, os mais rígidos e intransigentes são os chamados fundamentalistas, que se esmeram nesse método interpretativo, acreditando estarem assim conservando a pureza pedagógica dos ensinamentos bíblicos.

Quem se vale desse “método” de interpretação tem, necessariamente, de abrir mão de toda a lógica, do contrário ficará retido já nos primeiros versículos de qualquer livro da Bíblia. Somente deixando totalmente a lógica de lado é possível crer em coisas inverossímeis. Isso, porém, não é nenhum sinal de grandeza, mas apenas da mais rija auto-ilusão. Tomemos, por exemplo, o relato do dilúvio e a estória de Noé, que nada mais é do que a reprodução da tábua XII de um texto muito bem conhecido da literatura mesopotâmica, composto pelo menos 1600 anos antes do Gênesis hebreu, denominado Épico ou Epopéia de Gilgamesh, do qual foram encontradas várias versões (cerca de noventa) e cuja difusão foi bastante ampla na Antiguidade. Nesse relato, o protagonista é o mesmo Noé da Bíblia e se chama “Utnapistin”. Vemos um paralelo na mitologia grega quando Zeus manda um dilúvio contra a humanidade, do qual Prometeu pôde advertir apenas seu filho Decalião, que consegue salvar-se num barco juntamente com a esposa, Pirra. A epopéia é um gênero literário bem definido nos tempos antigos, sempre glorificando o valor heróico e as proezas físicas. Os salmos 114, 136 e 137, por exemplo, também são epopéias.

Segundo o Gênesis, o resultado final do dilúvio foi este: “exterminados foram todos os seres que havia sobre a face da Terra, o homem e o animal, os répteis, e as aves do céu, foram extintos da Terra; ficou apenas Noé, e os que com ele estavam na arca” (Gn7:23). Quem toma essa sentença como literalmente verdadeira, demonstra não ter a mínima noção das condições de vida reinantes na Terra de matéria grosseira. Só a idéia de que todas as espécies de animais foram salvas na arca não se sustenta diante de qualquer análise lógica, pois crença cega e lógica são ferramentas mutuamente excludentes. Ou ficamos com uma ou com outra. O dilúvio foi uma chuva de grandes proporções que atingiu uma bem determinada região da Terra, onde se encontrava Noé que, de fato, logrou sobreviver ao construir uma arca muito resistente para si, sua família e alguns animais. E é tudo. Roselis von Sass narra o que realmente aconteceu em sua obra O Livro do Juízo Final.

Na tarefa de compreensão da Bíblia o fundamental mesmo é não ser fundamentalista. Já se definiu o fundamentalista bíblico como alguém sempre furibundo com alguma coisa... Infelizmente a realidade não está longe disso.

A interpretação bíblica literal, ou literalista, tão restrita, levada a efeito pelos fundamentalistas de hoje, é o mesmo de que se valia a Inquisição para condenar inocentes à morte, tendo sido utilizada também para obrigar o astrônomo Galileu a abdicar, em 1633, do conceito heliocêntrico de Copérnico (a Terra girando em torno do Sol), que ele defendia. A Igreja avalizava há séculos o sistema geocêntrico de Ptolomeu, e com base nisso ensinava que o Sol e todos os demais astros visíveis orbitavam a Terra. O movimento do Sol em torno da Terra era para ela biblicamente inequívoco: “[O Sol] principia numa extremidade dos céus, e até a outra vai o seu percurso” (Sl19:6). Por conseguinte, nosso planeta era o centro de tudo quanto foi criado e a Terra o astro mais importante de todo o Universo. É interessante observar que o conceito astronômico-eclesiástico então vigente, de absoluta supremacia terrena nos domínios cosmológico e religioso, continua imperando até os dias de hoje, pois não são poucos os que acreditam que a vida surgiu apenas aqui na Terra…

A comissão encarregada do julgamento de Galileu se pronunciou nos seguintes termos: “A doutrina de que a Terra não é o centro do Universo e nem é imóvel, e que se move, até mesmo por rotação diária, é filosoficamente absurda e teologicamente falsa.” Acreditava-se que se a Terra de fato girasse em seu eixo, os pássaros seriam atirados para fora do planeta, as nuvens ficariam para trás e as construções desmoronariam. Em termos teológicos, a teoria de Galileu foi condenada porque não se ajustava às evidências bíblicas do movimento do Sol em torno da Terra, em especial à sua espetacular freada sobre a cidade de Gibeom: “o Sol se deteve no meio do céu, em Gibeom, e não se apressou a pôr-se, quase um dia inteiro” (Js10:12-13).

Galileu acabou se retratando, mas nunca se conformou com isso no íntimo, como ficou demonstrado nesse desabafo dirigido por carta a uma amiga: “Poderá ser herética uma opinião que nada tem a ver com a salvação da alma? Ou acaso se poderá dizer que o Espírito Santo não quis nos ensinar verdades que são necessárias à nossa salvação? O Espírito Santo pretende nos ensinar como se vai ao céu, e não como vai o céu.” Diz a lenda que, logo após abjurar de suas convicções, por meio de uma extensa fórmula de retratação estabelecida pelo tribunal, o grande astrônomo teria sussurrado: “Eppur si muove” – “Contudo, se move”, aludindo ao movimento da Terra em torno do Sol, que ele sabia existir.

A condenação de Galileu deixou seqüelas em muitos campos. O grande filósofo e matemático francês René Descartes (1596 – 1650) chegou a iniciar um livro em que aceitava as idéias de Copérnico (1473 – 1543), mas quando soube que Galileu havia sido condenado por defender as mesmas idéias, Descartes, educado pelos jesuítas, prontamente abandonou o trabalho.

O próprio Copérnico, sabedor que suas teorias seriam consideradas heréticas, hesitou bastante em publicá-las. Até tentou se garantir a priori, dedicando sua obra ao papa Paulo III, mas sem sucesso. Seu livro só foi retirado do Index de livros proibidos pela Igreja no ano de 1835, e mesmo assim a desconfiança permaneceu. Quando, em 1839, uma estátua em sua homenagem foi inaugurada em Varsóvia, sua cidade natal, nenhum padre quis oficiar o evento, pois todos sabiam que o herege Galileu havia se apoiado nas idéias de Copérnico. Galileu só foi reabilitado pela Igreja em fins do século XX.

No entanto, no início desse mesmo século XX, mais precisamente no ano de 1909, a Pontifícia Comissão Bíblica do Vaticano, criada por Leão XIII em 1902, defendeu enfaticamente o “sentido literal-histórico” do trecho referente à Criação do mundo e do ser humano conforme estabelecido no Gênesis (cf. Gn1-3), propondo para designá-lo as expressões: “índole e forma histórica” e “narração de fatos realmente acontecidos”.

Todos os que fazem uso ou aceitam concepções assim tão limitadas dos textos das Escrituras fecham para si mesmos reconhecimentos mais elevados, que poderiam obter caso encarassem a Bíblia como um livro essencialmente espiritual, que trata de assuntos espirituais. Muitos dos esclarecimentos ali contidos simplesmente não podem ser tomados ao pé da letra, visto serem apresentados sob a forma de alegorias e metáforas, como explicações de fenômenos de natureza espiritual. Também fala indiretamente a favor disso as muitas falhas históricas dos livros bíblicos, indicando que o foco do leitor precisa estar voltado para o lado oposto, o dos ensinamentos espirituais, que só podem ser assimilados pela intuição. Tentativas de interpretação literal de metáforas de cunho espiritual não são mais do que meros exercícios de raciocínio, algo impossível de se obter êxito. O raciocínio não tem capacidade para alcançar o que se situa acima do terrenal em suas análises, visto que ele próprio é um produto do cérebro material. Por isso, comprime tudo quanto se depara em concepções por demais estreitas, irremediavelmente circunscritas ao âmbito do espaço e tempo terrenais.

O segundo grande erro nas interpretações bíblicas é considerar todos os textos como divinamente inspirados, portanto infalíveis em tudo, isentos de erros. Essa concepção, dita ortodoxa, não leva em conta as evidências de múltiplas alterações, supressões e acréscimos nos textos bíblicos, sem contar as falhas inerentes às traduções. Para todos os intérpretes bíblicos e adeptos que não atentarem a esses dois erros básicos, a Bíblia permanecerá para sempre um livro “fechado com sete selos” (Ap5:1).

Disso não fazem parte as inconsistências numéricas e de nomenclatura, que são realmente muitas, porque se trata de dados meramente marginais, minúcias sem nenhuma importância para o espírito humano. O problema só se torna grave quando essas e outras incoerências são atribuídas à Vontade do Onipotente. Essa última advertência é especialmente relevante para os textos do Antigo Testamento, onde freqüentemente vemos a imagem do Criador como um Ser irascível, temperamental, violento e ciumento, e ainda pessoalmente interessado nas inúmeras desavenças e guerras dos povos antigos de uma determinada e bem diminuta região da Terra.

São relatos desconcertantes, como o de que o Senhor teria colocado Abraão à prova, pedindo que imolasse seu amado filho Isaac, oferecendo-o em holocausto a Ele, o Todo-Poderoso (cf. Gn22:1,2). Ou quando o Senhor diz que vai endurecer o coração do faraó para ele não deixar o povo sair do Egito (cf. Ex4:21), e logo depois o castiga por ter um coração duro. Ou o ocorrido com o jovem Uzá, que apenas por ter tentado segurar a Arca da Aliança transportada num carro novo, para evitar que tombasse porque os bois haviam tropeçado, foi impiedosamente fulminado pelo Senhor (cf. 2Sm6:2-7). Ou ainda o caso do homem flagrado apanhando lenha em dia de sábado, que o Senhor condena a morrer apedrejado por toda a comunidade (cf. Nm15:32-36). Ou, então, o desapiedado envio de leões por parte do Senhor para matar samaritanos (cf. 2Rs17:25), acrescido das felicitações a quem se dispusesse a esmagar recém-nascidos contra uma rocha (cf. Sl137:9), selvageria de praxe naquela época para evocar simbolicamente o extermínio de um povo em suas próprias raízes. Isso tudo, depois de sermos informados que o Senhor mandara um “espírito maligno” atormentar Saul (cf. 1Sm16:14), e que ordenara ao profeta Ezequiel ficar deitado de lado por 390 dias para carregar a culpa de Israel (cf. Ez4:4,5).

Há também o episódio envolvendo os dois filhos de Aarão, Nadab e Abihu, sumariamente consumidos por um fogo enviado pelo Senhor, pelo crime de Lhe haverem oferecido um incenso não autorizado. (cf. Lv10:1,2). Os dois filhos do sumo sacerdote Aarão pagaram com a vida essa pequena falta, mas o próprio Aarão, artífice intelectual e material do bezerro de ouro, portanto do primeiro ato de idolatria do povo eleito, não sofreu nenhuma punição, sequer uma reprimenda. Pelo contrário. Continuou recebendo todas as deferências inerentes a seu elevado cargo, e o livro de Eclesiástico afirma até que o Senhor “aumentou ainda mais a glória de Aarão, atribuindo-lhe uma herança e partilhando com ele as primícias dos frutos da terra” (Eclo45:25).

Será que essas narrativas não dão o que pensar aos leitores da Bíblia, em particular os do Antigo Testamento? Como podem aceitar semelhantes arbitrariedades? Como podem supor que tais coisas tenham sido escritas sob orientação do Espírito Santo? Não seria tudo isso antes a prova, ofuscantemente clara, de que tais passagens não podem constituir, nem de longe, uma autêntica Palavra de Deus?... É incrível que possam ler impassíveis, sem nenhuma reação, essa outra declaração atribuída ao Senhor do Universo sobre as leis que dera a Seu povo eleito: “Eu mesmo lhes dei leis que não eram boas e costumes que não fazem viver” (Ez20:25). Ou, então, supor que Ele mesmo tenha criado as trevas e o mal: “Eu formo a Luz e crio as trevas, faço a paz e crio o mal. Eu, o Senhor, faço todas estas coisas” (Is45:7). Já quero avisar aqui que essa última frase não é do profeta Isaías, mas sim de um impostor, de quem falaremos no segundo volume dessa obra.

E o que dizer das imagens antropomórficas (características físicas humanas) e antropopáticas (características sentimentais humanas) que representam o Todo-Poderoso nos relatos bíblicos? A maior parte delas são blasfêmias inomináveis. O patriarca Jacó se envolve numa luta pessoal com Ele, corpo a corpo, do tipo briga de rua com pontapé na coxa, em que os dois pelejam a noite inteira até o alvorecer e… Jacó vence! (cf. Gn32:22-28). Nos primeiros livros da Bíblia, o Criador de Todos os Mundos é apresentado como um truculento marechal-de-campo de Israel, instalado numa barraca de campanha próxima ao acampamento, dando ordens militares a toda hora e mandando passar “a fio de espada” os povos subjugados (cf. por exemplo Dt20:13; Js6:21), e cuja ira só é aplacada com sacrifícios de animais inocentes, holocaustos esses designados de “coisa santíssima” (Lv6:18). Nos relatos dos combates de Israel faz-se menção até a um inacreditável “Livro das Guerras do Senhor” (Nm21:14), que afortunadamente se perdeu, senão seria mais um texto a nos despejar registros sangrentos, como se deduz dessas pequenas amostras, criminosamente atribuídas ao Senhor dos Mundos: “Assim diz o Senhor, o Deus de Israel: cada um ponha a sua espada sobre a coxa; e passai e tornai pelo arraial de porta em porta, e mate cada um a seu irmão, e cada um a seu amigo, e cada um a seu próximo” (Ex32:27); “Ouve, pois, agora a voz das palavras do Senhor: (...) Vai, pois, agora [Saul], e combate Amaleq. Não lhe pouparás nada. Matarás homens e mulheres, crianças e recém-nascidos, e também bois, ovelhas, camelos e jumentos” (1Sm15:1,3); “Eu [o Senhor] os ataco como uma ursa despojada de seus filhotes, rasgo-lhes o peito e aí os devoro como uma leoa” (Os13:8).

