Os Alicerces da Boa Nova

A Composição dos Evangelhos

A palavra “Evangelho” provém do grego euaggelion, a qual deu origem ao vocábulo latino evangelium, cujo significado é “boa nova”, “alegre anúncio”, “feliz notícia”. Originalmente esse vocábulo designava a recompensa dada a um mensageiro portador de boas notícias; desse modo aparece, por exemplo, nos escritos dos gregos Homero e Plutarco. Também anunciava, por vezes, uma vitória militar, um nascimento importante ou a subida ao trono de um novo imperador. Com o advento de Jesus a palavra passou a identificar o anúncio da redenção do mundo, e assim, por volta do século II o termo Evangelho passou a designar a boa nova da mensagem da salvação. O termo aparece 76 vezes no Novo Testamento, 60 das quais nas cartas do apóstolo Paulo.

Em relação aos Evangelhos canônicos, os estudiosos são unânimes em afirmar que Mateus escreveu para os judeus, Marcos para os romanos, Lucas para os gregos e João para a comunidade cristã de então. Os três primeiros Evangelhos canônicos são designados de “sinóticos” (de sinopse – visão conjunta), porquanto apresentam uma visão mais ou menos comum da vida de Cristo. Essa classificação foi estabelecida em 1776, quando um pesquisador das Escrituras, o teólogo protestante Johann Griesbach, dispôs os três Evangelhos em colunas paralelas a fim de estudar as interdependências e diferenças mútuas, dando a esse seu trabalho o título de Sinopsis.

Esse trabalho só foi possível porque nessa época a Bíblia já estava dividida em capítulos e versículos, na forma como encontramos hoje. A divisão em capítulos, tal como a conhecemos, foi feita no século XIII pelo arcebispo de Canterbury, Stephan Langton (1150 – 1228), com a finalidade de facilitar as referências. Tratou-se do rearranjo de uma primeira tentativa de classificação surgida em manuscritos do século V, que deixaram Mateus com 68 capítulos, Marcos com 48, Lucas com 83 e João com 18. No século XIII, os livreiros de Paris editaram a “Bíblia Parisiense”, a primeira com a divisão em capítulos. A divisão em versículos data de 1551, elaborada pelo tipógrafo parisiense Robert Estienne e seu filho Henrique. No ano de 1555 surgiu a primeira Bíblia com as atuais divisões em capítulos e versículos.

O quarto Evangelho, o de João, ficou fora da classificação sinótica, porque sua narrativa é totalmente distinta da dos outros três. Há, de fato, diferenças marcantes, tanto de ordem geográfica como cronológica. Um estudo recente apontou 153 características exclusivas do texto, e no início chegou-se mesmo a pretender negar o título de Evangelho a esse livro. Um especialista das Escrituras, inclusive, admitiu que se o Evangelho de João surgisse agora, na época presente, lhe pareceria profundamente herético… A constatação de traços de gnosticismo no Evangelho de João foi a causa da demora de sua admissão no cânon bíblico, ainda mais que o primeiro comentário registrado do Evangelho é de Herácleon, um conhecido gnóstico do século II. Em virtude dessa suspeição, foi admitido nas Escrituras somente depois dos três Evangelhos sinóticos, não controversos. Contudo, nem sempre foi assim. Em alguns antigos manuscritos o Evangelho de João vem em segundo lugar, e não em quarto...

Apesar das suspeitas da Igreja, o Evangelho de João se evidencia como o mais profundo dos quatro, ao apresentar os conceitos de Luz, Verdade e Vida como idéias interligadas, e do mesmo modo unindo os conceitos de trevas, falsidade e morte. É com justiça conhecido como o Evangelho Espiritual. (1) Já no século II, Clemente de Alexandria afirmou que João havia composto um Evangelho essencialmente espiritual, onde por 14 vezes Jesus é referido como “a Palavra”. Outros termos de relevo em sentido espiritual são também preponderantes em João. Enquanto Marcos e Lucas usam “verdade” quatro vezes cada um e Mateus duas, em João essa palavra é usada 46 vezes. Nesse Evangelho vemos, por 25 vezes, a fórmula associada a ensinamentos fundamentais do Mestre: “Em verdade, em verdade, vos digo...”. Essa expressão não se encontra nos outros Evangelhos. A palavra “vida” é outro caso: aparece quatro vezes em Marcos, cinco em Lucas, sete em Mateus e 35 vezes em João; nenhum outro livro da Bíblia emprega mais vezes essa palavra do que o Evangelho de João. A recorrência do termo “luz” também chama a atenção: aparece uma vez em Marcos, sete vezes em Mateus e Lucas, e 27 vezes em João.

Já foi dito que os três Evangelhos sinóticos são “fotografias da vida de Jesus tiradas de ângulos diferentes”, enquanto que o quarto Evangelho seria “um retrato feito por um pintor dotado de um estilo marcadamente individual”. Na verdade, essa estória de “fotografias diferentes” para designar os sinóticos é apenas um eufemismo para encobrir discrepâncias acentuadas entre os textos, que os levam a ser designados de “segundo” este ou aquele evangelista. As divergências são múltiplas, não se restringindo apenas à forma mas também ao conteúdo de vários versículos, havendo inclusive disparidades notórias na cronologia dos fatos. São raros os ditos idênticos existentes em apenas dois dos três Evangelhos sinóticos. No mais das vezes se observa um perfeito acordo em meros detalhes e diferenças profundas em assuntos importantes. Não vamos nos ater aqui na análise dessas dissonâncias, porque isso foge ao escopo deste livro, e também porque são bem conhecidas. Entretanto, essas falhas servem para ratificar a necessidade de encararmos os Evangelhos canônicos como aquilo que realmente são: tentativas de reprodução das palavras e Jesus, e não propriamente a Palavra viva que ele proferiu.

A boa nova dos Evangelhos e a Palavra viva de Jesus não são, portanto, uma só coisa. Trata-se de uma verdade tão incontestável essa, que mesmo grandes estudiosos bíblicos são forçados a confessá-la de uma maneira ou de outra. A Introdução do Novo Testamento da Tradução Ecumênica da Bíblia admite: “A transmissão dessas obras, desde a Antiguidade até nossos dias, implicou certo número de contingências, que não isentaram o texto de alterações (…); verificam-se entre os manuscritos divergências que afetam o sentido de passagens inteiras.”

A Introdução aos Evangelhos sinóticos da católica Bíblia de Jerusalém segue na mesma linha de justificativa prévia. Nela podemos ler: “As leis inevitáveis de todo testemunho humano e de sua transmissão dissuadem de esperar tal exatidão material, e os fatos corroboram essa advertência, pois vemos que o mesmo relato ou a mesma palavra é transmitida de modo diferente pelos diversos Evangelhos. (…) É forçoso reconhecer que muitos fatos ou sentenças evangélicas perderam sua relação primitiva com o tempo e lugar, e muitas vezes seria erro tomar em sentido rigoroso certas conexões redacionais.”

É inacreditável, mas alguns exegetas de hoje não têm nenhum escrúpulo em lançar sobre o Espírito Santo a responsabilidade pelas muitas incongruências bíblicas. Quando os autores do Novo Testamento citam passagens do Antigo para corroborar suas opiniões, alterando e torcendo seu sentido, a explicação para isso é, mais uma vez, que o Espírito Santo assim quis, já que ele é o autor da Bíblia inteira e pode dar a ela o sentido que bem entender, na hora que quiser, através de profetas escolhidos para isso… Ninguém tem nada a ver com isso, e incorre em pecado quem levantar alguam objeção.

Bem, é consenso hoje que nem Lucas nem Mateus foram testemunhas oculares dos acontecimentos que descrevem nos seus Evangelhos. Em relação a Marcos, ainda há muita controvérsia se ele era ou não contemporâneo de Jesus, e quanto a João, a maioria dos especialistas acredita ser ele realmente o “discípulo que Jesus amava”, do qual ele mesmo fala na terceira pessoa (cf. Jo20:2), portanto um seu contemporâneo. Os próprios Evangelhos, porém, nada afirmam de maneira explícita sobre seus autores.

