Aspectos Desconhecidos da Doutrina de Cristo

Possessões

Nos Evangelhos há várias passagens em que Jesus aparece expulsando demônios e espíritos imundos. Contudo, esses casos são retratados de maneiras bem diversas pelos evangelistas, como se a denominação empregada em cada um deles não fizesse nenhuma diferença.

No Evangelho de Mateus, por exemplo, Jesus é apresentado a um “endemoninhado mudo” (Mt9:32), enquanto que no de Lucas ele aparece nesse caso expulsando um “demônio que era mudo” (Lc11:14).

Numa outra passagem, contida no Evangelho de Mateus, um pai implora a Jesus que cure seu filho, que era “lunático” (Mt17:15) (1); em Marcos, porém, o pai fala que seu filho é possesso de “um espírito mudo” (Mc9:17); já em Lucas o mesmo pai diz simplesmente que um “espírito” se apoderara de seu filho (Lc9:39). Jesus cura o filho, mas os evangelistas não chegam a um acordo como isso se dá. Em Mateus Jesus “repreende o demônio” (Mt17:18); em Marcos ele ordena que o “espírito mudo e surdo saia do jovem” (Mc9:25); e em Lucas Jesus “repreende o espírito imundo” (Lc9:42).

Num terceiro caso a confusão se repete. Em Marcos, aparece na sinagoga um homem “possesso de espírito imundo” (Mc1:23), enquanto que em Lucas esse mesmo homem está “possesso de espírito de demônio imundo” (Lc4:33).

Essa miscelânea de denominações mostra que os próprios evangelistas não compreendiam o fenômeno em si. A começar pelo significado da palavra demônio.

Quando Lúcifer desceu para as materialidades, foi seguido de um séquito de espíritos auxiliares. Tratava-se de espíritos que puderam se desenvolver nos planos espirituais da Criação, contudo não eram anjos nem demônios. Também nunca foram seres humanos terrenos. Em cumprimento ao falso princípio de seu amo, esses espíritos auxiliares passaram a influenciar de maneira errada os seres humanos que viviam na Terra (particularmente a mulher), concitando-os a agir de modo contrário às determinações do Criador. Contudo, não eram nenhuma tropa de diabos. Não há, nem nunca houve, nenhuma legião de capetas rubros exalando enxofre, com patas bifurcadas e chifres pontudos, rabos de flecha e asas pretas, apoquentando almas humanas com tridentes fumegantes e adorando o Tinhoso-mór, Satanás. (2) Os asseclas de Lúcifer lançavam suas más influências sobre os seres humanos terrenos, mas não tinham a aparência disforme que a imaginação humana lhes concedeu e nunca “possuíram” pessoas para atormentá-las.

Demônios, na acepção da palavra, são gerados pelos próprios seres humanos. São as configurações de matéria fina formadas por suas intuições más, como o ódio, a inveja, a cobiça, a avareza, etc. Não são, porém, entes vivos, possuidores de vontade própria, mas apenas a expressão formada da vontade intuitiva má de seus geradores. Apesar disso, essas configurações maléficas são capazes, sim, de influenciar poderosamente as pessoas que lhe permitem a aproximação, por alimentarem alguma espécie igual em seu íntimo. O ser humano que desse modo der guarida a essas conformações alheias pode, portanto, ficar sob forte influência demoníaca, mas em nenhuma hipótese ser possuído por elas. Quem, por exemplo, nutre inveja em seu coração, acaba ficando sob a influência demoníaca da inveja (cf. Tg3:14,15).

No início do Cristianismo, o grande teólogo Orígenes já enumerava várias inclinações pecaminosas, cada uma delas associada a um demônio em particular. Nada a ver diretamente com Satã (Lúcifer), que segundo ele fora criado bom, mas se desviara de Deus... No século XVI, na Alemanha, os clérigos católicos e protestantes também acertavam, sem o saberem, quando falavam em seus sermões de demônios da bebedeira, da usura, da moda, da adulação, da mentira, etc. Nesse sentido, o livro apócrifo Testamento dos Doze Patriarcas também fala com acerto de “demônios em atividade” na embriaguez, na luxúria e na raiva manifestada pelos seres humanos. Outro texto apócrifo, o Livro de Tomé, traz na mesma linha a seguinte advertência atribuída a Jesus: “Ai de vós que estais submetidos às atividades de demônios perversos.”

A palavra grega daimónion não tem gênero, é neutra, indicando não uma pessoa e sim uma configuração ruim, perversa, capaz de causar danos ao ser humano para o qual foi atraída e em quem pôde se agarrar, devido à espécie igual. Antigos relatos babilônicos falam que os demônios causam enfermidades, perturbam a ordem das coisas, provocam desentendimentos nas famílias e arruínam as pessoas.