Tais crueldades serviram de justificativa para muitas futuras guerras religiosas, mas não podem fazer nenhum sentido para quem deixa falar sua intuição espiritual e procura refletir por si mesmo sobre tudo, a fim de chegar às próprias conclusões.

Muitos povos antigos acreditavam que, numa guerra, não era o exército mais forte que vencia, e sim o respectivo deus que velava por aquela nação. Daí essa concepção ter sido transposta para o povo de Israel, de quem o próprio Senhor do Universo seria então o guardião exclusivo. É incrível, mas o conceito é esse mesmo. Podemos confirmar isso pela versão contrária, elaborada pelos inimigos do Estado hebreu. O rei Mesa, do país Moabe, deixou registrada numa estela chamada “Pedra Moabita” uma homenagem ao seu deus Camos, porque “me propiciou a vitória sobre todos os meus inimigos”. Diz ele na gravação que outrora Israel havia subjugado Moabe porque o deus Camos estava irritado com o país, mas que depois Camos lhe explicou como vencer Israel. Moabe conta como matou sete mil israelitas e levou os objetos pertencentes ao Deus de Israel como oferendas a Camos. Quando era Israel que vencia os inimigos a estória era a mesma, com a diferença de que seus triunfos no campo de batalha ficaram registrados na Bíblia, como tendo sido proporcionados pelo Todo-Poderoso Criador.

Que semelhantes absurdos estejam presentes na Bíblia, não é surpresa para quem chega a conhecer o nível de adulterações e inserções nela praticadas ao longo dos séculos. Mas que tantas pessoas, nos dias de hoje, ainda possam aceitar credulamente esses textos fantásticos, sem nenhum questionamento, é simplesmente desalentador.

Não vamos aqui nem comentar as conotações grosseiras de cunho sexual, verdadeiramente constrangedoras, que se vê em vários trechos dos livros bíblicos. É compreensível que não se encontrem muitas abordagens e estudos sobre essas passagens, pois são por demais embaraçosas. Mas, como de fato não acrescentam mesmo nada a ninguém, também nós podemos passar muito bem sem elas. Basta-nos essa exortação paulina: “A Vontade de Deus é que vos afasteis da imoralidade sexual” (1Ts4:3).

Uma pessoa de espírito vivo e intuição aguçada jamais se deixará iludir por estórias desse tipo, por ditos fantasiosos, absurdos, criados por mentes tão fanáticas quanto tolhidas, que desconheciam por completo as leis que governam a Criação. Muito pelo contrário. Uma tal pessoa procurará discernir nos textos bíblicos, com o máximo cuidado e rigor, aquilo que permaneceu puro na transcrição da Vontade do Senhor aos antigos profetas, transmitida por elevados guias espirituais, e o que foi simplesmente inserido, deformado e torcido por mãos humanas. Ficará com o primeiro conjunto e rejeitará o segundo, sem pestanejar.

É um falso dilema imaginar que ou se deve aceitar tudo como está na Bíblia ou é preciso rejeitá-la integralmente. Rejeitar a Bíblia por inteiro é jogar fora a criança dos ensinamentos profundos juntamente com a água do banho das interpolações espúrias. Como em muitas outras situações relevantes da vida, também aqui a posição certa é a intermediária. Deve prevalecer como guia o caminho do meio, onde tomamos o que é certo e repelimos o que é errado, tal como o apóstolo Paulo ensinou aos Tessalonicenses: “Examinai tudo e guardai o que for bom” (1Ts5:21).

Vamos, pois, examinar tudo! Vamos guardar o que for bom de verdade! Façamos como os cidadãos de Beréia, que “a cada dia examinavam as Escrituras para ver se tudo era assim mesmo” (At17:11). Nesse áureo caminho do meio teremos possibilidade de encontrar ricos veios, onde se acham encravadas pepitas preciosas, apenas aguardando o diligente trabalho de escavação para serem colhidas e aproveitadas. Basta retirar o entulho que as encobre. Procedendo assim em relação aos textos bíblicos, estaremos cumprindo da maneira mais natural essa outra exortação de Paulo, desta vez dirigida aos Efésios: “Discerni o que agrada ao Senhor, e não tomeis parte nas obras estéreis das trevas” (Ef5:10). A Bíblia é um manancial de belos ensinamentos, desde que corretamente interpretados e aplicados, limpados de todas as falsas inserções.

Alguém vai logo dizer que “toda Escritura é útil para ensinar, para argumentar, para corrigir, para educar conforme a Justiça” (2Tm3:16). Sim, pura verdade, mas somente aquilo que pode ser chamado de Escritura, proveniente de legítima inspiração espiritual, que na seqüência do estudo pessoal nos torna de fato “capacitado e bem preparado para toda boa obra” (2Tm3:17). Tão-só esse tipo de Escritura é realmente útil, belo e proveitoso para os seres humanos! Não o restante, não os vários erros inseridos na Bíblia, os quais não se originam de nenhuma inspiração, mas tão-somente do raciocínio torcido de fanáticos religiosos de séculos passados. Em relação a essas invenções místicas e interpretações torcidas daí decorrentes, temos de cumprir mais essa outra exortação de Paulo: “Rejeita, porém, as fábulas mundanas e estórias de gente caduca” (1Tm4:7). Vamos, pois, andar com nossas próprias pernas, vamos deixar de lado fábulas mundanas e estórias caquéticas de gente caduca.

Todas as narrativas em que o onipotente Criador aparece como um Ser vingativo, perverso, rancoroso, têm de ser rejeitadas integralmente, pois Ele é a própria Perfeição, a própria Justiça viva, o Amor eterno. Como, então, o Senhor Deus, imutável de eternidade em eternidade em Sua perfeição absoluta, poderia mudar tanto de personalidade ao passar do Antigo para o Novo Testamento?… Que todas as imagens contrárias à Justiça perfeita e à sublime misericórdia do Todo-Poderoso são apenas falsificações humanas, mentiras pura e simplesmente, já fica patente nessa declaração do próprio Filho de Deus a respeito do Pai: “Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso” (Lc6:36). Misericordioso Ele é, era e sempre será. Nunca injusto.

E que a Vontade do Senhor era transmitida indiretamente, através de elevados seres para isso encarregados, pode ser reconhecido pelas fórmulas recorrentes (mais de 350 vezes nos livros proféticos) do tipo: “Assim diz o Senhor:…”, ou: “A Palavra do Senhor veio a [nome do profeta]”, por vezes seguida ainda de uma explicação: “A Palavra do Senhor veio a ele numa visão” (Gn15:1). Segundo o apóstolo Pedro, esses antigos profetas foram “homens que falaram da parte de Deus” (2Pe1:21). (2) Os textos apocalípticos são ainda mais claros a respeito, pois são tipicamente transmitidos ao vidente por um anjo ou outra personalidade, que esclarece o significado das imagens. Só nesse sentido se pode, portanto, falar de uma Palavra indiretamente inspirada, e apenas em relação àquilo que realmente permaneceu puro na Bíblia. Como diz a escritora Roselis von Sass, é uma arrogância incompreensível pensar que o onipotente Deus pudesse se aproximar de uma insignificante criatura humana…

Mas voltemos à questão da vinda de Jesus. Será que houve uma razão específica para Deus-Pai ter enviado Seu Filho à Terra naquele momento preciso da história humana? Para responder a essa pergunta, bem como às demais levantadas anteriormente, temos de retroceder até a origem propriamente do ser humano.

A história descrita no Gênesis são quadros de acontecimentos espirituais, indicativos da formação e desenvolvimento do gênero humano. Não podem, portanto, ser interpretados ao pé da letra, esmiuçados numa seqüência temporal segundo nossos sentidos de espaço e tempo. Afinal, não é tão desconhecido assim que o Paraíso descrito na Bíblia é uma região espiritual. Essa região, e ainda outras mais elevadas, foram aquelas propriamente criadas pelo Todo-Poderoso, “Aquele que constrói nos céus Suas altas moradas” (Am9:6). Só bem depois é que surgiram os diversos outros planos da Criação, em sentido descendente, dentre os quais se encontra o Universo material a nós visível com a nossa pequena Terra. O conjunto de todos os planos da imensa obra da Criação constitui as “muitas moradas da Casa do Pai” (Jo14:2), onde vivem e atuam criaturas segundo sua espécie e grau de desenvolvimento. A indicação de que a Luz surgiu antes do Sol (cf. Gn1:3,16) não é, pois, nenhum enigma como aparenta, pois essa Luz constituiu o irromper das irradiações criadoras, em sentido amplo, de onde se originou toda a imensa obra da Criação, e da qual a materialidade com seus astros perfazem apenas a última ramificação. A teoria da criação do mundo através do “Big Bang” é correta em si. Contudo, esse evento nada mais foi do que o último e mais fraco efeito da grande sentença “Faça-se a Luz!” (Gn1:3), que deu origem aos vários planos da Criação em ordem descendente e, por fim, fez surgir também os mais distantes e densos mundos: os da matéria fina e grosseira. Aqui, na materialidade, nós “apenas ouvimos um pequeno eco de Sua Palavra” (Jó26:14), a qual já criara antes os planos espiritual e enteal. (3)

O livro do Gênesis alude ao surgimento de planos supraterrenos com a indicação de que o Criador “separou as águas debaixo do firmamento das águas acima do firmamento” (Gn1:7). Essas águas situadas “acima do firmamento” estão situadas além do universo material a nós visível, sendo constituídas de uma espécie diferente. A palavra latina firmamentum designa o que é “firme”, visível e perceptível, usada no Gênesis para descrever o mundo material. A expressão “mundo” significa a parte material da Criação propriamente, tal como indicado no livro da Sabedoria, onde se diz que “a mão todo-poderosa criou o mundo da matéria informe” (Sb11:17). Quando de seu retorno ao Pai, Jesus disse: “Saí do Pai e vim ao mundo [matéria]; agora deixo o mundo e volto para o Pai” (Jo16:28). Enquanto estava na Terra, Jesus naturalmente era “a Luz do mundo” (Jo8:12), mas ele mesmo avisou expressamente: “Meu reino não é deste mundo” (Jo18:36).

Na verdade, o mundo material não foi propriamente criado pelas mãos do Todo-Poderoso, mas apenas se desenvolveu posteriormente do verdadeiro plano criado por Ele, o reino espiritual. Por isso, unicamente no “mundo”, isto é, na materialidade, podem existir pecado, culpa e expiação, decorrentes da imperfeição inerente a este que é o degrau mais baixo da Criação. Essas coisas poderiam existir aqui, mas não deveriam existir. O que aconteceu foi que “o pecado entrou no mundo, (…) e através do pecado, a morte” (Rm5:12). A morte espiritual é conseqüência desse pecado que entrou no mundo, num certo momento da história humana.

Além da materialidade, ou melhor, acima dela, existem vários outros planos ou “céus” de espécies correspondentemente diferentes. Nas versões mais fidedignas do Gênesis lemos que “no princípio, Deus criou os céus [plural] e a Terra” (Gn1:1). O apóstolo Paulo contou aos Coríntios ter sido “arrebatado até o terceiro céu” (2Co12:2). Os livros apócrifos também mencionam vários “céus” criados. Num desses textos, o patriarca Levi narra aos filhos uma visão na qual diz ter divisado água entre o primeiro e o segundo céus. Outros relatos apócrifos dos tempos bíblicos falam de gente que teria sido levada até o sétimo céu. De fato, há vários céus ou degraus acima da matéria grosseira, dependendo de como são considerados. Na Grande Pirâmide do Egito, os cinco enormes blocos de pedra sobre o teto da Sala do Juízo representam os “cinco degraus do Universo”, conforme esclarece Roselis von Sass em seu livro A Grande Pirâmide Revela Seu Segredo. O texto denominado Arcônticos afirma haver sete céus, cada qual com um governante, e que acima de todos se encontra uma “Mãe Luminosa”... Essa Mãe Luminosa é a mesma “mulher vestida com o Sol” do Apocalipse (cf. Ap12:1), de quem falaremos mais à frente.