Em relação à composição dos quatro Evangelhos canônicos, é incontestável que foram escritos muito tempo depois da morte de Jesus. Supõe-se que o mais antigo deles, o de Marcos, tenha surgido entre os anos 50 e 70 d.C, mas muitos sustentam que todos os quatro devem ter sido elaborados após a destruição de Jerusalém pelos romanos, em 70 d.C. As próprias epístolas apostolares (cartas) (2) são bem anteriores aos Evangelhos, e se estima que a mais antiga dela, a primeira Epístola aos Tessalonicenses, tenha sido escrita pelo apóstolo Paulo no mínimo vinte anos após a morte de Jesus.

A suposição de que o Evangelho de Marcos é o mais antigo dos três sinóticos decorre de ser esse o texto com menos material exclusivo, devendo, portanto, ter servido de base para a redação dos demais. O Evangelho de Lucas é o que tem maior quantidade de material inédito dentre os três, o que leva a crer ser ele o texto mais recente. O Evangelho de Mateus, por sua vez, fica a meio termo dos outros dois nesse quesito, parecendo ser mais uma edição revista e aumentada de Marcos.

Muitos estudiosos atribuem as similitudes entre Mateus e Lucas a uma fonte comum muito antiga, que teria se perdido. Os dois evangelistas teriam se baseado em Marcos e nesse manancial perdido para compor seus Evangelhos. A essa fonte desconhecida eles deram o nome de “Q” (do vocábulo alemão Quelle – fonte). Ninguém pode comprovar se essa misteriosa fonte Q existiu mesmo, como um documento autônomo e real do Cristianismo primitivo, porém é indubitável que os Evangelhos canônicos não são mais do que retratos secundários e terciários de tradições orais, e possivelmente escritas, que se haviam desenvolvido ao longo de décadas. Uma antiga descrição a respeito de Lucas, que veremos mais à frente, faz menção à existência de fontes desconhecidas, nas quais o evangelista teria se baseado.

Comparando-se os Evangelhos de Mateus e Lucas, verifica-se que eles coincidem na ordem dos relatos somente quando seguem o padrão do Evangelho de Marcos. Os trechos comuns não concordes cronologicamente foram atribuídos a essa fonte Q, e assim foi possível reconstituir esse suposto antigo compêndio de relatos sobre Jesus. O que chama a atenção na reconstituição desse depositário ancestral de narrativas sobre Jesus e suas palavras, é não haver nele nenhuma referência à sua ressurreição e muito menos à idéia de um martírio expiatório... Coincidentemente, os apócrifos Evangelhos de Tomé, Filipe e Maria Madalena também não trazem uma linha sequer sobre a paixão de Cristo.

Outro aspecto interessante é o resultado da tradução do grego nos trechos que compõem a fonte Q desvinculada da influência de textos adjacentes, que teriam sido acrescidos para compor os Evangelhos. O professor de Novo Testamento Burton Mack fez um exaustivo trabalho de reconstrução da fonte original Q, com apoio do Internacional Q Project, sediado na cidade de Claremont, e dentre outras descobertas chegou à seguinte forma para o relato da atuação da Lei, segundo o dito de Jesus: “É mais fácil passar o céu e a terra do que um único golpe da Lei perder a força.” Essa nova forma transmite de uma maneira particularmente clara a absoluta inflexibilidade da Lei da Reciprocidade. Também a exortação de João Batista aos fariseus adquire uma clareza não pressentida nas traduções usuais: “Mudem seus modos de agir, se é que mudaram mesmo seus modos de pensar!”

As evidências históricas do tempo decorrido entre a morte de Jesus e o aparecimento dos Evangelhos deveriam servir como um alerta a mais às pessoas espiritualmente livres, para que olhassem esses textos não como a reprodução exata das palavras de Cristo, mas apenas aproximada. Nas palavras sem subterfúgios do teólogo John Hick, “as memórias originais e de primeira mão acerca de Jesus foram peneiradas, desenvolvidas, distorcidas, aumentadas e embelezadas de várias maneiras por meio da interação de muitos fatores, inclusive a tendência universal de exaltar cada vez mais a figura do próprio líder.” Na sua obra “A Vida de Jesus Examinada Criticamente”, publicada em 1835, o biblista David Friedrich Strauss já afirmava que o Novo Testamento continha elementos míticos inventados pela Igreja primitiva para embelezar a vida de Jesus. Cabe acrescentar aqui também o comentário do teólogo católico Giuseppe Barbaglio, especificamente sobre o Evangelho de Mateus: “As palavras [do Senhor] foram recordadas e transmitidas com cuidado, embora nem sempre na sua exatidão material e segundo seu significado original.”

Ademais, nenhum dos Evangelhos originais, escritos de próprio punho pelos evangelistas, chegou até a nossa época. Nenhum! Os textos originais em papiros, denominados “autógrafos”, se perderam já nos primeiros tempos, e as cópias então existentes foram sendo reproduzidas e difundidas à medida que o Cristianismo se expandia, tendo sofrido múltiplas alterações ao longo do tempo. As tentativas de harmonização de passagens paralelas, verificadas nas cópias dos Evangelhos sinóticos, constituem uma indicação clara disso. Alguns especialistas, inclusive, temem que se porventura forem descobertos fragmentos de algum manuscrito do primeiro século da era cristã, isso vai acabar ampliando, e não reduzindo, as áreas de incerteza sobre os textos. Apareceriam mais problemas do que soluções…

Outro ponto a considerar é que Jesus falava em aramaico, ao passo que todo o Novo Testamento foi escrito em grego, sendo portanto já uma tradução das palavras originais de Cristo. E não era o grego culto, mas sim o chamado grego koiné, uma mistura de diferentes dialetos, com uma sintaxe irregular e uma morfologia modesta. O termo koiné significa “língua comum”. Como os escritores cristãos queriam que seus textos se espalhassem rapidamente por toda a parte, preferiram utilizar esse grego comum, falado em todo o Império Romano, ao invés do rico grego clássico. Vários especialistas já demonstraram que as palavras de Jesus, conservadas no grego koiné, ganham uma nova força e muito maior clareza quando são revertidas para o aramaico original. Parece surgir até um ritmo poético... E para complicar um pouco mais a guerra, as posteriores traduções a partir desse grego mais restrito também acabam distorcendo, em grau maior ou menor, o sentido original.

Dos quatro Evangelhos, o mais prejudicado nas traduções foi certamente o de Mateus, que segundo Eusébio de Cesaréia, Pápias, Orígenes e Jerônimo, teria sido escrito originalmente em hebraico. Nesse caso então a situação é a seguinte: Jesus falou em aramaico, Mateus escreveu em hebraico, alguém traduziu para o grego comum, daí surgiu a tradução para o latim, da qual advieram as versões vernáculas, todas elas objeto de inúmeras revisões ao longo do tempo. Pergunto: qual a chance de as palavras de Jesus nesse Evangelho terem chegado até nós exatamente como foram proferidas?… O fiel cristão de hoje está acostumado a pedir cópia autenticada com firma reconhecida em cartório para qualquer reprodução de um documento importante, mas em relação aos textos bíblicos, que atravessaram milênios passando de mão e mão, aceita qualquer coisa sem nenhum questionamento.

E é fato que esse grego koiné não poderia, nem de longe, conservar os ditos de Jesus com toda sua carga de seriedade e severidade. Já no século XIV, o humanista Erasmo de Roterdam verificou que o significado das palavras do grego koiné do Novo Testamento era bem diferente do apresentado pelo grego clássico, e que devido a isso a versão traduzida para o latim, a Vulgata, apresentava divergências notórias em relação ao sentido original.

Erasmo era uma personalidade ímpar, de uma envergadura espiritual que nos faz lembrar o herói Pelágio dos primeiros tempos do Cristianismo. Ele acreditava que as pessoas deviam ouvir o Evangelho em seu próprio idioma, ao invés de “murmurar salmos e padre-nossos em latim, sem entender as próprias palavras”, e que, a respeito de muitos pontos da doutrina cristã, “cada qual deve seguir seu próprio julgamento”. Erasmo queria alcançar o sentido original da Bíblia e torná-la útil para as pessoas simples de sua época, pois achava a linguagem das Escrituras um tanto obscura. Em sua obra Discussão do Livre-Arbítrio, ele asseverou que o ser humano tinha de se valer de seus próprios recursos para obter a salvação. Por causa dessa posição de independência ele não recebeu apoio dos reformadores protestantes, fato que não o impediu de publicar a primeira edição crítica ao Novo Testamento grego. Ele ainda se empenhou pessoalmente contra as perseguições religiosas de seu tempo e, corajosamente, contra a própria Inquisição. A edição do ano 1612 do Index de livros proibidos da Igreja o classificava entre os escritores condenados – “auctores damnati” – o que significava que dali em diante não podia sequer ser chamado mais pelo nome de batismo, mas apenas de “alguém”… Essa sentença condenatória não impressionou muito o escritor inglês Thomas James, autor da obra Tratado de Corrupções das Escrituras, publicado nesse mesmo ano de 1612. Thomas, o primeiro bibliotecário da cidade de Bodley, consultou o Index pontificial justamente para se inteirar de quais livros deveria adquirir para sua biblioteca municipal... Certamente ele teria tido total apoio de um seu compatriota famoso, William Shakespeare, para quem herege não era quem ardia na fogueira, mas quem a acendia...