Por conseguinte, é um erro estabelecer uma correlação entre endemoninhado e possesso, como se fossem a mesma coisa. O primeiro está sob influência demoníaca de alguma configuração intuitiva má, enquanto que o segundo está realmente possesso de um espírito humano desencarnado. Essa confusão aparece explicitada na seguinte passagem: “Chegada a tarde, trouxeram-lhe muitos endemoninhados, e ele meramente com a palavra expeliu os espíritos, e curou todos os que estavam doentes” (Mt8:16).

Já quando Filipe pregava na Samaria, Lucas diz corretamente em Atos dos Apóstolos que “de muitos possessos saíam espíritos malignos, soltando grandes gritos” (At8:7). E numa outra ocasião, quando Paulo se cansou daquela jovem que os seguia, possuída que estava de um “espírito de adivinhação”, ele “acabou voltando-se e disse para o espírito: ‘Em nome de Jesus Cristo, eu te ordeno: Sai dessa mulher!’ E, no mesmo instante, o espírito saiu.” (At16:18).

Possessão só pode ocorrer por intermédio de um espírito humano que já tenha deixado seu invólucro terreno. Em algumas situações uma pessoa aqui na Terra pode ter seu corpo possuído, em grau maior ou menor, por um espírito humano desencarnado. Tal pessoa pode então praticar ações de acordo com a vontade do espírito possuidor e não mais dela própria. São esses então os casos legítimos de possessões, e foram esses que Jesus curou, ao expulsar o espírito humano invasor.

Contudo, somente um espírito fraco, estagnado, pode permitir que um espírito estranho tome posse de seu corpo. Jesus aludiu à necessidade de o espírito ser forte, isto é, atuante, para evitar a possessão corpórea:

“Quando o homem forte, com suas armas, guarda o seu palácio, o que lhe pertence está em segurança.”

(Lc11:21)

Caso esse espírito se torne fraco pela inatividade e falta de vigilância, pode acontecer que “sobrevindo um mais forte que triunfe sobre ele, tome-lhe todo o armamento no qual ele punha a sua confiança e distribua os seus despojos” (Lc11:22). Jesus nunca deixava de prestar auxílio verdadeiro aos seres humanos, com palavras adequadas, para sanar as fraquezas deles.

Aliás, a índole do Salvador, sempre pronta a auxiliar, já nos permite descartar de pronto aquele episódio no Evangelho de Mateus sobre a mulher cananéia (ou siro-fenícia segundo Marcos), que depois de pedir sua intercessão para a filha possessa, teria ouvido dele que “não fica bem tirar o pão dos filhos para jogá-lo aos cachorrinhos” (cf. Mt15:26; Mc7:27). Imagina só se Jesus diria uma tal coisa… negar auxílio a uma mulher só porque ela era pagã, e ainda mais fazendo uso do argumento preconceituoso dos judeus daquela época, para quem os gentios eram apenas “cães”.

Do mesmo modo, é um absurdo palmar supor que Jesus tenha amaldiçoado uma figueira, fazendo-a secar, só porque não era época de figos e ele estava com fome… (cf. Mt21:18-20; Mc11:12-14,20-21). Como é possível surgirem extensos estudos e grossos tratados tentando esclarecer semelhante invencionice? E dessas há tantas mais… Como pode alguém acreditar que o Messias tenha dito, por exemplo, que “há homens que se fizeram eunucos a si mesmos, por causa do reino do céu” (Mt19:12)? O que será que Paulo pensaria disso, para quem a própria circuncisão já era uma mutilação? (cf. Gl5:11,12). Aliás, longe de prescrever o celibato, Paulo só se preocupava em que o bispo ou o presbítero fosse “esposo de uma só mulher” (1Tm3:2; Tt1:6). Cumprindo isso já estava ótimo.

Se as pessoas usassem um pouco mais sua intuição, sem acreditar credulamente em qualquer contra-senso que lhes cai no colo, tornar-se-iam mais lúcidas e conscientes, e com isso também mais valiosas dentro da obra da Criação. Não se portariam mais como espectadores apáticos que aceitam broncamente qualquer explicação antinatural, tal qual uma manada seguindo o toque do berrante.

Assim, também não precisariam estancar embaraçadas nem quebrar a cabeça diante da imagem do bom ladrão no Paraíso com Jesus (cf. Lc23:43). Tal coisa simplesmente não aconteceu. O bom ladrão ascendeu, sim, ao Paraíso depois de sua morte terrena, mas Jesus ainda permaneceu no âmbito da matéria por cerca de 40 dias, que consistiu no tempo de suas aparições pós-morte. Depois disso o Filho de Deus subiu aos céus e se reunificou ao Pai, o que se deu numa altura infinitamente acima do plano onde se encontra o Paraíso, a pátria espiritual dos seres humanos.