A história da Criação descrita no Gênesis já era bem conhecida na Antiguidade, através de outras cosmogonias paralelas muitos semelhantes entre si. Numa dessas, um documento egípcio, o ser divino Ptah também faz surgir a Criação por meio de sua palavra e descansa em seguida. O deus egípcio Knum e o babilônico Marduk modelam figuras de barro e lhes insuflam o sopro da vida. O texto mesopotâmico denominado Épico de Atrakhasis apresenta a história da Criação praticamente tal como a descrita no Gênesis, mas é pelo menos quinhentos anos mais antigo. O cerne de todas as narrativas é, porém, sempre o mesmo: há o surgimento de uma Criação perfeita, vindo em seguida a queda do ser humano, com suas graves conseqüências. O antigo livro hindu Rig-Veda, uma coletânea sobre a vida e os poderes dos deuses, afirma que “todas as almas eram puras antes da queda”. A palavra Veda significa “saber”. A história de uma época inicial de felicidade, antes do falhar da criatura ser humano, não é portanto conservada apenas na Bíblia, mas subsistiu em diversas tradições, como demonstrado a seguir (citado do Manual Bíblico de Halley):

Alguns mitos africanos apresentam quadros parecidos. Num deles, o Criador pune a desobediência da mulher retirando-se das proximidades dela. Diz o mito: “Ele desapareceu para além do lago. Depois, ninguém mais O ouviu. E com Deus desapareceram também a felicidade e a paz; os frutos, a caça e todos os alimentos que antes se ofereciam espontaneamente, tudo se fez raro; mais ainda, a morte fez sua entrada, além de outras misérias.” Contos populares do Oriente Médio falam que o homem tivera certa vez a imortalidade a seu alcance, mas que a perdeu por se deixar seduzir e amedrontar por deidades maléficas.

O livro do Gênesis também mostra que no início tudo se desenvolvia maravilhosamente no conjunto da obra da Criação, conforme previsto na Vontade do Onipotente. A certa altura, porém, surge uma ruptura naquela ordem perfeita, quando uma de Suas criaturas faz algo contrário à Vontade Dele, instigada pela serpente. O casal humano dá ouvidos a uma outra voz que não a da sua intuição, sucumbe à tentação e, de livre vontade, contraria um mandamento do seu Senhor, isto é, peca. O quadro espiritual mostra bem nitidamente o falhar da criatura “ser humano”, num determinado momento do seu desenvolvimento.

Vejamos o que esse quadro espiritual indica no curso da evolução do ser humano na Criação.

Quando Deus fez surgir a Criação deixou impressas nela, na forma de leis inflexíveis, as marcas de Sua Vontade, à qual todo o conjunto da Criação teria de obedecer: “Por Sua Palavra o Senhor fez Suas obras e a Criação obedece à Sua Vontade” (Eclo42:15). Essas leis inseridas na Criação, que trazem em si a Sua Vontade perfeita, sustentam toda a obra, de modo que esta se desenvolve autonomamente, dentro das diretrizes estabelecidas por essa Vontade. São leis inexoráveis, das quais ninguém pode fugir: “Ele deu uma ordem e tudo foi criado; Ele fixou tudo pelos séculos sem fim e estabeleceu leis a que não se pode fugir!” (Sl148:5,6). São leis perenes, perfeitas, que dão testemunho da própria perfeição do Legislador, e que por isso jamais admitem a mínima alteração.

Foi por essa razão também que Jesus disse ter vindo “cumprir, e não revogar a Lei” (Mt5:17). Ele se referia ao conjunto de leis instituídas por seu Pai na Criação, as quais jamais iria querer derrogar, e das quais a fundamental Lei de Retorno ou da Reciprocidade já fora magistralmente incrustada nos livros de Levítico e de Tobias, na forma de mandamentos: “Não te vingarás nem guardarás rancor aos filhos do teu povo, mas amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv19:18) (4) ; “Não faças a ninguém o que não queres que te façam” (Tb4:15).

Oriundo da Criação e, portanto, como tudo o mais, também sujeito a essas mesmas leis inflexíveis, surgiu outrora o ser humano nesta Terra. Também ele se desenvolvia esplendidamente no início dos tempos. Como criatura puramente intuitiva, obedecia incondicionalmente às leis existentes, cumprindo assim automaticamente a Vontade do seu Criador. Os seres humanos dos tempos primordiais assemelhavam-se realmente a “boas sementes, semeadas pelo Filho do Homem” (Mt13:37), as quais germinavam, cresciam e produziam frutos abundantes, porque estavam totalmente integradas às leis da Criação.

Assim passaram-se milhares, centenas de milhares de anos. (5) Tudo se desenvolvia com perfeição. O ser humano daquelas eras longínquas ainda era uma peça útil na engrenagem perfeita do Universo. O livro do Gênesis diz que, ao concluir Sua obra, o Criador “viu tudo quanto havia feito e achou que era muito bom” (Gn1:31). Tudo era muito bom, inclusive o ser humano: “Deus fez reto o ser humano” (Ecl7:29). O mal ainda era desconhecido na obra da Criação.

Chegou então o tempo previsto no curso do desenvolvimento em que o ser humano deveria ter o intelecto despertado, o raciocínio até então inativo. Com a ajuda de seu raciocínio ele deveria tornar mais bela e produtiva sua vida na Terra. Deveria mostrar-se como um administrador leal do maravilhoso mundo a ele presenteado, digno da grande confiança nele depositada; um administrador que “governasse o mundo com piedade e justiça” (Sb9:3). Deveria cuidar para que por ocasião da colheita futura tivesse produzido os mais belos e suculentos frutos. Isso é o que se esperava dele, conforme indica o início da parábola dos lavradores maus:

“Havia um homem, dono de casa, que plantou uma vinha. Cercou-a de uma sebe, construiu nela um lagar, edificou-lhe uma torre e arrendou-a a uns lavradores. Depois se ausentou do país. Ao tempo da colheita, enviou os seus servos aos lavradores, para receber os frutos que lhe tocavam.”

(Mt21:33,34; Mc12:1,2; Lc20:9,10)

Para ajudar os seres humanos a cuidar corretamente dos frutos por eles produzidos aqui na Terra, agora que seu intelecto fora despertado, o Senhor enviou-lhes um auxiliador. Esse auxiliador era Lúcifer, oriundo de uma região muito acima do Paraíso.

Lúcifer, cujo nome significa “o portador da luz”, deveria ser para a humanidade que se desenvolvia na matéria o que um jardineiro amoroso é para um canteiro de flores. Deveria ajudá-la a utilizar o intelecto como um adubo eficaz para o pleno desenvolvimento dos frutos gerados pelo espírito. Ocorre, porém, que ele optou por seguir numa outra direção. Preferiu fazer uso de um método diferente, todo seu – contrário à Vontade do Criador – para execução de sua missão nas materialidades. Ao invés de auxiliar com amor, conforme era sua incumbência, Lúcifer preferiu tentar. Com isso ele queria testar, a seu modo, as sementes de que fora encarregado de cuidar, de maneira que aquelas que se desenvolvessem de forma errada acabariam por ser destruídas um dia, num determinado estágio de sua evolução. É ele, portanto, “o inimigo que semeia joio na sementeira do Filho do Homem” (Mt13:25).

Aos seres humanos Lúcifer, que devido ao seu método de atuação se tornara “mentiroso e pai da mentira” (Jo8:44), apresentou o raciocínio, que deveria ser um mero adubo para o plantio das faculdades espirituais, como já sendo o mais precioso fruto que lhes era dado cultivar em toda a existência. Para fazê-los esquecer de que se originaram do reino espiritual, na Luz, apontou-lhes a luz de seu próprio intelecto. Essa situação é indicada alegoricamente no Gênesis com a imagem da serpente incitando o casal humano a experimentar o “fruto da árvore do conhecimento” (cf. Gn3:1-6).

E, de fato, ao provar do fruto da árvore do conhecimento o ser humano se inebriou. E julgou ser poderoso, grande, forte. Nada lhe parecia impossível com as capacitações recém-adquiridas do seu intelecto. Desse modo o raciocínio, que deveria ser propriamente apenas um instrumento do espírito, passou a dirigir o destino dos seres humanos. Este foi o assim chamado pecado original, que acabou desencadeando todos os demais. Tal pecado consistiu em elevar o raciocínio, que deveria permanecer um mero executor da vontade espiritual, à posição de dirigente reservada ao espírito.

A imagem bíblica disso é a do casal humano que sucumbe aos ditames da razão, a qual desperta neles um sentimento de querer-saber-melhor que se coloca acima das disposições do seu Criador. Foi a mulher a primeira a ser seduzida pelo fulgor dos frutos do raciocínio: “A mulher viu que seria bom comer da árvore, pois era atraente aos olhos e desejável para dar entendimento” (Gn3:6). Assim, devido à sua queda inicial, “a mulher está na origem do pecado” (Eclo25:24). Isso, porém, não reduz em nada a culpa do homem, pois ao aceitar a fruta oferecida pela companheira ele mostrou que concordava com o procedimento feminino de chamar a atenção sobre si, não mais devido a seus elevados dotes espirituais, mas sim somente pelos seus atrativos corpóreos, tal como exigia o raciocínio que passou a dominar. De nada lhe valeu tentar depois transferir a culpa para a mulher, quando interrogado pelo Senhor: “A mulher que puseste ao meu lado, foi ela quem me deu do fruto da árvore e eu comi” (Gn3:13).

A partir daí o raciocínio passou a ditar a conduta da raça humana. O pecado havia entrado no mundo. O próprio espírito do ser humano não mais conseguia se fazer valer e, conseqüentemente, não mais se desenvolvia. Ao contrário, atrofiava-se mais e mais em razão dessa inatividade forçada. Sua voz, a intuição, tornava-se cada vez mais baixa, até virar um sussurro, que mal podia ser percebido. Nada mais conseguia suplantar a força crescente do raciocínio, colocado num trono de soberano que não lhe pertencia. E assim aconteceu que “toda a carne corrompeu seu caminho sobre a Terra” (Gn6:12), e os malefícios gerados pelo cultivo unilateral do raciocínio se alastraram com velocidade sinistra: “O Senhor viu que a maldade do homem se multiplicava na Terra; o dia todo seu coração não fazia outra coisa senão conceber o mal” (Gn6:5).

Essa situação só poderia redundar num fim: a morte espiritual do ser humano, a condenação eterna, que equivale a ter “o nome riscado do Livro da Vida” (cf. Ex32:33). No segundo volume deste livro veremos que o nome indica a própria existência do indivíduo, de modo que ter o nome apagado na Criação significa deixar de existir espiritualmente. É a essa morte espiritual que se refere a advertência divina tão grave: “Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal não comerás; porque, no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn2:17).

Muitos estudiosos bíblicos ainda hoje se perguntam, espantados, como o Criador pôde ter mentido aí, pois Adão e Eva comeram do fruto proibido e não morreram; assim, aparentemente, quem disse a verdade foi a serpente: “É certo que não morrereis” (Gn3:4). Também há quem tente explicar essa dificuldade dizendo que no início não estava previsto que o ser humano morresse terrenamente, mas sim que viveria indefinidamente no Paraíso, o Jardim do Éden, o qual estaria localizado no próprio planeta Terra, na região da Mesopotâmia, berço da Babilônia. Logo onde... A morte terrena só teria entrado no mundo com a dentada de Eva na maçã. Não fosse isso, a raça humana teria continuado a viver indefinidamente naquele local idílico, às margens dos rios Tigre e Eufrates, no atual Iraque, enquanto animais e plantas continuariam a nascer e a morrer normalmente… Alguns mapas e tratados medievais retificam essas coordenadas e colocam o Paraíso terrestre em regiões mais aprazíveis, como o Azerbaijão e a Armênia... Quanto a Adão, tão sôfrego estava em pecar que acabou engasgando com a fruta, o que deu origem ao “pomo (maçã) de Adão”, repassado por hereditariedade a todos os descendentes do sexo masculino.

Parece-me desnecessário rebater conceitos assim tão pueris, por isso vamos nos ater à primeira concepção e o conseqüente assombro dos que imaginam que o Criador não disse a verdade com aquela advertência dirigida ao casal humano, de que acabariam por morrer se comessem do fruto proibido.

Como em tantas outras dúvidas, também essa decorre da falta de aprofundamento nos conceitos bíblicos, que são essencialmente espirituais. O Criador não pronunciou nenhuma mentira, pois evidentemente “Deus não é homem, para que minta” (Nm23:19), visto que Ele é a própria Verdade: “o Senhor Deus é Verdade” (Jr10:10). E sendo Ele a Verdade, também o serão logicamente todas as Suas palavras, como já bem sabia o rei Davi: “Só Tu és Deus, e as Tuas palavras são a própria Verdade” (2Sm7:28). A metáfora bíblica não diz respeito à morte terrena absolutamente, e sim à morte espiritual. Era essa morte espiritual que não estava prevista para a raça humana, pois “Deus não fez a morte, nem se alegra na perdição dos vivos” (Sb1:13). A morte espiritual entrou no mundo por influência do tentador, e atinge somente aqueles que lhe são submissos: “Foi por inveja do diabo que a morte entrou no mundo, e experimentam-na os que são do seu partido” (Sb2:24). A filiação a esse partido diabólico é compulsória para quem segue os preceitos de Lúcifer, e se mostra de maneira visível na alma do condenado através de uma marca em sua testa.