Que os textos evangélicos surgiram muito depois da morte de Jesus, ficando por conseguinte sujeitos a inúmeras falhas e inserções, já testemunha o lapso de tempo que levou para começarem a ser citados em outros antigos escritos religiosos. A própria denominação “Evangelho”, utilizada para designar os relatos da vida de Cristo, aparece pela primeira vez somente no século II, nos escritos do filósofo Justino Mártir (100 – 165). Aliás, hoje em dia parece-nos bastante inadequado o título com que Justino designava os evangelhos em sua época: “Memórias dos Apóstolos”.

A primeira vez que se fala do Evangelho de Marcos é uma referência ao nome do autor feita por Pápias, bispo da cidade de Hierápolis, na Ásia Menor, entre os anos 125 e 140, quando afirma que “Marcos era o intérprete de Pedro, e anotou cuidadosamente o que se lembrava do que havia sido dito ou feito pelo Senhor, mas não na ordem certa; porque ele não havia ouvido o Senhor nem o havia seguido, mas o seguiu mais tarde.” Por isso, Pápias diz conhecer e aceitar os Evangelhos, embora “preferisse as tradições orais”. Segundo o testemunho de um documento do século II, o livro de Marcos teria sido composto em Roma. Parece que nesse século II existiam pelo menos três versões diferentes desse Evangelho: uma de domínio público, uma outra reservada para uns poucos eruditos, e uma terceira utilizada por uma seita gnóstica. Nessa época, Clemente de Alexandria se queixava justamente das várias versões do Evangelho de Marcos que circulavam livremente… A sua Igreja de Alexandria teria conservado cuidadosamente a última versão, dita “secreta” ou “espiritual”. A versão que se tornou canônica é atestada por manuscritos apenas a partir do século III, e o primeiro comentário latino completo de Marcos só vai surgir entre os séculos V e VI, de autoria de um ilustre desconhecido chamado Pseudo-Jerônimo.

Em relação ao Evangelho de Mateus, uma frase sua é citada pela primeira vez pelo bispo Inácio de Antioquia na Epístola aos Esmirneanos, numa data estimada entre os anos 80 e 130. Do bispo Pápias também é essa desalentadora informação sobre as ulteriores reproduções do Evangelho de Mateus: “Mateus compilou em hebraico os logia (dizeres) e cada um os traduziu como pôde.”

Quanto ao Evangelho de Lucas, pelo que se sabe, é citado textualmente pela primeira vez pelo bispo Irineu, no ano 180. É dessa época a seguinte descrição sobre o evangelista, reproduzida num documento do século VIII: “Lucas, médico, depois da ascensão de Cristo, foi escolhido companheiro de suas viagens por Paulo; ele redigiu, sob sua própria responsabilidade, mas baseando-se em outras fontes, o Evangelho. Ele, porém, não viu o Senhor em pessoa e, então, narrou os acontecimentos segundo as informações que lhe foi possível levantar, começando a sua narrativa pelo nascimento de João [Batista].”

A primeira citação precisa que se tem do quarto Evangelho, o de João, aparece num fragmento de papiro com data estimada do ano 125, o qual traz umas poucas linhas do capítulo 18. Um papiro de Justino, aproximadamente do ano 150, também faz menção a esse Evangelho, e o livro apócrifo Odes de Salomão apresenta vários trechos aparentados a ele. O Evangelho de João é o último dos quatro, e devido a isso alguns supõem ter sido escrito em parte por um discípulo de João, que lhe teria acrescentado o capítulo 21. De fato, esse capítulo 21, completamente estranho ao restante do Evangelho, é aquele que narra as aparições de Jesus ressuscitado comendo peixe diante dos discípulos...

Desde a sua aparição, os Evangelhos hoje considerados canônicos ficaram sujeitos à concorrência de outros escritos e também a várias modificações perpetradas neles próprios. Sabe-se, por exemplo, que por volta do ano 140 um cristão chamado Márcion produziu um Evangelho que encurtava o de Lucas, de maneira a adequar-se às suas próprias concepções teológicas, as quais não admitiam nada que lembrasse o Antigo Testamento e o Judaísmo. Esse Márcion simplesmente reescreveu cartas do apóstolo Paulo, modificando e omitindo trechos de que não gostava e eliminando também as epístolas a Timóteo e a Tito. (3) Atraiu um imenso séquito e acabou sendo excomungado pelo próprio pai, bispo da cidade turca de Sinope, tendo recebido ainda o título de “primogênito de Satanás”. Suponho que não deva ter sido seu pai quem lhe agraciou com tal honraria...

Nessa mesma época, o bispo Pápias cuidava de escrever a sua “Interpretação das Palavras do Senhor”, uma obra em cinco volumes que objetivava reunir as tradições orais sobre Jesus, colhendo declarações de pessoas que teriam conhecido os discípulos. Essa obra acabou se perdendo, mas alguns fragmentos dela foram transmitidos pelo bispo Eusébio de Cesaréia em sua História Eclesiástica. Eusébio afirma que Pápias “recolheu por tradição oral palavras estranhas do Salvador e de outras doutrinas esotéricas”… Nesse período conturbado houve uma proliferação enorme de grupos sectários, cada qual cuidando de compilar sua própria lista de livros sagrados.

Quanto às modificações processadas nos textos, uma das mais nítidas indicações de que os Evangelhos estavam sofrendo alterações, já naquela época distante, é um protesto de Dionísio, bispo de Corinto, datado de 170 d.C. Segundo ele, suas cartas “vinham sendo adulteradas e falsificadas por outros cristãos, assim como estes haviam modificado os próprios Evangelhos.” Isso nos faz lembrar a advertência de Pedro sobre torcer o conteúdo das palavras do apóstolo Paulo e de outros textos: “É verdade que em suas cartas se encontram alguns pontos difíceis de entender, que os ignorantes e vacilantes torcem, como fazem com as demais Escrituras, para a sua própria perdição” (2Pe3:16). Realmente, se os cristãos dos tempos antigos já haviam modificado os próprios Evangelhos, então, com muito mais razão ainda poderiam ter modificado trechos das cartas de Paulo, que são documentos bem mais antigos. Poderiam ter inserido nelas, por exemplo, algumas concepções de “salvação pela graça” …

O que não faltava naquela época remota eram hagiógrafos de múltiplos matizes, ansiosos por deixar sua marca nalgum lugar de destaque. Todo mundo estava escrevendo algum tipo de evangelismo, num frenesi sem tamanho. Ainda no ano 170, um tal de Taciano juntou os quatro Evangelhos num só e no texto assim coligido fez as alterações que lhe pareciam necessárias, incorporando também uma série de leituras extraídas de fontes apócrifas. Esse compêndio ficou conhecido com o nome de Harmonia ou Diatesseron (Através dos Quatro), tendo obtido ampla aceitação no oriente cristão e dado origem a numerosas traduções. Na Igreja da Síria, o Diatesseron permaneceu como texto oficial por mais de duzentos anos. Mais ou menos na época da composição desse texto de Taciano, o líder religioso Montano esforçava-se ao máximo para introduzir seus próprios livros e revelações na Escritura neotestamentária, sem contudo lograr êxito.