Ainda em relação às mencionadas possessões, cabe ressaltar que um espírito humano pode possuir o corpo de uma pessoa, mas nunca o de um animal. A diferença entre as espécies não permite tal coisa. Já as diferenças marcantes entre as composições sanguíneas do homem e do animal comprovam, até cientificamente, essa impossibilidade. No ser humano, é o espírito que contribui para a formação do sangue, enquanto que no animal é a alma enteal. O núcleo vivificador de ambas as espécies é completamente distinto, e por isso também o é a composição do respectivo sangue. Caso somente o corpo formasse o sangue, a semelhança teria de ser muito maior. (3) Como é o núcleo vivo que propriamente forma o sangue – espírito no ser humano e alma enteal no animal – pode-se então dizer que “a vida de toda a carne é o seu sangue” (Lv17:14), ou que “a vida de um ser vivo está no sangue” (Lv17:11). Quando o sangue deixa de existir em sua condição real, significa então que o espírito se desligou do corpo, ou seja, é sinal de que ocorreu a morte terrena. Com base nisso, o leitor pode fazer uma idéia do que sente uma pessoa que tem seus órgãos retirados para transplante, intervenção que tem de ocorrer enquanto o coração ainda está batendo…

Possessão de um animal é, pois, coisa impossível, em qualquer circunstância. Por isso, aquela estória de demônios que entram numa manada de porcos “por ordem” de Jesus (Mt8:31,32), ou com o “seu consentimento” depois de terem implorado por isso (Mc5:12,13; Lc8:32), para logo em seguida se precipitarem no abismo e afundarem no mar da Galiléia, também não corresponde à realidade. É uma impostura, um embuste inserido na história da vida de Jesus por algum fanático místico, que nunca fez parte no texto original e só serviu para denegrir a atuação do Mestre. Um tal ato seria uma arbitrariedade completa, que teria redundado na morte de animais inocentes. Nota-se aí a influência de superstições oriundas da Babilônia, onde se acreditava que, mediante encantamentos, o demônio podia ser persuadido a abandonar o corpo da vítima e entrar no corpo de um animal, notadamente aves, carneiros e… porcos! E como a carne de porco é considerada impura pelos judeus, a ponto de o escriba Eleazar ter preferido morrer a comê-la (cf. 2Mc6:18,19), esse animal pareceu aos novos convertido cristãos daquela época, recém-oriundos do Judaísmo, como o mais apropriado para acolher demônios imundos. Muito melhor do que répteis, por exemplo.

Mas mesmo para quem desconhece as leis da Criação não é difícil descartar mais essa fraude, verdadeiramente escandalosa. Basta que utilize um pouco de lógica e levante para si alguns questionamentos simples: Como poderia haver criadores de porcos naquela região, se esse animal é considerado impuro e totalmente proscrito pela religião mosaica? Acaso seriam criados para exportação?… Se os porcos se atiraram no mar, levando alojados dentro de si a enorme legião de demônios possuidores, significa então que esses últimos foram enganados? Foram vítimas de uma cilada?... Mas se é assim, então tratava-se de uns porcos notáveis... Uma vara de dois mil porcos heróicos, mui intrépidos, prontos a dar a vida como mártires possuídos. Dois mil porcos numa missão suicida! Comporiam eles uma única criação ou seriam várias ali reunidas casualmente? O desespero impotente dos donos… Imagine-se dois mil porcos trotando em cadência marcial diretamente para o precipício, submergindo um a um numa morte épica, transportando dois mil demônios aconchegados sob o lombo! E se porcos e demônios têm assim tanta afinidade, por que será que nenhum exorcista leva consigo ao menos um leitão para ajudá-lo nos seus rituais? Por que não os pratica ao lado de um chiqueiro bem movimentado? Pois se demônios têm essa estranha compulsão de se aboletar em porcos…

Essa insólita anedota suína realmente não passa de uma elucubração bem malcheirosa, uma fábula que não tem sequer uma moral no final, criada pela fantasia variegada de algum “espírito de porco” (syós pneuma) dos tempos antigos, e que somente por ter conseguido infiltrar-se nos Evangelhos canônicos passou à posteridade como mais uma verdade absoluta e inquestionável. Vamos relembrar aqui as advertências de Paulo: “Examinai tudo e guardai o que for bom” (1Ts5:21). “Rejeita, porém, as fábulas mundanas e estórias de gente caduca” (1Tm4:7).

  1. Alguns intérpretes entendem que a expressão “lunático” quer dizer “epilético”, sem nenhuma preocupação em anatematizar uma doença de causa e tratamento conhecidos. É surpreendente que possam emitir um diagnóstico assim tão preciso com base em sintomas descritos há dois milênios. O termo grego seleniazomai que aparece nessa passagem de Mateus significa literalmente “afetado pela lua”. Retornar
  2. A palavra Satanás é originada do hebraico satan – “adversário”; o termo diabo provém do grego diabolos – “aquele que divide”. Retornar
  3. Ver, a respeito, a dissertação “O Mistério do Sangue”, no terceiro volume da obra Na Luz da Verdade, de Abdruschin. Retornar