A teologia tradicional, porém, irá rejeitar essa interpretação, por soar um tanto desagradavelmente. Ninguém gosta de ouvir falar em morte, quanto mais de morte espiritual. Por isso, já no século V, a Igreja tachou de heréticas as idéias cristalinas do bispo Juliano de Eclano, em seu embate de mais de doze anos com o monge Aurélio Agostinho (354 – 430), doutor da Igreja e autor da mortífera “doutrina da graça”, posteriormente ratificada pelo Concílio de Orange em 529. Além de se ver derrotado pela sua Igreja, Juliano acabou excomungado, deposto e exilado ao se recusar a subscrever os nove anátemas lançados pelo Concílio de Cartago contra outro grande teólogo da época, Pelágio (360 – 425), o qual ensinava que a salvação estava nas mãos do próprio ser humano. As trevas nunca dormiram no ponto aqui na Terra, seu quartel-general.

Vale a pena descrever aqui sucintamente as doutrinas correntes naquele tempo, no início da história cristã, antes de avançarmos. Pelágio afirmava que a salvação podia ser alcançada pela própria pessoa, mediante escolha certa e esforço próprios. Isso se dava pelo exercício do livre-arbítrio, dom dado por Deus ao ser humano e parte integrante de sua natureza. Pelágio dizia que o livre-arbítrio adequadamente exercido produz a virtude, bem supremo devidamente seguido da recompensa, pois cada um tem a prerrogativa de escolher entre o bem e o mal, e daí arcar com as conseqüências. Além do livre-arbítrio, o Senhor dotara o ser humano de virtudes que jaziam escondidas, à espera de serem trazidas à tona pelo próprio indivíduo, como o interessar-se pelo próximo. No entender de Pelágio, a compaixão era “sentir a dor alheia como se fosse a sua própria”. Em relação ao pecado, ele asseverava que a predisposição ou inclinação para o mal já era, em si mesma, resultado do pecado, e que o hábito de pecar acabava por enfraquecer a vontade do ser humano e obscurecia seu pensamento. Também sustentava que o pecado, sendo interno, não poderia ser transferido de uma pessoa à outra, algo que, a seu ver, seria imoral. Se o mal pudesse ser herdado, dizia, então a bondade e a Justiça de Deus estariam destruídas. “O homem não pode acusar o pecado original de responsável por suas fraquezas”, asseverava ele. E insistia: “Tudo o que é bom e tudo o que é mal é feito por nós, não nasce conosco.” Pelágio ainda pregava que o Criador não havia ordenado nada de impossível ao ser humano, e que a fraqueza da carne era meramente um pretexto para não se fazer o bem, conforme prescrito pelo Senhor. De Pelágio são também essas palavras:

“Ninguém conhece melhor a medida de nossa força do que Aquele que no-la concedeu. Ninguém tem uma melhor compreensão do que está dentro de nossas forças do que Aquele que nos dotou dos próprios recursos de nosso poder. Ele não desejou determinar nada impossível, pois é justo.”

Doze séculos antes de Pelágio pronunciar essas palavras, o profeta Miquéias ensinava com o mesmo sentido à sua gente:

“Já te foi revelado, ó homem, o que é bom, o que o Senhor requer de ti: nada mais que praticares a justiça, amares a lealdade e andares humildemente diante do teu Deus.”

(Mq6:8)

E o autor de Eclesiástico reiterava alguns séculos depois:

“Ele [o Senhor] conhece as obras do ser humano. Não mandou ninguém agir como ímpio e a ninguém deu licença para pecar.”

(Eclo15:20,21)

Infelizmente, como com quase todas as coisas boas, também essa doutrina pura e verdadeira de Pelágio, reminiscência dos verdadeiros ensinamentos de Cristo, foi considerada herética pela Igreja e sumariamente rejeitada. Pelágio e seus ensinamentos foram condenados no Concílio de Éfeso, no ano 431. Ainda antes dessa condenação, em 416, dois sínodos no norte da África já haviam reprovado o pelagianismo. Nessa época, o papa Inocêncio I recebeu uma carta de cinco bispos, dentre eles Agostinho (que tinha Pelágio como “arrogante e rebelde”), relatando o resultado das sindicâncias movidas contra Pelágio e seu discípulo Coelestius. Após ler a carta, o papa se pronunciou nos seguintes termos: “Declaramos, em virtude de nossa autoridade apostólica, que Pelágio e Coelestius estão excluídos da comunhão da Igreja, até que se libertem das armadilhas de Satanás.” Os prelados africanos já haviam providenciado impor dentro do catolicismo, pela força se necessário, a teologia desenvolvida por Agostinho. Como garantia adicional, os comandantes da cavalaria imperial na Itália haviam recebido como suborno oitenta magníficos garanhões, criados em propriedades episcopais na África.

Pelágio morreu na Palestina em 425; Coelestius e Juliano, expulsos da Igreja, rumaram para Constantinopla em 429, onde foram calorosamente recebidos pelo patriarca Nestório, outro grande lutador da Verdade dos tempos antigos, de quem voltarei a falar neste volume.

São espíritos de vulto como esses que nos permitem vislumbrar como seria o nosso mundo se a humanidade inteira não tivesse hospedado com tanto carinho as trevas em seu coração... Alguma coisa de Pelágio ainda conseguiu sobreviver até a idade moderna, conservada por espíritos mais evoluídos e não adormecidos. Deve-se atribuir o extraordinário impulso que a nação norte-americana experimentou desde a sua fundação, nos campos moral e material, a certos conceitos pelagianos inseridos na doutrina protestante dos primeiros colonizadores.

Contrapondo-se furiosamente a Pelágio, o qual afirmava que as pessoas são perfeitamente capazes de não pecar, Agostinho estabeleceu um princípio diametralmente oposto: “non posse non peccare” – é impossível não pecar. Por fim, coroando suas prédicas, Santo Agostinho mandava todos atentarem à sua doutrina da dupla predestinação, segundo a qual os seres humanos já nascem reservados ou para a morte eterna ou para a vida eterna, com a ressalva de que esses últimos só poderão obter a salvação pela “graça divina”, onde nenhum empenho pessoal é exigido do agraciado.

Ao contrário dos muitos outros despautérios de Agostinho, este último sobreviveu incólume através dos séculos, sendo aceito irrefletida e indistintamente por quase todos os cristãos até hoje, pois vem ao encontro de sua crônica indolência espiritual, contribuindo para nutri-la permanentemente. A concepção de uma “salvação gratuita” subsistiu garbosamente, e se configura na mais danosa, na mais perigosa de todas as suas sandices, pois não é mais do que um salvo-conduto garantido para a morte espiritual.

Assim como o herói Pelágio, Juliano também não concordava de maneira alguma com as idéias de Agostinho, e mostrou-se indignado com seus ataques ao sexo e ao casamento. Não podia conceber, explicou, que o ato necessário à reprodução fosse algo demoníaco, tendo de ser praticado sobre o véu da vergonha. Juliano estava certo, claro. Se Agostinho tivesse se aprofundado na Bíblia, saberia da Epístola aos Hebreus: “Digno de honra entre todos seja o matrimônio e imaculado o leito conjugal” (Hb13:4), e se veria repreendido em suas idéias por Paulo: “Saiba cada um viver seu matrimônio com santidade e honra” (1Ts4:4). Em relação a Adão, Juliano era de opinião que este havia prejudicado exclusivamente a si próprio com sua queda no pecado. E, tal como Adão, os seres humanos não precisariam pecar, pois têm a escolha voluntária. O próprio fato de o Criador ordenar à criatura humana praticar o bem era a prova de que esta é capaz de agir assim. Em vista disso, Juliano apenas rebateu serenamente o já afamado e futuro santo Agostinho: “A morte terrena não é nenhum castigo pelo pecado de Adão, mas um processo natural, como o despertar do sexo e o nascimento de uma criança – natural, necessário e universal para todas as espécies vivas. A morte espiritual é que se torna assunto de escolha.”

Juliano estava absolutamente certo, mais uma vez. A morte espiritual é, sim, assunto de escolha exclusivo do próprio indivíduo. Trata-se, porém, de um acontecimento tão pavoroso, que a Bíblia traz inúmeras indicações e advertências a respeito, como essas: “Ela [a besta] seduz os habitantes da Terra graças aos prodígios que lhe fora concedido realizar” (Ap13:14), mas os que “adoram a besta não têm seus nomes inscritos no Livro da Vida” (Ap13:8). Os mortos são condenados quando é aberto o Livro da Vida, pois o Livro mostra que seus nomes não estão lá (cf. Ap20:12): “Quem “não for achado inscrito no Livro da Vida será lançado para dentro do lago de fogo” (Ap20:15): “esta é a segunda morte, o lago de fogo” (Ap20:14).

A segunda morte sofrida por esses perdidos é, pois, a morte espiritual, a condenação eterna, novamente nada tendo a ver com a morte terrena. A besta que seduz os seres humanos é o raciocínio unilateralmente cultivado, contrário a tudo quanto se acha acima da matéria, portanto adversário do espiritual, do divinal, e por conseguinte do próprio Deus. A humanidade inteira foi seduzida pela besta: “E toda a Terra, maravilhada, seguiu a besta” (Ap13:3). É o mais perigoso e seguro instrumento nas mãos de Lúcifer para a perdição da humanidade. Aqueles que, por fim, não quiserem ou não puderem domar esse animal, serão implacavelmente destruídos por ele no tempo do Juízo Final, perecendo espiritualmente. São esses então os condenados no Juízo, os que não quiseram atentar em tempo certo à Palavra salvadora do Senhor, e que devido a isso sucumbiram sob o instrumento do tentador.

Era a essa morte espiritual que Jesus se referia quando redargüiu a alguns fariseus que procuravam testá-lo: “Morrereis nos vossos pecados” (Jo8:24). Assim como os atuais intérpretes racionalistas da Bíblia, aqueles fariseus de outrora também não entendiam que Jesus lhes advertia da morte espiritual, e não da terrena, e achavam que ele estava com um demônio qualquer por afirmar em seguida que quem observasse sua Palavra não morreria. Jesus estava querendo dizer que quem cumprisse sua Palavra jamais sofreria a morte espiritual. Os fariseus não entenderam, e pensaram que ele se referia à morte terrena:

“Em verdade, em verdade vos digo: se alguém guardar a minha Palavra, nunca verá a morte. Disseram-lhe então os judeus: Agora é que estamos certos de que tens demônio! Abraão morreu, os profetas também, e tu dizes: ‘Se alguém observar a minha Palavra, nunca experimentará a morte’? Porventura és tu maior que o nosso pai Abraão, que morreu? E os profetas morreram também!”

(Jo8:51-53)

Somente aquele que guardar a Palavra de Jesus não verá a morte eterna… Essa morte eterna, ou morte espiritual, é a desintegração do espírito humano, a total extinção de sua personalidade consciente. Como o Criador é a Luz primordial, isso implica que a ruína eterna, a condenação, significa na realidade estar permanentemente desligado dessa Luz, desprovido da consciência do existir, ficando para todo o sempre apartado do Senhor: “Eles serão punidos com a ruína eterna, longe da face do Senhor” (2Ts1:9). Esse é o terrível fim reservado a todos os que se deleitam com o fruto da árvore do conhecimento, que fazem do raciocínio sua mais sublime divindade, visto que então nunca mais lhes será facultado comer do “fruto da árvore da vida, reservado aos vencedores” (Ap2:7).

Os vencedores, por sua vez, são os outros. São aqueles seres humanos que se desenvolveram de modo certo na Criação, ficando portanto livres da condenação ou segunda morte: “A segunda morte não tem poder sobre eles” (Ap20:6); “o vencedor não será atingido pela segunda morte” (Ap2:11). São eles os que foram “inscritos no Livro da Vida do Cordeiro” (Ap21:27), e que por isso se tornaram capacitados a reingressar no Paraíso, onde poderão “viver eternamente” (Gn3:22). Por terem sido vencedores do mal, foi-lhes assegurado que seus nomes permaneceriam registrados no Livro da Vida: “Os vencedores, vestidos de vestiduras brancas, jamais terão seus nomes apagados do Livro da Vida” (Ap3:5). São eles as ovelhas que assimilaram no íntimo a Palavra do pastor, e que por isso não morrerão: as “ovelhas que ouvem a voz do pastor, e que jamais perecerão eternamente” (Jo10:27,28). São todos os que, tal como a comissão dos setenta formada por Jesus (cf. Lc10:1), podiam “alegrar-se, pois seus nomes estão arrolados nos céus” (Lc10:20).