Por volta do ano 380, o padre e doutor da Igreja, Jerônimo (347 – 420), fez, a pedido do papa Dâmaso, (4) uma tradução do texto hebraico da Bíblia para o latim que, como vimos, ficou conhecida com o nome de Vulgata. As versões latinas então existentes, como a Vetus Latina, das quais sobrevivem cerca de 44 manuscritos, não eram muito concordes entre si, o que gerava grandes problemas. A Vulgata de Jerônimo levou 25 anos para ser concluída e passou a ser a versão oficial da Igreja, fato que lhe granjeou uma fama considerável. Em vista disso, um rico hispano chamado Lucínio Bético lhe enviou seis copistas com a missão de transcrever algumas obras de sua autoria. A advertência que Jerônimo fez chegar a Lucínio mostra bem o despreparo e falta de cuidado dos copistas da época, que também tinham a incumbência de reproduzir os textos bíblicos: “Caso se encontrar algum erro ou omissão que contradiz o sentido, não se há de imputar isso à minha pessoa, mas a vossos servos. São fruto da ignorância ou descuido dos copistas, que não escrevem o que encontram, mas o que eles consideram ser o sentido, e não expõem senão os seus próprios erros quando tratam de corrigir os alheios.”

E, de fato, observam-se erros na Vulgata. Uma dessas falhas acabou criando uma situação um tanto cômica. Trata-se do caso do rosto de Moisés. Quando Moisés desce do monte Sinai trazendo as Tábuas da Lei, a Escritura diz que seu rosto “resplandecia” (cf. Ex34:29,30,35). A tradução da Vulgata, porém, diz que a sua face era “cornuta”, isto é, com chifres. O que aconteceu é que o correspondente termo hebraico – keren, tanto pode significar “chifre” como “irradiação de esplendor”, dependendo do contexto. Assim, devido a essa tradução equivocada da Vulgata, muitas pinturas e estátuas passaram a representar Moisés com destacados chifres, dumas vezes bovinos e doutras vezes caprinos… A justificativa até parecia bem plausível. Moisés não estava prestes a destruir o bezerro de ouro? Então. Nada mais natural que descesse a montanha prontinho para chifrar o dito cujo… Alguns artistas da Renascença não conseguiram disfarçar seu constrangimento e trataram de encobrir os chifres mosaicos com oportunos raios de luz ou mechas de cabelo cuidadosamente revoltos.

Por alguma estranha razão, Moisés parece mesmo ter sido escolhido como alvo de blagues bíblicas. A idéia de que ele foi o único autor dos livros do Pentateuco desemboca numa impossibilidade quando o vemos descrever sua própria morte (cf. Dt34:5), não sem antes garantir de viva-voz que era “homem muito humilde, o mais humilde dos homens que havia na Terra” (Nm12:3). Uma declaração que não soa exatamente humilde, não é mesmo?

Esses poucos exemplos mostram que os escritos bíblicos, em particular os Evangelhos, ficaram sujeitos a alterações bem mundanas ao longo dos séculos, maiores ou menores, por boa ou má fé dos que detinham esses textos nas mãos. Um caso digno de nota especial é o trecho referente aos lírios do campo, que aparece no Evangelho de Mateus:

“E por que andais ansiosos quanto ao vestuário? Considerai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham nem fiam. Eu, contudo, vos afirmo que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer um deles.”

(Mt6:28,29)

O texto original desse versículo, porém, dizia: “Olhai os lírios do campo: eles não cardam [desenredam] nem fiam”. Não havia menção a como eles cresciam e nem a trabalho. A rigor, não havia nem mesmo lírios; essa palavra foi empregada como tradução livre do texto grego, porque a flor que deveria ser usada na analogia – uma sternbergia – estragaria a fluência do trecho. Quem descobriu essas discrepâncias foi o pesquisador T. C. Skeat, em 1938. Ele estava estudando o códice Sinaiticus, que juntamente com o códice Vaticanus (ambos do século IV) deram origem aos primeiros Novos Testamentos conhecidos. Examinando o trecho em questão sob luz ultravioleta, Skeat descobriu que as letras gregas originais haviam sido raspadas do manuscrito, tendo sido substituídas pelo texto que chegou à posteridade. (5) Hoje, inclusive, já se sabe que esse códice Sinaiticus sofreu várias outras modificações até o século XII. No capítulo 21 do Evangelho de João vemos claramente as correções anotadas em cima do texto original.

As evidências de manipulações e alterações dos Evangelhos são tão claras, que logo no início de sua Introdução aos Evangelhos Sinóticos a Tradução Ecumênica da Bíblia adverte: “O leitor moderno fica desconcertado à vista dessa literatura, que lhe parece desconexa, cujo plano carece de continuidade, cujas contradições parecem insuperáveis e que não logra responder a todas as perguntas que se lhe fazem.” Também a Sociedade Bíblica Católica Internacional cuidou de fazer suas advertências na Introdução ao Evangelho de João da Bíblia de Jerusalém: “Notemos primeiramente que a ordem na qual se apresenta o Evangelho cria certo número de problemas: sucessão difícil dos caps. 4; 5; 6; 7:1-24; anomalia na colocação dos caps. 15–17 após o adeus de 14:31; situação fora do contexto de fragmentos, como 3:31-36 e 12:44-50.”

Essas advertências procedem. Se observamos com atenção a despedida contida em Jo14:31, Jesus ordena aos discípulos: “Levantai-vos, vamo-nos daqui”, mas ninguém se mexe. Logo em seguida ele faz um longo discurso nos capítulos 15 e 16, que é quase uma cópia do que já havia sido dito no capítulo 14, e a partida só ocorre em Jo18:1. Ouçamos o que a Bíblia de Jerusalém tem a dizer sobre isso: “É possível que essas anomalias provenham do modo como o Evangelho foi composto e editado: com efeito, ele seria o resultado de uma lenta elaboração, incluindo elementos de diferentes épocas, bem como retoques, adições, diversas redações de um mesmo ensinamento, tendo sido publicado tudo isso definitivamente não pelo próprio João, mas, após a sua morte, por seus discípulos; dessa forma, estes teriam inserido no conjunto primitivo do Evangelho fragmentos joaninos que não queriam que se perdessem, e cujo lugar não estava rigorosamente determinado.”

Hipóteses e mais hipóteses… E nenhuma voz para alertar que textos assim tão modificados não podem constituir nenhuma autêntica Palavra de Deus.

Por volta do século IV, a situação de erros e modificações intencionais no Novo Testamento já era de tal monta, de tal modo aflitiva, que surgiram as assim chamadas recensões (revisões). Conhecem-se hoje quatro dessas recensões: a de Alexandria, de onde se originaram os mencionados códices Sinaiticus e Vaticanus; a de Cesaréia; a de Antioquia e Bizâncio, que deu origem ao texto oficial das igrejas orientais-ortodoxas utilizados até hoje; e a de Roma, que serviu de base para as primeiras traduções latinas anteriores à Vulgata de Jerônimo.

A recensão de Roma deu origem ao códice de Beza do século V, que traz várias diferenças em relação aos outros códices, particularmente em Atos dos Apóstolos. Esse códice, aliás, ficou conhecido justamente pelos numerosos acréscimos de palavras, frases e até de narrativas. Chama atenção o “acerto” que o copista tentou fazer em relação às genealogias de Jesus. Percebendo as discrepâncias marcantes entre as listagens de Lucas e Mateus, ele tentou igualar a de Mateus com a de Lucas; porém, como aquela apresenta menos nomes, ele simplesmente a preencheu com nomes suplementares, sem contudo lograr estabelecer um equilíbrio…

As modificações e ajustes nos textos neotestamentários foram tantos, que não se pode imputar com segurança os inúmeros erros remanescentes no texto bíblico atual ao próprio autor original. O Evangelho de Marcos, por exemplo, começa atribuindo a Isaías uma citação do profeta Malaquias (cf. Mc1:2 e Ml3:1). De onde se teria originado esse erro: do próprio Marcos ou de revisores de outras épocas?… Impossível saber.

O fato é que a forma do Novo Testamento, tal como a conhecemos hoje, só foi definitivamente aprovada e confirmada pelos antigos bispos da Igreja cerca de 300 anos depois da morte de Jesus. E mesmo esta chegou até nós na forma desses manuscritos que não são mais do que reproduções de cópias de cópias, os chamados “apógrafos”, com diferenças marcantes entre si. Quando, logo após a invenção da imprensa, em 1454, se pensou em reconstituir o texto autêntico da Bíblia e dos Evangelhos, verificou-se que existiam 250 códices distintos em escrita uncial (maiúscula) e nada menos que 2.646 códices em escrita cursiva (minúscula). E dos códices unciais, que são os mais antigos, 63 deles haviam sido raspados e reescritos (os palimpsestos). Hoje, pode-se afirmar que a situação é objetivamente estarrecedora, para não dizer desesperadora, conforme deixa claro o estudioso bíblico Julio Trebolle:

“Conhecem-se cerca de cinco mil manuscritos gregos do Novo Testamento, aos quais é preciso acrescentar uns dez mil manuscritos das distintas versões antigas, assim como milhares de citações nos Padres da Igreja. Todo este material (manuscritos, versões e citações) contém um número de variantes (diferenças) calculado entre 150 mil e 250 mil, ou até maior. Não existe uma só frase do Novo Testamento que a tradição manuscrita não tenha transmitido com alguma variante. O texto do NT contém mais variantes que qualquer outro tipo de literatura antiga. (…) Todos os manuscritos estão contaminados. Não existe, portanto, um tipo de texto puro. (…) O fato é que as variantes mais significativas se devem à correção doutrinal e a um trabalho editorial, no qual influem desde fatores políticos (como o triunfo do Cristianismo) até teológicos (apologética anti-herética). (…) A aplicação do método genealógico ao estudo do texto neotestamentário não permite ademais conclusões muito exatas, porque no NT as versões realizadas devem-se mais à mudança deliberada que a erro ocasional. (…) Os copistas não se interessavam, diferentemente dos escritos modernos, pela leitura ‘original’, mas pela leitura ‘verdadeira’ ou conforme à tradição eclesiástica. (…) Também é certo que a ortodoxia da Grande Igreja tendia a eliminar ou a modificar aquelas expressões que por alguma razão resultavam inaceitáveis, e a introduzir, ao invés, no texto, novos elementos com o fim de apoiar uma determinada doutrina, prática litúrgica ou costume moral.”

O monge Agostinho já se queixava em seu tempo que, dada a enorme difusão dos manuscritos gregos e o conhecimento que dessa língua tinham muitos cristãos de fala latina, era grande o número dos que se acreditavam autorizados a corrigir o texto latino, até o ponto em que “pareciam existir tantas versões quanto códices”… Que situação difícil!... Os copistas simplesmente não conseguiam resistir à tentação de demonstrar seu conhecimento do grego e faziam correções não só de ortografia e gramática, mas também de estilo. E quando a dúvida numa passagem qualquer envolvia algum aspecto doutrinal, aí é que se consideravam imbuídos de uma verdadeira missão divina corretiva! O biblista Lagrange afirma que “o copista, convencido de que estava fazendo uma boa obra, tomava a liberdade de fazer correções, acréscimos e supressões, e se tornava tanto mais ousado quanto mais pura fosse sua intenção.”

Em vista disso, o professor de Novo Testamento, Uwe Wegner, diz que a “crítica textual nos mostra que não é mais possível ter absoluta certeza quanto ao teor original de todos os versículos que perfazem a Bíblia”. Outro conceituado biblista, Oscar Cullmann, acrescenta a seguinte situação comum: “Um copista anota o texto à margem para explicar uma passagem obscura. O copista seguinte, pensando que tal frase que ele acha escrita à margem fora esquecida nessa passagem por seu antecessor, julga necessário reintroduzir essa anotação marginal no texto, e assim acontece que o novo texto às vezes se torna mais obscuro ainda.” As conclusões desses estudiosos são muito úteis, porque refrescam as idéias de qualquer um que queira estudar a Bíblia com imparcialidade, sem se contaminar com dogmas ou exigências de interpretação literal.

Ao contrário da maioria dos textos introdutórios ao Novo Testamento nas várias Bíblias disponíveis, que tergiversam intencionalmente aí, a Introdução da Tradução Ecumênica da Bíblia é surpreendentemente esclarecedora a respeito do gigantismo do problema: “De fato, o texto do Novo Testamento foi, durante muitos séculos, copiado e recopiado por escribas mais ou menos competentes; nenhum deles, porém, isento das deficiências de toda a sorte que fazem com que cópia alguma, por fiel que seja, se conforme plenamente a seu modelo. A isto se deve acrescentar que certo número de escribas, animados das melhores intenções, tentaram por vezes corrigir passagens de seu modelo, que lhes pareciam eivadas quer de erros caracterizados, quer de alguma falta de precisão teológica. Ao agirem assim, introduziram no texto variantes inéditas, quase sempre errôneas. Pode-se finalmente acrescentar que o uso cultual que se fez de não poucas perícopes do Novo Testamento provocou freqüentes deslizes do texto, no sentido de embelezamentos litúrgicos ou de harmonizações favorecidas pela recitação oral. Inevitavelmente, no decorrer dos séculos, as transformações introduzidas pelos escribas se somaram umas às outras, donde o texto ter finalmente chegado à época da imprensa carregado de corrupções várias, que se traduz pela presença de um número assaz considerável de variantes. (…) Algumas destas diferenças só concernem a pormenores gramaticais, ao vocabulário, ou à ordem das palavras; outras vezes, porém, verificam-se entre os manuscritos divergências que afetam o sentido de passagens inteiras.”

No ano de 1966, a União das Sociedades Bíblicas resolveu pôr um ponto final nesse problema tão desgastante, e tentou publicar um texto padrão definitivo, em grego, do Novo Testamento. Para tanto, analisou cerca de duas mil passagens, colhidas de várias fontes alternativas consideradas de importância, e fez uma seleção entre elas. O resultado desse esforço descomunal é descrito da seguinte maneira pelo pesquisador R. L. Fox: “Além de esse texto grego ter precisado de duas revisões até 1975, porque até hoje nenhuma revisão demonstrou ser à prova de erros e de aperfeiçoamentos, a própria meta desse trabalho – uma versão padrão do texto – é enganosa e irrealista. Comparada com a variedade de que dispomos, qualquer versão padronizada envolve perdas: ela não traz, e nem pode trazer, exatamente o que Paulo e os evangelistas escreveram originalmente.”

Resultado igualmente desalentador foi obtido pelo Seminário Sinótico da Sociedade para Estudo do Novo Testamento. Depois de doze anos de intenso trabalho, o relatório final registrava um único ponto de acordo: que seus membros não haviam concordado num único ponto sequer… Outro esforço conjunto na mesma linha foi o executado pelo Seminário de Jesus, que contou com cerca de duzentos exegetas bíblicos e teólogos. Depois de sete anos de exaustivo trabalho para “autenticar” as palavras de Cristo, o grupo chegou à seguinte conclusão: “Provavelmente mais de 80% das palavras atribuídas a Jesus nos Evangelhos não são autênticas, ainda que muitas pudessem expressar suas idéias.” É bem verdade que os especialistas foram rigorosos ao estabelecer nada menos que 25 critérios para encontrar as verdadeiras palavras de Jesus… Na verdade, porém, bastariam dois: os ditos de Jesus não podem ser injustos nem ilógicos. Só isso. Naturalmente, seria preciso conhecer a Justiça e a lógica divinas, coisa impossível de se conseguir com idéias preconcebidas.

Um outro estudo enumerou recentemente 503 sentenças atribuídas a Jesus, extraídas dos documentos elaborados durante os primeiros séculos da nossa era, das quais menos de 10% poderiam ter alguma chance de serem autênticas...

São virtualmente infindáveis os livros e trabalhos acadêmicos que procuram avaliar a autenticidade das palavras de Jesus. Os seres humanos se afogam nesse mar de papel, sem obter o menor vislumbre do que seu Salvador quis realmente dizer, pois os antigos manuscritos não conservaram suas palavras originais.

Em relação aos Evangelhos canônicos, vários manuscritos não trazem um ou outro versículo ou mesmo trechos inteiros, fato que não impediu que se lhes providenciasse um fecho adequado. Um dos casos mais incríveis ocorre no Evangelho de Marcos. Os versículos de números 9 a 20 do último capítulo (cap. 16) simplesmente não constam dos dois primeiros e mais importantes manuscritos que deram origem ao atual Novo Testamento – os códices Sinaiticus e Vaticanus – e tampouco de diversos manuscritos em latim, siríaco, armênio e etiópico.