Todos eles “seguiram a Lei” estritamente, isto é, pautaram suas vidas pelo conjunto das leis eternas da Criação, a “Lei que subsiste para todo o sempre; todos aqueles que a seguem adquirirão a vida, mas os que a abandonam morrerão” (Br4:1). Cada um desses vencedores, desses verdadeiros fiéis que adquiriram a vida eterna, e que portanto jamais precisarão experimentar a decomposição na morte espiritual, cada um deles é a prova viva da veracidade do testemunho de Davi ao Senhor: “Não deixarás o Teu fiel experimentar a decomposição” (Sl16:10; At2:27). São eles os justos, cujas “almas estão nas mãos de Deus, e nenhum tormento os atingirá” (Sb3:1), e que por conseguinte viverão eternamente: “os justos viverão para sempre” (Sb5:15). Essa mesma promessa foi dada de modo particular àquele escriba que interpretara corretamente as prescrições para se alcançar a vida eterna. Disse-lhe Jesus na ocasião: “Respondestes corretamente; faze isto e viverás” (Lc10:28), ou seja: age dessa maneira conforme estás dizendo e viverás eternamente. Séculos antes, o profeta Amós já tinha exortado seu povo com palavras semelhantes, indicando como teriam de atuar para poderem angariar a vida eterna: “Buscai o bem e não o mal, para que vivais!” (Am5:14).

É, portanto, exclusivamente a todos esses vencedores fiéis que assiste o direito à árvore da vida, pois eles lavaram as suas vestes: “Felizes os que lavam as suas vestes, para terem direito à árvore da vida” (Ap22:14). Observe-se que os espíritos humanos vencedores lavaram, eles mesmos, as suas vestes, isto é, eles mesmos limparam suas almas da sujeira do pecado, pois a alma é propriamente a veste do espírito, assim como o corpo terreno é a veste da alma. Em latim, alma é anima, palavra que indica a vitalidade interna de uma pessoa, aquilo que efetivamente “anima” e incandesce o ser humano terreno, ou, melhor dizendo, seu corpo de matéria grosseira.

A concepção de alma suja, aliás, já era bem conhecida na Antiguidade. No Primeiro Livro de Macabeus, após a profanação do Templo de Jerusalém feita pelo rei sírio Antíoco IV Epífanes (6), está dito que ele ordenara que os filhos da terra “se tornassem abomináveis” (1Mc1:48). No original hebraico está literalmente: “que manchassem as suas almas”, algo muito mais grave para os hebreus do que uma simples impureza física, e que demandaria a necessidade de a própria pessoa lavar-se interiormente, isto é, purificar sua alma.

No Novo Testamento, também vemos como alguns Coríntios que viviam em pecado igualmente se deram a esse trabalho indispensável de lavar suas próprias almas da imundície do pecado: “Tais foram alguns de vós [pecadores], mas vós vos lavastes, (…) e fostes justificados em nome do Senhor Jesus Cristo” (1Co6:11), asseverou o apóstolo Paulo. Aqueles Coríntios, portanto, só puderam ser justificados porque eles mesmos lavaram suas almas do pecado. Em sua segunda carta a essa comunidade, Paulo os exorta a prosseguirem nesse trabalho de purificação: “Caríssimos, purifiquemo-nos de toda mancha do corpo e do espírito” (2Co7:1). Também o profeta Isaías já transmitira em sua época essa ordem clara do Senhor, para que cada pecador se lavasse, ele mesmo, de suas faltas: “Lavai-vos, purificai-vos! Tirai da minha vista as vossas más ações! Cessai de praticar o mal, aprendei a fazer o bem!” (Is1:16,17).

Tão-somente os que passam a viver de acordo com a Palavra da Verdade do Senhor são capazes de se limpar da sujeira do pecado, e desse modo portarem novamente “vestiduras brancas” (Ap7:13), isto é, trazerem novamente purificadas as vestimentas de seus espíritos, ou seja, suas almas. Pois com isso eles efetivamente as “alvejaram no sangue do Cordeiro” (Ap7:14), isto é, passaram a viver de acordo com os ensinamentos de Jesus e assim limparam suas almas da sujeira do pecado. Jesus foi o “Verbo tornado carne” (Jo1:14), que teve seu sangue derramado em prol da Verdade de sua Mensagem. Note-se mais uma vez que foram eles mesmos que se lavaram de seus próprios pecados ao viverem segundo a Palavra. Em outras palavras, “pela obediência à Verdade, purificaram suas almas” (1Pe1:22).

Como vimos, o teólogo Juliano dizia que a morte terrena era um processo natural, e nisso estava igualmente certo. A morte terrena nunca poderá inspirar nenhum terror em quem se esforça em agir de acordo com a Vontade do Criador. Bem pelo contrário. O ser humano que em sua vida pensar na morte, viverá de tal maneira que não precisará temê-la. Sabendo que encontrará do outro lado apenas o resultado de sua atuação no lado de cá, ele simplesmente não pecará mais: “Em tudo o que fizeres lembra-te de teu fim, e jamais pecarás” (Eclo7:40).

Mas vamos sair do desvio e retomar o fio da meada. Estávamos discorrendo sobre a inversão contínua de valores entre espírito e raciocínio no início do desenvolvimento da raça humana, conseqüência do pecado original, um fato denunciado por Jesus em sua época. A raça humana começou a se inclinar para o mal pouco depois de ter o raciocínio despertado, numa época que equivalia à juventude da humanidade: “A inclinação do coração do homem é má desde a sua mocidade” (Gn8:21).

Desgraçadamente, essa situação insana foi se agravando cada vez mais com o tempo. O raciocínio supercultivado, incapaz de reconhecer tudo quanto se acha além da materialidade, tornou-se então para a humanidade da era moderna, em definitivo, “o anticristo, que nega o Pai e o Filho” (1Jo2:22). Na época em que João escreveu sua primeira epístola, ele avisou que o anticristo já estava no mundo: “Ouvistes dizer que o anticristo virá; pois bem, ele já está no mundo” (1Jo4:3). Esse anticristo do raciocínio que já estava no mundo no tempo de João, e segundo Paulo já atuando: “o mistério da iniqüidade já está em ação” (2Ts2:7), é aquele que se ergueria contra toda determinação divina e que acabaria por chegar até os altares: “aquele que se ergue e se insurge contra tudo o que se chama Deus ou se adora, a ponto de se assentar em pessoa no templo de Deus e proclamar-se deus” (2Ts2:4).

Atrás do atuante anticristo raciocínio – o “deus deste mundo que cega o entendimento” (cf. 2Co4:4), encontra-se, porém, seu grande fomentador e instigador, o próprio Anticristo em pessoa: Lúcifer. Para tanto, ele se vale do instrumento que disseminou entre a humanidade, o raciocínio unilateralmente cultivado, que roubou o lugar do espírito. As três personagens das trevas retratadas no livro do Apocalipse: o dragão, a besta e o falso profeta (cf. Ap16:13), representam respectivamente Lúcifer, o raciocínio humano supercultivado, e os apologistas da crença falsa. O Apocalipse diz que “o falso profeta fazia maravilhas a serviço da besta” (Ap19:20), à qual “o dragão deu-lhe a sua própria força, o seu trono e grande poder” (Ap13:2). Os seres humanos tornaram-se com isso adoradores de Lúcifer e de seu instrumento, o raciocínio supercultivado: “E adoraram o dragão, porque havia dado poder à besta, e adoraram a besta, dizendo: quem é comparável à besta, e quem pode combater contra ela?” (Ap13:4); “E adoraram-na todos os habitantes da Terra, aqueles cujos nomes não estão inscritos, desde o princípio do mundo, no Livro da Vida do Cordeiro” (Ap13:8). O falso profeta seduziu “todos os que haviam recebido a marca da besta e adorado sua estátua” (Ap19:20). Essa última sentença significa que a crença falsa se apoiaria exclusivamente no raciocínio, em conjecturas intelectivas, para seduzir os seres humanos até o ponto de esses literalmente adorarem a besta raciocínio, e com isso terem marcados na testa de suas almas o estigma dos espiritualmente mortos. Que nada pode vir de bom dessas três personagens, fica claro no início da visão da sexta e penúltima taça da Ira de Deus que é derramada sobre a Terra: “Então vi sair da boca do dragão, da boca da besta e da boca do falso profeta três espíritos imundos semelhantes a rãs” (Ap16:13).

A figura do dragão é por excelência relacionada como o inimigo de Deus desde tempos imemoriais. Essa imagem nada tem a ver com os animais alados de tempos passados, os dragões voadores da época de Atlântida. O livro Atlântida – Princípio e Fim da Grande Tragédia, da escritora Roselis von Sass, apresenta vários quadros de interação dos dragões voadores com os seres humanos, há mais de dez mil anos... Porém, na época em que os livros bíblicos começaram a ser compostos, o saber a respeito desses animais já se extinguira por completo, de modo que não causa surpresa ver as menções a “dragão voador” que aparecem no livro de Isaías (cf. Is14:29; 30:6) com uma conotação negativa. As muitas lendas e visões proféticas que utilizaram a imagem de um monstro para personificar o mal dentro do mundo, acabaram sendo associadas a um dragão simplesmente, e a imaginação humana cuidou de transformar aqueles animais maravilhosos em figuras horrendas.

Assim é que já no antigo mito grego de Perseu, aparece um reino devastado e oprimido por um dragão, que exige sempre novas vítimas humanas, até ser morto pelo herói. Na literatura mesopotâmica, o deus principal, Marduk, luta contra o terrível dragão Tiamat; arremessa contra ele os “quatro ventos”, seus aliados, e por fim crava uma flecha no peito do monstro ofegante. Nos escritos do Zoroastrismo aparece o dragão Azhi Dahaka, que usurpa o trono terrenal e causa “miséria, fome, fome, luto, lamentação, calor e frio excessivos” no mundo, além de colocar demônios vivendo junto aos seres humanos. O dragão é vencido por Atar, filho de Ahuramazda (o Criador), que o lança num oceano profundo. Entre os hititas, povo de que se tem notícia há pelo menos três milênios antes de Cristo, temos o relato do dragão Iluianka, emblema de todas as forças trevosas, o qual morre numa luta contra o “Grande-deus”. Uma escultura hitita mostra o dragão, em forma de serpente, sendo ferido pelo Grande-deus com uma lança, ao mesmo tempo em que este faz cair sobre o monstro raios em grande quantidade. A imagem de um cavaleiro subjugando com a lança um monstro parecido com um dragão, que a Igreja cuidou de transformar no seu “São Jorge” é, portanto, um quadro espiritual muito antigo. Representa o Filho do Homem em luta pessoal contra o Anticristo Lúcifer. Uma vaga recordação dessa luta aparece no livro de Isaías, onde se diz que “o Senhor matará o dragão” (cf. Is27:1). “Matar” não é a expressão adequada, mas sim “neutralizar”, pois Lúcifer é eterno e encontra-se atualmente manietado. Relatos paralelos vêm do antigo Egito, os quais mencionam uma deusa prestes a dar à luz um menino e um dragão que procura arrebatá-lo. O dragão sabe o que lhe espera e tenta impossibilitar o desenvolvimento do menino, que representa o Filho do Homem enquanto este ainda está se preparando para sua missão. Narrativa semelhante aparece no livro do Apocalipse, onde vemos que o “grande dragão de fogo com sete cabeças e dez chifres” (Ap12:3) também fracassa em sua intenção de devorar um menino, “o filho varão que veio para governar todas as nações com cetro de ferro” (Ap12:5), e que acabara de nascer da “mulher vestida com o Sol, tendo a Lua embaixo dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas” (Ap12:1). Essa mulher resplandecente não é a “Virgem Maria”, nem tampouco representa a imagem do Antigo Testamento parindo o Novo, como alguns supõem. Ela é a rainha primordial de toda a feminilidade, e encontra-se em altura inimagináveis.

O Anticristo ergueu a cabeça ao máximo pouco antes do Juízo por meio de seus solícitos servos terrenos, os seres humanos de raciocínio, para os quais a intuição não é mais do que uma megera domada. Um dos sinais mais claros disso foi o advento da chamada religião natural e do Iluminismo, ambos no século XVIII. A religião natural alegava que a “razão iluminada” era a fonte e a norma máximas para a fé cristã, enquanto que o Iluminismo rejeitava qualquer concepção que não pudesse ser explicada em bases puramente racionais.

Os prosélitos dessa religião natural ensinavam que a razão humana em seu desenvolvimento máximo era capaz de conduzir as pessoas à convicção acertada sobre Deus, sobre o sentido da moralidade, a vida após a morte, etc. Para eles, Jesus fora o maior profeta de todos os tempos e só.

Sobre o Iluminismo, é muito irônico que tenha passado para a História com esse nome, pois tal movimento deveria ser chamado com muito mais propriedade de “Obscurantismo”. Se por um lado se opunha às superstições clericais, por outro enaltecia o raciocínio ao máximo, como único antídoto contra todo tipo de fé. Os iluministas franceses chegaram a ponto de estabelecer um “culto à razão”, e para tanto esculpiram uma estátua de uma mulher nua simbolizando o raciocínio humano divinizado: a “deusa razão”. A catedral de Notre Dame, rebatizada de “Templo da Razão”, foi consagrada a essa “deusa razão”, tendo sido ali devidamente entronizada. Durante o “Festival da Razão” foi construída uma montanha cenográfica no interior da catedral, com um segundo templo no cume. Em alguns lugares se desenvolveu até uma liturgia do raciocínio, uma celebração em que cientistas substituíam sacerdotes e faziam experiências de laboratório no altar. Um dos arautos do Iluminismo louvava a auto-satisfação humana, afirmando que o amor da humanidade substituía o Amor de Deus, de modo que o comportamento dos homens não seria julgado futuramente pelo Criador, mas sim apenas pela posteridade humana.

O raciocínio humano só pôde obter assim tamanho poder e influência sobre a humanidade, chegando a ser literalmente adorado por ela, porque já fora cultivado e enaltecido durante milênios por essa mesma humanidade, como sua mais excelsa divindade. Essa vitória incondicional do raciocínio significou propriamente a derrota do espírito, as exéquias do ser humano espiritual. O alcance desse triunfo em nossa época pode ser avaliado já pela aversão inconsciente de se tocar em temas espirituais. A simples menção da palavra espírito hoje em dia já causa certo mal-estar na maioria das pessoas. Basta que ouçam ou leiam essa palavra para seu raciocínio entrar imediatamente em ação, procurando fazê-las acreditar que estão frente a algo não muito sério… A não ser que o conceito de espírito apareça insidiosamente associado à sagacidade do raciocínio e outros atributos intelectuais ou físicos. Nesse caso a estória é outra. Fala-se aí com indisfarçado orgulho de espírito superior, espírito empreendedor, espírito vivo, espírito público, espírito esportivo, espírito de luta, presença de espírito, espirituoso, etc. Sempre no sentido de enaltecer qualidades externas, nunca internas.

O mesmo efeito se observa com qualquer outro conceito extramaterial que o intelecto não pode assimilar. Assuntos legitimamente espirituais não desencadeiam mais em nossa época sentimentos de alegria e interesse, mas apenas de descaso e rejeição, provocados pelo próprio raciocínio, no seu esforço em manter-se no trono usurpado. Significativamente, a palavra que em hebraico significa raciocínio também é usada para conceituar astúcia e ardis maus...

Assim, o espírito encontra-se hoje subjugado, inativo, sem se fazer notar, sem poder fazer frente à onipresente tirania do seu verdugo racionalista. O raciocínio humano sempre atacará com violência qualquer perigo à sua hegemonia, qualquer ameaça ao domínio que exerce sobre o espírito adormecido, como, por exemplo, uma interpretação bíblica que mostre justamente essa situação.

Este é, portanto, o retrato sem retoques do ser humano hodierno: o ente de espírito que se envergonha de sua origem espiritual, o escravo do seu próprio raciocínio, a lânguida criatura, que desprovida de qualquer vivacidade interior aceita apaticamente as mais grotescas mentiras religiosas e as mais estapafúrdias fantasias místico-ocultistas. Se a humanidade tivesse se utilizado proveitosamente da árvore do conhecimento, sem se “deleitar com seu fruto”, isto é, sem cultivar unilateralmente o raciocínio, tendo ao mesmo tempo cuidado de regar o jardim de suas aptidões espirituais, teríamos hoje um paraíso na Terra, pois “o fruto do espírito é amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, lealdade…” (Gl5:22). Como isso não aconteceu, temos de sobreviver num mundo dilacerado pelo ódio, conspurcado pela cobiça, envenenado pela inveja e afundado na miséria. É o mundo que o intelecto tem a oferecer, quando dissociado do espírito. O mundo de Caim. Um mundo em que o raciocínio adquiriu tal supremacia sobre o espírito, que o matou literalmente. Que não precisaria ser assim, fica patente nessa exortação do Senhor dirigida a Caim, pouco antes de este assassinar Abel, movido pela inveja da posição elevada do irmão, como representante da atuação espiritual humana: “O Senhor disse a Caim: ‘Por que estás zangado e com o rosto abatido? Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto” (Gn4:6). No entanto, Caim não procedeu bem; matou Abel, e com isso o ser humano terreno nunca mais pôde erguer o rosto acima das coisas puramente materiais. A supremacia do raciocínio sobre o espírito foi o primeiro e mais grave pecado da humanidade, que gerou todos os demais.

O ser humano pôde pecar dessa forma porque dispõe do livre-arbítrio, e conscientemente utilizou essa dádiva na direção errada, indicada pelos apaniguados luciferianos. Ele, de fato, podia pecar, mas não devia pecar, pois sempre contou com numerosos auxílios, quase indescritíveis, ao longo de milênios e milênios, para que trilhasse o caminho verdadeiro.

O livre-arbítrio é uma característica inerente ao espírito e necessária ao seu desenvolvimento: “Desde o princípio Deus criou o ser humano e o entregou às mãos do seu arbítrio” (Eclo15:14). Por meio dele o ser humano tem a possibilidade de tomar decisões próprias, e através dos efeitos retroativos dessas decisões, isto é, “através da colheita do que foi semeado” (Gl6:7), amadurecer pela vivência no reconhecimento do que é certo e do que é errado.

O desenvolvimento espiritual só se efetiva através de vivências, do saber adquirido pelas vivências. Tal saber, bem entendido, não é o que se aprende em cursos de filosofia ou em escolas ocultistas, mas sim o saber da vida, o saber de como viver em conformidade com as leis que regem a Criação. Esse saber indelével não pode ser obtido por meio de rituais místico-religiosos nem por ascetismo, mas pelo estreito convívio com o próximo, na azáfama do dia-a-dia. Tal saber adquirido pela vivência cotidiana é capaz de moldar o caráter do ser humano, de lapidar seu íntimo no sentido do aperfeiçoamento espiritual, que é o objetivo último da vida terrena: “O ferro com o ferro se aguça, e o homem afina-se no contato com os outros” (Pv27:17).

Esse saber próprio, pessoal, adquirido através de vivências, passa a pertencer realmente ao espírito humano, nada tendo a ver com o aprendizado obtido em escolas e universidades. Tudo quanto é aprendido durante a vida não segue com a alma em sua jornada para o Além, mas cai para trás juntamente com o corpo terreno: “Mal deixam de respirar, regressam ao pó da terra; nesse mesmo dia acabam seus projetos” (Sl146:4). Somente aquilo que foi vivenciado torna-se propriedade da alma, que a leva consigo para o outro lado. Os que só se preocupam em aprender e aprender, sem aproveitar integralmente as vivências para um crescente reconhecimento da Verdade que jaz nas leis da Criação, malbaratam seu tempo terreno; esses estão “sempre aprendendo, sem nunca chegar ao conhecimento da Verdade” (2Tm3:7).

Só o que foi vivenciado é que se torna, portanto, um saber. É este saber legítimo que possuem os verdadeiros sábios, e não os parcos conhecimentos humano-terrenais, quer sejam científicos ou esotéricos. Não são ares doutorais nem semblantes de pretensa paz mística que fazem do diletante um sábio.

A propósito, é interessante notar que o livro bíblico de Provérbios faz um contraste permanente entre “sábio e insensato”, e não entre “sábio e ignorante”, mostrando com isso que dotes intelectuais e conhecimento adquirido não tornam o erudito um sábio. Erudição não é sabedoria, segundo o livro de Provérbios. A erudição ainda está muito longe do verdadeiro saber. O erudito não será mais do que um grande insensato se não souber ou não quiser viver de maneira certa, se não procurar conhecer o verdadeiro significado da vida e das leis que governam a Criação.

São justamente essas leis régias da Criação que estabelecem um caminho de desenvolvimento bem definido ao espírito humano, onde a conscientização advém através de vivências, decorrentes de suas próprias resoluções. Se fosse possível de outro modo, então o Criador poderia simplesmente ter feito o ser humano sem livre-arbítrio, de maneira a lhe garantir de antemão a bem-aventurança. (7) Poderia, inclusive, fazê-lo imune ao pecado. No entanto, Ele “permitiu que todos os povos andassem nos seus próprios caminhos” (At14:16). Permitiu, porque o livre-arbítrio está indissoluvelmente ligado ao espiritual humano, e não lhe pode ser retirado sem mais nem menos. Uma tal arbitrariedade as leis da Criação, instituídas pela Sua própria Vontade perfeita, não permitem, assim como também não permitem nenhum ato arbitrário de absolvição de pecados. O dom do livre-arbítrio condiciona a mais severa responsabilidade de uma criatura.

As pessoas deveriam afastar resolutamente de si qualquer tentativa de convencê-las de um perdão arbitrário de pecados, pois tal coisa é simplesmente impossível, é uma ilusão desmedida, além de ser demonstração de ilimitada presunção. Deveriam se lembrar sempre de que “a soberba precede a ruína, e a presunção precede a queda” (Pv16:18). A atual presunção do ser humano terreno é o sintoma mais nítido de sua queda, de uma profunda queda nas profundezas…

O ser humano é, a rigor, um ente bem pequeno no gigantesco conjunto da obra da Criação, apesar de naturalmente estar convencido do contrário. Tão pequeno, que só pode começar a se desenvolver conscientemente em distâncias incomensuráveis da Fonte da Vida, de Deus, como é o caso deste nosso pequeno mundo material, uma das últimas e mais afastadas moradas da Casa do Pai. Aqui lhe é possível dar início a um vagaroso desenvolvimento da sua autoconsciência, através das vivências decorrentes do seu livre-arbítrio.

Uma maturação lenta, paulatina, rumo a uma sabedoria crescente, arduamente conquistada, e cuja obtenção plena realmente “vale mais do que a prata, e o seu lucro mais do que o ouro” (Pv3:14). Uma verdadeira sabedoria, que “não se troca por ouro maciço, nem se compra a preço de prata” (Jó28:15), pois “quem encontra a sabedoria encontra a própria vida” (cf. Pv8:35). Uma sabedoria abrangente, que pode ser resumida como sendo “o testamento do Altíssimo e o conhecimento da Verdade” (Eclo24:32), e que permite ao espírito tornado sábio trilhar o caminho reto: “Torna-te sábio e guia teu espírito pelo caminho reto” (Pv23:19). Todavia, só quem se move direito na Criação pode obtê-la realmente, porque ela, a sabedoria, “mantém-se longe do orgulhoso, dela não se lembrarão os mentirosos; (…) os insensatos não a atingirão e os pecadores não chegarão a vê-la” (Eclo15:8,7).

Quanto mais sábio o ser humano se tornar nesse processo indispensável de amadurecimento, rumo à autoconsciência, tanto mais incondicionalmente sintonizará sua vontade no sentido da Vontade do seu Criador. Com isso ele nada mais deseja senão seguir pelo caminho da Verdade de Deus, e dirá por fim em seu coração: “Eu escolhi o caminho da Verdade, e me conformo às Tuas normas” (Sl119:30). O resultado final dessa sábia escolha será sua própria salvação: “Quem age com sabedoria será salvo” (Pv28:26).

Um tal ser humano terá se tornado também, como conseqüência natural de sua sabedoria adquirida, muito mais humilde, pois terá adquirido um vislumbre claro do verdadeiro papel que exerce dentro da Criação, porque “se alguém julga saber alguma coisa, ainda não sabe como deveria saber” (1Co8:2). Assim, ele se torna a comprovação viva de que “com os humildes está a sabedoria” (Pv11:2). Essa contingência de humildade associada à verdadeira sabedoria pode sempre ser observada junto aos legítimos sábios. Quando o filósofo grego Sócrates, por exemplo, recebeu do oráculo de Delfos o honroso título de “o mais sábio dos homens”, respondeu que isso se devia ao fato de ser o único que sabia que nada sabia… Vemos aí a comprovação de que “diante da honra vai a humildade” (Pv18:12), ou de que “o humilde de espírito obterá honra” (Pv29:23).

A verdadeira humildade brota naturalmente do coração, pela percepção da pequenez humana diante da magnificência e perfeição da obra da Criação. É uma característica pessoal, íntima. Jamais tentará se evidenciar mediante frases de efeito ou situações arranjadas, que nada mais são do que elucubrações do raciocínio com o único fito de provar a todo custo que... se é “humilde”! A legítima humildade não é formada por tais lantejoulas nem se apóia nelas. Um tal teatro pode até fazer com que o respectivo ator pareça ser uma pessoa modesta, não porém humilde. A modéstia é uma virtude que se evidencia externamente, e por isso pode ser dissimulada e apresentada como tal. A humildade não. A humildade real se evidencia interiormente, moldando-se numa oração e adoração permanentes, silenciosas e intensas, ao Todo-Poderoso Criador, pelo reconhecimento da inconcebível graça de poder existir. Desse modo, um ser humano altivo pode perfeitamente trazer em si a legítima humildade, e devido a isso apresentar também uma modéstia normal, ao passo que um outro que se esforça em parecer muito modesto aos olhos de seus pares, freqüentemente tem a alma cheia de vaidade e presunção, na qual não há nenhum lugar para a humildade. Todavia, só um interlocutor que faça uso de sua intuição pode perceber a diferença entre essas duas espécies de seres humanos, sem se deixar enganar pelas aparências.