Segundo o biblista John Drury, colaborador do Guia Literário da Bíblia, a última palavra de Marcos no versículo 16:8 é um instigante “pois”. O texto seria então: “E, saindo elas, fugiram do sepulcro, porque estavam possuídas de temor e de assombro, e de medo nada disseram a ninguém, pois…” O que vinha após esse expectante “pois” perdeu-se ou foi removido, surgindo em seu lugar o texto que se vê hoje, o qual se imagina ter sido escrito por volta da primeira metade do século II. É bastante sintomático que esse trecho inserido, não original, trate justamente da pretensa ressurreição corpórea de Jesus.

Há quem levante a hipótese de Marcos ter deixado intencionalmente incompleto seu Evangelho, com o final em aberto. O porquê dessa charada, ninguém explica. Mas mesmo na forma original esse versículo 16:8 mostra uma incoerência que salta aos olhos: “… estavam possuídas de temor e de assombro, e de medo nada disseram a ninguém”. Se essas mulheres que viram o sepulcro vazio nada disseram a ninguém, como foi que o evangelista Marcos ficou sabendo da história?…

Ressalte-se ainda que o vocabulário e o estilo do trecho alterado, que vai dos versículos 9 a 20, nem de longe correspondem ao restante do Evangelho de Marcos. O próprio Jerônimo, tradutor da Vulgata, admitiu que quase todas as cópias gregas de que dispunha para o seu trabalho (três versões) não traziam essa parte. Também o teólogo e padre da Igreja, Cirilo de Alexandria (376? – 444), desconhecia o trecho. Como se não bastasse, há pelo menos mais outros quatro finais diferentes para esse mesmo trecho, constantes de alguns manuscritos dos séculos IV ao VI. Cada um desses finais utiliza palavras não encontradas no restante do Evangelho. Contudo, apesar dessas evidências nítidas de inserção posterior, o atual trecho de Mc16:9-20 continua sendo considerado pelos adeptos bíblicos como mais uma verdade intangível.

Vamos, então, analisar mais detidamente algumas passagens marcantes desse capítulo inventado e não obstante tão bem considerado. O versículo 16 diz o seguinte:

“Quem crer e for batizado será salvo; quem, porém, não crer será condenado.”

(Mc16:16)

Se um isso pudesse ser verdade, então os bilhões de seres humanos que não professam a crença cristã já estariam todos previamente condenados por anátema, desde o nascimento. Nenhum deles precisaria se esforçar para tentar remediar sua situação, nem mesmo aqueles poetas gregos mencionados por Paulo (cf. At17:28). Semelhante aberração, porém, é frontalmente contrária à Lei da Reciprocidade, assim como ao mais elementar senso de justiça. O ser humano vale na Criação pelo que é intimamente, pela pureza de seu coração, e não pela crença que professa ou os ritos a que se submete. Unicamente pessoas de espírito livre, libertas dos sofismas da fé cega, “adoram o Pai em espírito e verdade, pois tais são os adoradores que o Pai procura” (Jo4:23). Pouco antes de morrer, o Salvador assegurou ao bom ladrão a seu lado que naquele mesmo dia ele “estaria no Paraíso” (Lc23:43); não consta, porém, que esse bom ladrão tenha tido tempo de ser batizado antes de morrer.

E para quem advoga ser o Paraíso uma espécie de “estação intermediária” das almas salvas até a gloriosa ressurreição em corpo terreno, desafio a convencer esse bom ladrão a sair de sua Pátria espiritual, a região dos bem-aventurados, onde está há quase dois mil anos, para descer à Terra e ressuscitar em seu corpo terreno no final dos tempos. Se alguém conseguir essa proeza, dou a mão à palmatória. Podem descartar tudo o mais que está escrito neste livro. Fica o repto.

Que o conceito de salvação mediante alguma prática ritualística está em completo desacordo com a doutrina de Jesus, testemunham todos os seus ensinamentos, durante sua vida inteira. Em sua primeira epístola, João diz que “o Pai enviou seu Filho como Salvador do mundo” (1Jo4:14). Do mundo inteiro, e não só dos israelitas com sua religião. Os próprios reis magos eram estrangeiros, e não teriam se deslocado até Belém se não estivessem convencidos de que nascera o Salvador do mundo inteiro, portanto também de seus povos. Até mesmo os samaritanos, tão desprezados pelos judeus, sabiam que Jesus era o Salvador de todo o mundo e não apenas de um determinado grupo de pessoas: “Nós próprios o ouvimos, e sabemos que esse é verdadeiramente o Salvador do mundo” (Jo4:42). O próprio Salvador disse que tinha outras ovelhas para cuidar: “Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil” (Jo10:16); disse também que o Templo de Jerusalém devia ser uma “Casa de Oração para todos os povos” (Mc11:17) e ainda encarregou seus apóstolos a ensinar “todas as gentes” (Mt28:19). Como testemunho extrabíblico, Flávio Josefo escreveu no primeiro século que “Jesus ganhou seguidores tanto entre muitos judeus, como entre muitos de origem grega.”

Já no tempo em que Jesus era apenas um menino, o judeu Simeão proclamara essa verdade da salvação universal ao tomar nos braços o Messias profetizado e glorificar o Senhor: “Agora, Soberano Senhor, podes despedir em paz o Teu servo, segundo a Tua Palavra, porque meus olhos viram a Tua salvação, que preparastes em face de todos os povos, luz para iluminar as nações” (Lc2:29-32). A salvação estaria reservada, portanto, a todos os povos e nações, independentemente da prática de rituais religiosos específicos, como é o batismo. Em Lucas, também vemos que a conversão seria anunciada a “todos os povos, começando por Jerusalém” (Lc24:47). Até os fiéis de origem judaica compreenderam isso e o confessaram a Pedro: “Deus também concedeu aos pagãos o arrependimento que conduz à Vida!” (At11:18).

A condição básica para a salvação sempre foi a de assimilar e cumprir o que a Palavra prescreve, independentemente da origem e costumes dos povos. Paulo anunciou a mesma coisa com essa sentença, dirigida aos judeus: “Esta salvação de Deus é enviada aos pagãos, e eles escutarão” (At28:28). Os pagãos, pois, escutariam a Palavra da Salvação e seriam salvos se a pusessem em prática em toda sua vida, como ocorre com qualquer pessoa, inclusive os romanos do tempo de Cristo. Já não era, pois, o “centurião Cornélio, homem justo e temente a Deus”? (At10:22).

Pedro também tinha a mesma opinião de seu colega de apostolado: “Na verdade, eu me dou conta de que Deus é imparcial e de que, em toda nação, quem quer que O tema e pratique a justiça é acolhido por Ele. (…) A promessa é para vós e vossos filhos e para todos aqueles que estão longe, todos aqueles que o Senhor, nosso Deus, chamar” (At10:35;2:39). Esse chamamento do Senhor se dirige, pois, a todos os que praticam a justiça, a todos os que vivem segundo Suas normas, das quais não fazem parte os ritos particulares das religiões e seitas.

A sentença dogmática de Mc16:16 de uma pretensa salvação através de crença cega e batismo não difere em nada do que pregavam aqueles indivíduos sectários vindos da Judéia, no início do Cristianismo: “Se não vos fizerdes circuncidar segundo a regra de Moisés, não podeis ser salvos” (At15:1). É exatamente a mesma coisa, idêntico procedimento farisaico.

E também não cabe aí a alegação do intenso trabalho batismal desenvolvido por João Batista, pois este só concedia o batismo a quem se mostrava digno dele, isto é, a quem antes tivesse se comprometido em viver dali em diante de modo totalmente renovado: “Eu vos batizo na água, em vista da conversão” (Mt3:11), dizia ele. Quando Marcos afirma que João Batista proclamou “um batismo de conversão para o perdão dos pecados” (Mc1:4), estão fica demarcado que o perdão dos pecados depende dessa conversão prévia para o bem, cujo sinal visível de disposição íntima é o batismo.

Se o batismo, por si só, pudesse ajudar alguém de algum modo, então o feiticeiro Simão também teria sido salvo quando “se fez batizar e se tornou adepto de Filipe” (At8:13). No entanto, logo depois de ser batizado ele demonstrou seu verdadeiro caráter ao oferecer dinheiro aos apóstolos, para que estes lhe concedessem o poder da imposição das mãos (cf. At8:18,19). Dessa atitude de Simão derivou mais tarde o termo “simonia”, que indica a compra e venda de benesses eclesiásticas.

O historiador Flávio Josefo, que viveu poucos anos depois de João Batista, nutria pelo profeta sincera admiração e diz o seguinte sobre ele e a prática do batismo em sua obra Antiguidades Judaicas: “Um homem bom, que havia exortado os judeus a levar uma vida honesta, a praticar a justiça uns para com os outros e a piedade para com Deus e, agindo assim, receber o batismo. Na sua opinião, tratava-se de um pré-requisito para que o batismo fosse aceitável a Deus. Eles não deviam servir-se dele para obter o perdão de alguns pecados que tivessem cometido, mas como consagração do corpo, significando que a alma já estava completamente purificada por uma justa conduta.” Essa singela e ao mesmo tempo profunda descrição de Flávio Josefo sobre o significado do batismo, deveria constar de todas as Introduções aos Evangelhos nas muitas versões modernas da Bíblia.

Só quem realmente se convertesse para o bem, produzindo os frutos correspondentes, seria digno do batismo, como sinal da disposição de angariar a vida eterna. Exatamente devido a essa necessidade de conversão interior, João Batista recusou asperamente o batismo aos saduceus e fariseus, os quais não haviam produzido antes os frutos que testemunhariam sua conversão: atos, e não palavras ocas, demonstrando com isso que não haviam se modificado interiormente:

“Vendo, porém, que muitos fariseus e saduceus vinham ao seu batismo, disse-lhes: ‘Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera que está para vir? Produzi, pois, frutos dignos de conversão e não vos iludais a vós mesmos, dizendo: Temos por pai a Abraão!’“

(Mt3:7-9)

A conversão interior como pré-requisito para a bem-aventurança já fora anunciada pelo profeta Ezequiel, com a transmissão dessa exortação do Senhor: “Convertei-vos e vivereis!” (Ez18:32). João Batista exigia de seus ouvintes essa mesma conversão prévia, com pré-requisito para a possibilidade de obtenção da vida eterna. No século III da nossa era, o sempre atento Orígenes voltava a avisar os cristãos que o batismo, por si só, não garantia uma vida inocente a ninguém.

A palavra “batismo” provém do grego baptizo, que significa imergir ou submergir. O sentido da imersão na água é o de que a respectiva pessoa deseja purificar-se de todo erro e viver daí em diante de maneira inteiramente renovada. Mas o próprio batismo não pode purificar ninguém, não pode lavar nenhuma culpa, servindo tão-só como sinal externo de um compromisso do batizando em depurar, ele mesmo, a sua alma. Se assim não fosse, Jesus não diria que apenas os males que brotam do coração e saem da boca é que são capazes de contaminar o ser humano (cf. Mt15:11), e que, portanto, somente com a purificação do próprio coração, do íntimo do ser humano, é possível uma redenção. Se a função do batismo fosse limpar alguém de seus pecados, Jesus logicamente também não teria sido batizado, visto que ele “não cometeu pecado algum, nem se achou engano na sua boca” (1Pe2:22), pois era “santo, inocente, sem mancha, separado dos pecadores” (Hb7:26). E o próprio Jesus teria igualmente batizado os inúmeros pecadores que encontrou pela vida, coisa que nunca fez segundo os Evangelhos sinóticos.

Se algo espiritual pode ou não ser concomitantemente recebido durante o ato do batismo, então isso novamente depende da receptividade interna do batizando e, não por último, das condições de quem batiza, pois somente uma pessoa ligada à Luz é capaz de transmitir Luz. Uma tal capacidade, porém, não se consegue através de cursos universitários, estudos teológicos ou consagrações eclesiásticas, mas precisa tratar-se de alguém especialmente convocado pelo Alto, como outrora o foi João Batista.

O batismo relaciona-se com a água porque desde tempos imemoriais ela é o símbolo da pureza. Mesmo no Judaísmo antigo já se fazia menção a abluções e banhos de purificação. Segundo o comentário de Mc1:4 da Tradução Ecumênica da Bíblia, na comunidade de Qumran, depositária dos antigos Manuscritos bíblicos do Mar Morto, “os banhos cotidianos exprimiam seu ideal de pureza, sem substituir a necessária conversão interior.”

Também para o antigo povo Inca a água tinha um significado especial, sempre relacionado à pureza. Uma das festas celebradas por esse povo extraordinário era a Festa dos Espíritos das Nascentes. Nela, um sábio Inca, seguido de vários participantes, se dirigia a uma nascente de água e proclamava a “pureza vibrante” da água. Em seguida, um grupo de dez participantes ajoelhados à beira d’água mergulhavam a mão direita na água cristalina e molhavam a testa, enquanto proferiam o seguinte juramento: “Prometemos, agora, nesta hora, que todos os pensamentos que saírem de nossas cabeças serão límpidos como essa água!” (citado de A Verdade Sobre os Incas, de Roselis von Sass).

Em tempos idos a água sempre esteve, portanto, relacionada à pureza, representando o ideal puro que o ser humano, por deliberação e empenho próprios, se comprometia a seguir. Esse era e continua sendo o único solo adequado para o recebimento do batismo. A água só pode lavar o corpo. A alma tem de ser limpa dos pecados nela aderidos pelo próprio espírito humano.

Mas, infelizmente, essa verdadeira conceituação original já há muito não é reconhecida e muito menos seguida. Na verdade, já nos primórdios da era cristã o batismo se transmutara num mero rito de incorporação à comunidade em formação. Ao contrário de João Batista, que sempre exigia uma prévia conversão íntima para conceder o batismo, na geração seguinte já vemos que bastava “aceitar as palavras de Pedro” (At2:41) ou “crer na pregação de Filipe” (At8:12), para alguém ser batizado. A suposição de que o batismo pudesse lavar pecados também só surgiu bem depois, fundamentada na estória do chefe arameu Naamã, que se viu livre da lepra ao se banhar no rio Jordão, seguindo a orientação do profeta Eliseu (cf. 2Rs5:9,10,14). Se o mergulhar nas águas podia curar uma doença externa, então também podia curar o pecado interior...

As concepções de que rituais litúrgicos bastam para salvar uma alma humana irromperam, portanto, já no início da era cristã e propagaram-se incólumes através dos séculos, tornando-se cada vez mais rígidas. Nos primeiros séculos, era fato comum as pessoas reconhecidamente pecadoras adiarem o batismo até a hora da morte, para poderem passar ao Além com a alma livre de culpas... Os pecados cometidos até então durante a vida estariam automaticamente perdoados. O próprio Agostinho só foi se batizar com a idade de 32 anos. Mais precavido ainda foi o imperador Constantino, que só procurou o batismo no leito de morte.

Na truculenta Idade Média, a concepção redentora do batismo chegou ao paroxismo. No ano de 1497, o bispo de Algarve, Portugal, contou ter visto judeus convertidos sendo arrastados pelos cabelos até as fontes batismais… Acreditava-se que o batismo apagava nos convertidos “todos os pecados do povo hebreu.” O judeu que não se sujeitasse ao batismo cristão era morto. O batismo do rito católico, especialmente, era o mais procurado. Relatos do século XVII informam que pais protestantes levavam seus filhos recém-nascidos para serem batizados nalguma igreja católica, porque “era mais seguro”… Na primeira metade do século XX ainda se registrava o costume, em alguns lugares da Europa, de a mãe só beijar o bebê depois de tê-lo batizado. Em nossa época tais concepções redentoras continuam em voga, apenas travestidas de uma abordagem mais palatável, como o é a idéia da extinção do pecado original mediante o rito batismal.

Mas o pior de todos os erros do Cristianismo ainda é, sem dúvida nenhuma, a conceituação de que a salvação plena do fiel cristão advém pela morte expiatória de Jesus na cruz. A declaração dos evangélicos no Congresso de Missão Mundial, reunido em Chicago em 1960, é significativa a respeito: “Nos anos decorridos desde a Segunda Guerra Mundial, mais de um bilhão de almas passaram à eternidade, e mais da metade destas foram para o tormento do fogo do inferno sem nem mesmo ter ouvido a respeito de Jesus Cristo, de quem ele era e da razão por que ele morreu na cruz do Calvário.” Essas palavras demonstram o nível de presunção dos fariseus modernos, que se julgam agraciados pelo destino pelo simples fato de serem cristãos; mostra, sobretudo, um desconhecimento total da Justiça divina que rege a Criação. A sentença onipresente em seus lábios: “Temos por Salvador Jesus Cristo!”, em nada difere da declaração de seus antigos mestres farisaicos: “Temos por pai Abraão!” (cf. Mt3:9). Triste, muito triste.