Voltando ao processo do desenvolvimento humano, constatamos que a humanidade como um todo não quis trilhar aquele caminho de evolução natural, rumo à aquisição da legítima sabedoria e da autoconsciência do existir, da qual decorre a legítima humildade como conseqüência natural, mas preferiu seguir pelas falsas veredas indicadas pelo raciocínio unilateralmente cultivado, seu idolatrado pecado original. Por parte da Luz todos os esforços possíveis foram feitos para que os seres humanos reconhecessem ainda em tempo o erro que estavam cometendo com a glorificação do seu raciocínio e se libertassem rapidamente daquela situação insana, cujo resultado final só poderia ser sua própria e automática destruição, para preservação da integridade da obra de Deus e dos outros seres que nela vivem.

Ainda em tempo… porque tudo na Criação dispõe de um prazo estabelecido para se efetivar. Depois da semeadura vem o desenvolvimento, a frutificação e a colheita. Com o espírito humano – que como tudo o mais está submetido às mesmas leis – ocorre exatamente da mesma forma. Também para o gênero humano “o fim tem data marcada” (Dn8:19).

As boas sementes da semeadura do Filho do Homem mencionadas no início deste capítulo, provenientes do Paraíso, deveriam se desenvolver e por fim dar magníficos frutos por ocasião da messe. Agora, na época da colheita, no assim chamado Juízo Final, todos os espíritos humanos já deveriam estar plenamente amadurecidos, prontos para retornar conscientemente à sua verdadeira Pátria espiritual, o Paraíso. O Paraíso é “a nossa Pátria que está nos céus” (Fp3:20), a denominada Jerusalém celeste bíblica, a “cidade do Deus vivo” (Hb12:22), que o apóstolo Paulo chama de “nossa mãe” (cf. Gl4:26). É a cidade das “ruas de ouro” (cf. Ap21:21), iluminada pela “glória de Deus” (Ap21:23), o lugar da “assembléia dos primogênitos, cujos nomes estão escritos nos céus” (Hb12:23). A imagem da Jerusalém celeste que desce do céu (cf. Ap3:12;21:2), vista em espírito pela vidente que recebeu o Apocalipse (cf. Ap21:10), quer indicar que, após o Juízo, a Terra terá se tornado tal como é no Paraíso, onde impera exclusivamente a Vontade de Deus. Será o tempo da efetivação do clamor expresso na oração Pai Nosso: “Venha a nós o vosso reino”. Nesse tempo a Terra será assim como é a Jerusalém celeste, e “as nações andarão à sua luz, e os reis da terra levar-lhe-ão a sua opulência” (Ap21:24). Então “nunca mais entrará nela o que é impuro, nem alguém que pratique a abominação e a mentira; entrarão nela somente os que estão inscritos no Livro da Vida do Cordeiro” (Ap21:27); “a morte não existirá mais, e não haverá mais luto, nem grito, nem dor, porque as coisas anteriores já passaram” (Ap21:4). As coisas ruins antigas, de antes do Juízo, já terão sido extintas, e toda dor e pavor provocados pelos seres humanos, inclusive a morte espiritual, não existirão mais na Criação. Será a morte da morte.

O livro do Gênesis menciona a saída do Paraíso (o reino espiritual) das boas sementes inconscientes, os germes de espíritos humanos, com a expressão alegórica “tendo expulso o ser humano…” (Gn3:24). Esse fato não foi nenhum castigo decorrente do pecado original, que ainda não havia ocorrido, mas sim um processo indispensável e natural no curso do desenvolvimento progressivo. Do mesmo modo, a imagem da paulatina conscientização do germe humano, com o reconhecimento de sua nudez e a necessidade de se cobri-la, também foi um fenômeno natural: “Os olhos de ambos se abriram e souberam que estavam nus. Tendo costurado folhas de figueira, fizeram tangas para si” (Gn3:7). Essa imagem mostra a contingência indesviável para o germe espiritual de se cobrir com invólucros de mesma espécie do ambiente, em seu percurso descendente rumo à materialidade grosseira. O Gênesis ainda diz que “o Senhor Deus fez para Adão e sua mulher roupas de pele com as quais os vestiu” (Gn3:21). No popular livro apócrifo de Jubileus, escrito em meados do século II a.C., o Criador também presenteia o homem e a mulher com vestimentas quando eles saem do Paraíso. O grande teólogo Orígenes (185 – 253), de quem falarei daqui a pouco, afirmava que as folhas que Deus deu a Adão e Eva no Jardim após a queda eram, na verdade, os corpos deles, pois antes eram espíritos puros...

Essa metáfora bíblica sobre o reconhecimento da nudez pelo casal humano, e a necessidade que ambos sentiram de cobri-la quando se lhes despertou a noção do bem e do mal, é um quadro que evidencia o início do processo de conscientização do espírito humano, objetivo último e fundamental de sua passagem pelas várias partes da Criação, e que lhe possibilita, por fim, o próprio retorno ao Paraíso. Para um espírito desenvolvido, que já tenha angariado um determinado grau de autoconsciência, corpo e alma serão sempre invólucros intangíveis, absolutamente invioláveis e incorruptíveis. Jamais uma tal pessoa, assim evoluída, consentiria ter o corpo exposto à contemplação pública, nem tampouco a alma desnudada diante de pretensos especialistas anímicos. Seu inabalável sentimento de pudor é a mais forte proteção contra a degradação de sua elevada condição humana.

Como o sentimento do pudor está diretamente relacionado ao nível de conscientização, ele é, sim, uma medida exata, direta e infalível, do próprio valor espiritual do indivíduo. Um ser humano que tenha afastado de si todo o pudor é um ser vazio espiritualmente. E um ser vazio espiritualmente deixou de cumprir sua prerrogativa fundamental, a própria razão de sua existência, que é a obtenção e manutenção da autoconsciência adquirida em suas peregrinações pelas materialidades. Naturalmente, essa medida infalível é válida também no caso oposto, e nos dois sentidos. Assim, quanto mais enobrecido for um ser humano, tanto mais íntegro e inabalável será seu sentimento de pudor, corporal e anímico, com o que ele também cumpre da forma mais natural o conselho tão importante: “Não abras o coração a qualquer um” (Eclo8:22).

O castigo, propriamente dito, derivado do pecado original, foi a impossibilidade, também absolutamente automática, de o germe espiritual poder retornar ao Paraíso como espírito autoconsciente. Essa exclusão definitiva do Paraíso foi, portanto, provocada pelo próprio ser humano muito tempo depois de sua saída de lá como semente espiritual, devido ao seu voluntário acorrentamento à matéria, decorrente do supercultivo do raciocínio – o pecado original – com o conseqüente enfraquecimento de seu espírito.

Desde a eclosão do pecado original não faltaram auxílios à humanidade desencaminhada, cada vez mais perdida no labirinto de seus erros. De tempos em tempos foram enviados a ela espíritos auxiliadores, a fim de adverti-la e exortá-la a retomar o caminho certo. Krishna, Lao-Tse, Zoroaster, Buda, Maomé e ainda outros foram espíritos auxiliadores. (8) Suas doutrinas eram originalmente puras e correspondiam à Verdade, adaptadas logicamente às respectivas épocas e povos.

Os ensinamentos ministrados pelos auxiliadores dos tempos antigos mostravam porque, onde e como os seres humanos estavam errando, e a maneira de corrigir o erro a tempo, de modo que quando chegasse a época do Juízo Final todos estivessem aptos a subsistir espiritualmente. Por isso, eles também são chamados Precursores ou Preparadores do Caminho, isto é, aqueles que vieram antes da chegada do Juiz, o Filho do Homem, para preparar o caminho dele, ou, dito de outra forma, para preparar as almas humanas para sua vinda.

Os Precursores advertiram e exortaram as criaturas humanas para que elas se modificassem ainda em tempo e pudessem retomar o caminho do reconhecimento da Verdade, com a conseqüente evolução de seus espíritos. Caso contrário, as sementes espirituais humanas, que antes do pecado original se desenvolviam maravilhosamente no grande campo de cultivo da matéria, acabariam se perdendo, por imprestáveis e nocivas. Exatamente como se dá também numa lavoura, quando sementes estragadas não conseguem germinar ou dão origem a plantas fracas, tendo de ser descartadas por ocasião da colheita.

As doutrinas trazidas por esses espíritos preparados, em épocas para isso bem determinadas, eram em todos os sentidos puras e verdadeiras, embora com formas diferentes, consentâneas às características dos povos a que eram destinadas. Todavia, em razão de a humanidade como um todo ter se desviado do caminho ascendente, invariavelmente acontecia algo insólito: decorrido certo tempo da morte do respectivo preceptor, os dirigentes que o sucediam começavam a imiscuir coisas estranhas à doutrina, de modo que esta acabava se transformando em algo muito diferente dos ensinamentos originais, tornando-se por vezes até mesmo contrária a estes. Os sucessores envolviam a verdade das doutrinas originais em mentiras inventadas, consciente ou inconscientemente, quase sempre com vistas a angariar maior poder e influência terrenais. Isso acontecia sempre, decorrente do avanço crescente e ininterrupto da mentira sobre a Terra, em todos os campos da vida humana, como um dos mais asquerosos frutos do domínio do raciocínio sobre o espírito. Foram esses dirigentes, pois, os que “mudaram a Verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador” (Rm1:25); são eles igualmente os “homens de espírito corrompido e desprovidos de Verdade, que julgam ser a piedade uma fonte de lucro” (1Tm6:5), e que exploram os adeptos com palavras mentirosas: “Por ganância, vos explorarão com palavras mentirosas” (2Pe2:3). Essa conduta de desvirtuamento posterior de doutrinas corretas é tão antiga, que o livro de Juízes (governadores), com data estimada de redação no século X a.C., já dá indicações a respeito:

“Sempre que suscitava juízes, o Senhor estava com o juiz. Enquanto o juiz vivia, o Senhor livrava os israelitas das mãos dos inimigos, (...). Mas, quando o juiz morria, eles voltavam a corromper-se, mais ainda que seus pais, seguindo deuses estranhos para os servir e adorar.”

(Jz2:18,19)

Pode-se dizer que a humanidade inteira (salvo raríssimas exceções) rejeitou os auxílios trazidos pelos Precursores, auxílios enviados com imenso cuidado e Amor pela Luz, para os desencaminhados seres humanos terrenos: “Eles foram rebeldes à Luz, ignoraram seus caminhos e não permaneceram em suas veredas” (Jó24:13). Foram rebeldes contra seu Criador, que é a própria Luz e o Amor (cf. 1Jo1:5;4:8).

Também os profetas bíblicos dos tempos antigos foram espíritos auxiliadores. Advertiram e exortaram, sempre com vistas a uma mudança de atitude da humanidade, para que no final dos tempos ela estivesse apta a subsistir no Juízo Final. Entretanto, seus esforços foram igualmente em vão: “O Senhor lhes enviou profetas para os reconduzir a Si; estes profetas testemunharam contra eles, mas eles não deram ouvidos” (2Cr24:19). Os profetas dos tempos antigos não foram ouvidos, e “seu sangue foi derramado sobre a terra, desde o justo Abel até Zacarias” (Mt23:35). Significativamente, o nome Zacarias tem o sentido de “Yahweh se lembra”… (9)

Os auxílios provenientes da Luz não surtiram efeito, “os profetas foram mortos e os enviados apedrejados” (Mt23:37; Lc13:34). Esta situação é descrita na segunda parte da parábola dos lavradores maus, mencionada anteriormente:

“Ao tempo da colheita, enviou os seus servos aos lavradores, para receber os frutos que lhe tocavam. E os lavradores, agarrando os servos, espancaram um, mataram outro, e a outro apedrejaram. Enviou ainda outros servos em maior número, e trataram-nos da mesma sorte.”

(Mt21:34-36)

No próprio Antigo Testamento já haviam surgido indicações claras desse comportamento inacreditável, como descrito nessas passagens: “Foram rebeldes e revoltaram-se contra Ti. Rejeitaram a Tua Lei, mataram os Teus profetas, que os repreendiam para se converterem a Ti. Cometeram grandes abominações” (Ne9:26); “O Senhor, Deus de seus pais, começando de madrugada, falou-lhes por intermédio dos Seus mensageiros, porque se compadecera do Seu povo e da sua morada. Eles, porém, zombaram dos mensageiros, desprezaram as palavras de Deus e mofaram dos seus profetas, até que subiu a Ira do Senhor contra o Seu povo, e não houve remédio algum” (2Cr36:15,16).

A expressão “começando de madrugada” indica que os auxílios enviados pelo Criador chegaram logo, assim que se tornou evidente que os seres humanos haviam enveredado por um caminho falso.

Naquela época longínqua, as sementes humanas já estavam então irremediavelmente “cobertas de espinhos” (Mt13:22; Mc4:18,19; Lc8:14), só se interessando ainda pelos aspectos materiais de suas existências, não tendo mais nenhum anseio pela vida espiritual. Isso também foi uma decorrência direta do pecado original, que elevara o raciocínio a ídolo. Como ele, o raciocínio, é um produto do cérebro humano terreno, sempre divisará valores unicamente em coisas materiais, que dão frutos materiais, terrenalmente visíveis e palpáveis, sem se aperceber que tais frutos não contêm nenhuma vida, visto não provirem do espírito. Os frutos do raciocínio serão sempre produtos da árvore do conhecimento, nunca da árvore da vida; serão sempre frutos efêmeros, jamais eternos. Essa árvore da vida é mesmo de vital importância para a criatura humana, apesar de a humanidade terrena nada saber de sua forma e localização. O fato de justamente o primeiro e último livros da Bíblia fazerem menção a essa árvore da vida (cf. Gn2:9;3:22,24; Ap2:7;22:2,14,19) deveria sinalizar aos pesquisadores o grau de relevância dessa árvore extraordinária, tema difundido também em muitas mitologias. Os povos antigos tinham exato conhecimento dela; sabiam que não se tratava de nenhum conceito abstrato e sim de uma árvore real, embora não localizada na matéria visível. Na obra A Grande Pirâmide Revela Seu Segredo, Roselis von Sass traz a descrição que um antigo sábio da Caldéia, de nome Aphek, futuro sacerdote-rei do país, fez dessa árvore. É uma exposição de impressionante beleza, que todos os pesquisadores sinceramente interessados deveriam conhecer.

Somente quem se nutre dessa árvore da vida, pela maneira correta de viver, pode produzir frutos espirituais. Em contraste com os do raciocínio, os frutos ou obras do espírito contêm vida em si, e por isso trazem valores verdadeiros, perenes. Por isso, Jesus disse aos seus ouvintes que no futuro, ou seja, quando estivessem novamente encarnados na Terra, reconheceriam dessa maneira os responsáveis por esses valiosos frutos espirituais: “Assim, pois, é por seus frutos que os conhecereis” (Mt7:20). Por seus frutos ou por suas obras significa por sua atuação, isto é, pelo seu modo de ser, em suma, por tudo quanto deles emana: pensamentos, palavras e atos. Se eles pertencessem à Luz, então os frutos de seu atuar só poderiam ser bons, pois “o fruto da Luz se chama: bondade, justiça, verdade” (Ef5:9). Àqueles servos do futuro, Jesus se dirigiu nos seguintes termos em seu tempo: “Vós sois a luz do mundo. (…) Assim brilhe também a vossa luz diante das pessoas, para que vejam as vossas boas obras e louvem o vosso Pai que está nos céus” (Mt5:14,16). Àqueles servidores e também a todas as outras pessoas que agissem como tal, que produzissem os mesmos bons frutos, seria entregue o reino de Deus: “[O reino de Deus] será entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos” (Mt21:43).

Por outro lado, quem hoje se deixa engodar pelos frutos do raciocínio, como o são as falsidades da fé cega e tanta coisa mais, mostra não ter dado atenção a essa advertência de Cristo, e nem procurado pelas boas obras daquelas pessoas. As obras rígidas do raciocínio procuram aparentar vida sem tê-la, assim como os seres humanos de puro raciocínio que a elas se dedicaram. No final do segundo volume deste livro, veremos que essa auto-ilusão do ser humano de raciocínio, já morto espiritualmente, não se sustentará diante do Juiz, que lhe diz: “Conheço tuas obras: tens fama de estar vivo, mas estás morto!” (Ap3:1).

Assim aconteceu que durante todo o período concedido para o seu desenvolvimento, a maior parte da humanidade preferiu prosseguir pelo caminho antinatural. Ela se desenvolveu sim, mas no sentido inverso do preconizado pelas leis naturais. Com isso, acabou assinando sua própria sentença de morte. E assinou-a conscientemente, com um sorriso de superioridade, desafiando abertamente seu Criador, desprezando todos os auxílios vindos de cima, escarnecendo das inúmeras advertências e exortações que lhe foram dirigidas para que retomasse ainda em tempo o caminho natural levianamente abandonado. Uma tragédia colossal, cuidadosamente preparada pelos próprios atingidos por ela…

Visto de cima, o quadro se afigurava desesperador, já bem antes da época de Jesus. O tempo da colheita das sementes humanas se aproximava e elas não se desenvolviam como fora previsto, apesar dos esforços envidados pelo Alto. Salvo sempre raras, muito raras exceções, elas não atentavam às palavras admoestadoras dos Precursores e dos profetas. Contudo, se não se modificassem a tempo, só haveria por fim joio a ser colhido no campo de trigo; todas estariam perdidas quando chegasse a época do Juízo Final, e “o Filho do Homem já não encontraria fé na Terra” (Lc18:8).

Por isso, como recurso extremo, como o maior de todos os auxílios aos transviados e por isso mesmo arrogantes e vaidosos seres humanos terrenos, “vindo a plenitude do tempo Deus enviou Seu Filho” (Gl4:4) a essa Terra tão conspurcada. Jesus foi a Palavra de Deus encarnada, o Amor do Pai que peregrinou pelo mundo. Quão imenso foi esse acontecimento, ser humano algum jamais poderá compreender. Em lugar algum e em tempo algum poderá compreender, pois o alcance de tal ato de graça ultrapassa em muito a capacidade de assimilação do espírito humano.

Se a humanidade como um todo não tivesse construído tão diligentemente a estrada larga do mal, nem enveredado tão cheia de si por ela rumo ao abismo, a vinda de Jesus não teria sido necessária. Mas, para que os poucos bons não acabassem sendo arrastados conjuntamente no sorvedouro lúgubre das trevas cada vez mais densas, para que suas pequenas chamas espirituais se conservassem acesas até a época do Juízo Final, o Amor de Deus se dispôs a descer até esta Terra. Chegou aqui para desobstruir e indicar novamente para eles o estreito caminho que conduzia às alturas, o qual se achava por demais maltratado, muito mal cuidado, em virtude de ter sido escassamente utilizado até então, porque fora já completamente esquecido e abandonado por todos. Jesus veio à Terra para mostrar à humanidade esse caminho certo para cima. Ele o reabriu, para que pudéssemos seguir por ele e assim encontrarmos a salvação. Por conseguinte, quem quiser seguir por esse caminho, “deve, pessoalmente, caminhar como Jesus caminhou” (1Jo2:6), ou seja, deve em tudo agir segundo o exemplo dado por Jesus.

Foi essa, unicamente, a necessidade da vinda do Filho de Deus à Terra, o profetizado e aguardado Messias, (10) o único que ainda poderia trazer salvação às sementes humanas em via de se perder no campo de cultivo da matéria. Foi este o verdadeiro e único sacrifício de Amor do Pai. Uma tentativa desesperada, extremada, conforme indicado na parábola da figueira estéril, que veremos mais à frente. O descaminho da humanidade, que alguns séculos antes já indicava uma situação de urgência, transformou-se em emergência no tempo de Jesus. Foi, sim, por culpa exclusiva dos homens que a primeira aliança do Senhor apresentou defeito, tornando necessária a vinda do Filho de Deus para estabelecer uma segunda: “Se a primeira aliança fosse sem defeito, não se procuraria substituí-la por uma segunda” (Hb8:7). Transcrevo aqui um trecho da dissertação “Deus”, da obra Na Luz da Verdade, a Mensagem do Graal de Abdruschin:

“A cada geração se foi alargando mais o abismo e os seres humanos cada vez mais se algemavam à Terra. Tornaram-se seres humanos de raciocínio atados à Terra, que se chamam materialistas, denominando-se assim até com orgulho, porque não se dão conta das suas algemas, visto que naturalmente, com a condição de estarem firmemente atados ao espaço e ao tempo, seu horizonte se estreitava simultaneamente.

Como devia ser encontrado, a partir daí, o caminho para Deus?

Era impossível, se o auxílio não viesse de Deus. E Ele se apiedou. O próprio Deus em Sua Pureza não mais podia se revelar aos baixos seres humanos de raciocínio, porque estes não estavam mais capacitados a sentir, ver ou ouvir Seus mensageiros, e os poucos que ainda o conseguiam eram ridicularizados, porque o horizonte estreitado dos materialistas, atados apenas ao espaço e ao tempo, recusava cada pensamento, referente a uma ampliação existente acima disso, como sendo impossível, porque para eles era incompreensível.

Por isso também não bastavam mais os profetas, cuja força já não conseguia se fazer valer, porque, por fim, até os pensamentos básicos de todas as tendências religiosas haviam-se tornado puramente materialistas.

Portanto, tinha que vir um mediador entre a divindade e a humanidade transviada, e que dispusesse de mais força do que todos os outros até então, para poder se fazer valer. Poder-se-ia perguntar: por causa dos poucos que, sob o mais crasso materialismo, ainda ansiavam por Deus? Estaria certo, mas seria denominado pelos adversários preferencialmente como presunção dos fiéis, ao invés de reconhecerem nisso o Amor de Deus e ao mesmo tempo severa Justiça, que com a recompensa e o castigo oferecem ao mesmo tempo salvação.

Por esse motivo Deus, em Seu Amor, por um ato de Vontade, separou uma parte de Si mesmo, encarnando-a num corpo humano do sexo masculino: Jesus de Nazaré, daí por diante o Verbo feito carne, o Amor de Deus encarnado, o Filho de Deus!”

O Verbo feito carne! Uma parte do Amor do Criador encarnada aqui na Terra, o “Filho do Seu Amor” (Cl1:13) junto de nós! Ensinando, advertindo, exortando, procurando salvar do desastre iminente! Durante algumas poucas décadas, as atenções nas muitas moradas da Casa do Pai estiveram voltadas diretamente para cá, para o nosso pequeno planeta, desde aquela singela noite em Belém, num estábulo de carneiros, até o terrível desfecho do Gólgota. O resultado de um tão imenso ato de graça para a humanidade está indicado na última parte da parábola dos lavradores maus, proferida por Jesus poucos dias antes de ser morto:

“E por último enviou-lhes o seu próprio filho, dizendo: A meu filho respeitarão. Mas os lavradores, vendo o filho disseram entre si: Este é o herdeiro; ora, vamos, matemo-lo, e apoderemo-nos de sua herança. E, agarrando-o, lançaram-no fora da vinha e o mataram.”

(Mt21:37-39)

  1. A palavra “Bíblia” é originada do grego biblos, que designa a casca interior do junco de que era feito o papiro. A antiga cidade portuária fenícia de Biblos levava esse nome devido ao intenso comércio de papiros. O conceito atual é de “conjunto de livros”. Estima-se que a distribuição da Bíblia, completa ou em partes, já tenha atingido mais de dois bilhões de exemplares em todo o mundo. Retornar
  2. O termo “profeta” se origina do grego profanai, que significa literalmente “falar em nome de alguém”, portanto não necessariamente sobre acontecimentos futuros. Em hebraico o termo é nabí, tal como aparece em Ezequiel por exemplo: “Saberão que existe um nabí no meio deles” (Ez2:5). A raiz desse termo nabí tem o sentido de “convocar”, “chamar”, de modo que, no Antigo Testamento, o profeta se apresentava e atuava no meio do povo como um convocado pelo Alto. Por conseguinte, não era um trabalho que pudesse ser exercido por vocação pessoal, mas sim por convocação de cima. Retornar
  3. Sobre os seres oriundos desse plano da Criação, ver O Livro do Juízo Final, de Roselis von Sass. Retornar
  4. Lamentavelmente, esse mesmo livro de Levítico fala também da necessidade de sacrifícios e holocaustos de animais, como se fossem agradáveis ao Senhor. Voltarei ao assunto no segundo volume desta obra. Retornar
  5. A respeito dessa época, ver a obra Os Primeiros Seres Humanos, de Roselis von Sass. Retornar
  6. Antíoco significa antagonista, e Epífanes vem de epifania, porque esse rei acreditava ser a manifestação de Zeus na Terra. Seus subalternos o chamavam de “Epímanes”, que significa “o louco”. Retornar
  7. Sobre esse tema, ver a dissertação “O Ser Humano e Seu Livre-Arbítrio”, no segundo volume da obra Na Luz da Verdade, de Abdruschin. Retornar
  8. O leitor que se interessar pela vida e obra de Lao-Tse, Zoroaster e Buddha, encontrará os esclarecimentos que procura nas obras de mesmo nome publicadas pela Editora Ordem do Graal na Terra. Retornar
  9. A palavra Yahweh é uma das formas transliteradas do nome de Deus existente no Antigo Testamento hebraico, com quatro letras, as quais também podem aparecer de forma variada: YHVH, JHVH, JHWH, IHVH, YHWH. Os antigos autores judeus achavam que o nome do Criador era de tal forma sagrado que devia ser impronunciável, no que eram naturalmente ajudados por seu alfabeto consonantal. Em seu lugar eles diziam: Adonai – o Senhor, HaShem – o Nome, ou Shekhinah – a Presença. A antiga forma abreviada Yah foi utilizada na composição do grito hebraico de louvor “louvai Yah” – hallelû Yah, de onde adveio a expressão “aleluia”. As outras formas mais conhecidas de transliteração para o português do nome Yahweh são: Iavé, Javé, Jeová. Retornar
  10. A palavra Messias provém do hebraico Mashiah – Escolhido ou Ungido, traduzido para o grego como Khristos (de khrio – ungido), de onde se originou o termo “Cristo”. A palavra Cristo não é, portanto, um nome próprio, mas sim um título atribuído a Jesus, conforme transparece nas confissões de Pedro: “[Tu és] o Cristo de Deus” (Lc9:20); “Deus o constituiu Senhor e Cristo” (At2:36). Retornar