E, no entanto, bastaria que atentassem um pouco mais na Epístola de Paulo aos Romanos para verem que não é necessário, absolutamente, ser cristão para se cumprir plenamente a Lei de Deus:

“Há gentios que não tendo a Lei praticam, por inclinação natural, o que está na Lei; embora não tenham a Lei, para si próprios são a Lei. O que a Lei manda praticar está escrito nos seus corações, tendo ainda o testemunho da sua consciência, tal como dos pensamentos.”

(Rm2:14,15)

Menciono aqui novamente um trecho da dissertação O Salvador, contida no segundo volume da obra Na Luz da Verdade, de Abdruschin:

“Jesus anunciou a Verdade. Por conseguinte, suas palavras devem encerrar também todas as verdades de outras religiões. Ele não quis fundar uma igreja, mas mostrar o verdadeiro caminho à humanidade, o qual pode ser igualmente atingido pelas verdades de outras religiões. Por isso é que se encontram em suas palavras também tantas consonâncias com as religiões já existentes naquele tempo.

Jesus não as tirou daquelas religiões, mas como ele trouxe a Verdade, devia encontrar se nela também tudo aquilo que em outras religiões já existia de verdade.

Também mesmo quem não conhece as palavras de Jesus e almeja de modo sincero a Verdade e o enobrecimento, já vive muitas vezes inteiramente no sentido dessas palavras e por isso marcha com segurança também para uma crença pura e o perdão de seus pecados. Acautela te, por conseguinte, de concepções unilaterais. Desvalorizam a obra do Salvador.”

Vejamos mais uma passagem daquele burlesco capítulo 16 de Marcos. Os versículos 17 e 18 dizem textualmente: “Estes sinais hão de acompanhar aqueles que crêem: em meu nome expelirão demônios, falarão novas línguas, pegarão em serpentes, e se alguma coisa mortífera beberem não lhes fará mal; se impuserem as mãos sobre enfermos, eles ficarão curados” (Mc16:17,18).

O teor desse trecho não resiste ao bom senso e nem a uma análise mais acurada:

Outro trecho inexistente nos códices Sinaiticus e Vaticanus, os mais antigos e de maior autoridade, é o da aparição do anjo no jardim do Getsêmani e a menção ao suor de Jesus que se transforma em sangue, constante no Evangelho de Lucas: “Então lhe apareceu um anjo do céu que o confortava. E, estando em agonia, orava mais intensamente. E aconteceu que o seu suor se tornou como em gotas de sangue caindo sobre a terra” (Lc22:43,44).

Embora existam relatos de pessoas que, sob determinadas condições, secretam um suor sanguinolento, numa condição clínica chamada “hematidrose”, nunca será possível que o próprio suor se transforme em sangue, porque um tal fenômeno não tem respaldo nas leis naturais. Assim, esse trecho se caracteriza como mais uma inserção posterior.

Além desses dois casos repassados de Marcos e Lucas, diversas outras passagens dos Evangelhos canônicos também não constam dos manuscritos mais antigos e confiáveis. As principais faltas são as seguintes:

Não é de estranhar que essas duas últimas frases tenham sido inseridas posteriormente no texto original do Evangelho de Lucas, visando justificar o falso conceito da ressurreição corpórea de Jesus e sua posterior ascensão aos céus em corpo físico.

Oportuno lembrar aqui a insuspeita observação do biblista e sacerdote católico Gianfranco Ravasi, membro da Pontifícia Comissão para os Bens da Igreja, prefeito da Biblioteca Ambrosiana e professor de exegese bíblica na Faculdade de Teologia da Itália Setentrional. Padre Ravasi explica que a imagem de Cristo elevando-se sobre o sepulcro é ignorada pela arte cristã dos primeiros séculos, a qual só mostra o quadro das mulheres junto à sepultura. Somente a partir do século XI é que surge na pintura medieval o tema de Cristo ressurgindo do sepulcro e pairando no céu…

É curioso como esse episódio parece não despertar nenhum vivo interesse entre os espectadores da época. Tem-se a impressão de que estavam lá só para cumprir um ritual de cura muito bem conhecido, um evento assim corriqueiríssimo na região. Parece que naqueles tempos idos não era nada de mais, nada de extraordinário, um anjo descer do céu para vir agitar a água de um tanque.

Essa sentença só aparece em manuscritos bem mais recentes, e contradiz a informação de Atos de que Jesus apareceu aos apóstolos durante quarenta dias após sua morte (cf. At1:3).

A frase original não apresenta a expressão “no sangue do Cordeiro”, enfatizando somente a necessidade de o ser humano limpar sua alma para poder angariar a vida eterna. Essa expressão aparece apenas em Ap7:14. Abdruschin aborda esse ponto em seu livro Respostas a Perguntas.

No trecho a seguir do Evangelho de João, que descreve a vinda do Verbo à Terra, também é muito chamativo que a expressão “aos que crêem em seu nome” seja omitida por muitos dos primeiros Padres da Igreja, que certamente tinham acesso a documentos mais antigos e confiáveis:

“Mas aos que o receberam, [aos que crêem em seu nome], ele deu o poder de se tornarem filhos de Deus”

(Jo1:12)

O texto original, portanto, dizia que quem recebesse o Verbo, isto é, quem assimilasse a Palavra, poderia tornar-se um “filho” de Deus, ao passo que o texto adulterado diz que isso acontece àquele que crê no seu nome. Uma diferença colossal! Uma tal incoerência não pode existir no atuar divino, porque este é perfeito e tudo quanto é perfeito exige a mais severa conseqüência lógica. A própria palavra “Verbo” se escreve logos em grego, de onde deriva o termo lógica. Logos também traz em si os conceitos de “Ação da Fala” e “Mensagem”.

No livro de Atos dos Apóstolos também se observa a ocorrência de uma frase inexistente nos manuscritos mais confiáveis. Trata-se da resposta de Filipe à indagação do eunuco se poderia ser batizado: “É lícito, se crês de todo o coração. E, respondendo ele, disse: Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus” (At8:37).

Mais uma vez aparece inserida a concepção posterior de que basta a “crença” em Jesus para se conseguir imediatamente a purificação do íntimo, condição necessária para o batismo segundo João Batista.

  1. O livro Jesus, o Amor de Deus, publicado pela Editora Ordem do Graal na Terra, traz o Evangelho de João em sua forma original. Retornar
  2. Há quem faça uma distinção entre carta e epístola. A carta seria um escrito específico, destinado a um determinado grupo de pessoas, enquanto que a epístola teria um caráter mais abrangente, sendo destinada a um vasto círculo de leitores. Com base nisso, alguns teólogos católicos denominam as epístolas paulinas de “encíclicas”, como se já existisse um correio apostólico naquele tempo. Retornar
  3. Existiram várias cartas de Paulo, que acabaram não chegando até nós. Conforme visto, existiu uma carta enviada aos Coríntios anterior à primeira epístola canônica dirigida a essa comunidade, como também houve uma epístola aos Laodicences. Por sua vez, o bispo de Esmirna, Policarpo, ao escrever aos Filipenses fala de “cartas” (no plural) que Paulo teria enviado àquela comunidade. Supõe-se também que muitas das cartas de Paulo não foram escritas por ele mesmo, e sim por uma “escola paulina”, originada de seu pensamento doutrinário. Na Bíblia, as cartas de Paulo foram dispostas por ordem de extensão, da maior – Romanos, à menor – Filemon. Retornar
  4. Dâmaso foi quem estabeleceu a missa rezada em latim, que até então era celebrada em grego. Retornar
  5. Ao contrário do papiro – descoberto no Egito por volta de 3.000 a.C. e feito da casca do junco papyrus – o pergaminho, que de acordo com o escritor romano Plínio foi inventado em cerca de 200 a.C. na cidade de Pérgamo (daí seu nome), podia ser reutilizado após a raspagem do texto original, visto ser confeccionado com peles de animais. O novo manuscrito que surge após a raspagem do pergaminho chama-se palimpsesto (raspado de novo). Retornar
  6. Ver, a respeito, a dissertação “Magnetismo Terapêutico”, no segundo volume da obra Na Luz da Verdade, a Mensagem do Graal de Abdruschin. Retornar