EM NOME DO NATAL

Luiz Carlos Lisboa, renomado escritor e jornalista, escreveu em “Olhos De Ver – Ouvidos De Ouvir” os comentários abaixo, que transcrevemos por julgar muito oportuna a época.

“Uma antiga anedota conta que alguém, precisando comprar um medicamento e receando esquecer seu sofisticado nome comercial, improvisou uma pequena melodia para fixar a marca na memória, e a cantarolou enquanto procurava uma farmácia. Pouco depois, diante do farmacêutico espantado, só soube repetir a música que vinha entoando, a caminho. A letra, isto é, o remédio, ele havia esquecido completamente. Coisa muito semelhante ocorre com os símbolos religiosos e cívicos que o homem instituiu para perpetuar exemplos e atitudes, ao longo da História. Exemplo flagrante é o Natal, de cujo significado primitivo pouco resta, só nos tendo ficado o “jingle bells”, os cartões de votos, as estrangeiras árvores cobertas de neve artificial e uma fúria incontrolável de comprar e vender.

O conteúdo, o remédio que nos foi subtraído da memória coletiva, era uma coisa totalmente diversa.Em sua essência, o regozijo pelo Natal esteve um dia relacionado com o renascimento espiritual de todo homem, aquele recomeço de que todos – consciente ou inconscientemente – somos nostálgicos até o fundo da alma. A sabedoria do Cristianismo primitivo atribuía grande importância a esse desabrochar, ricamente simbolizado no nascimento de Cristo. A mensagem da esperança contida na festa consistia precisamente na possibilidade de renovação de todo ser humano. A potencialidade dessa idéia não pode ser avaliada com facilidade numa época como a nossa, mais competitiva e utilitária do que gostamos de admitir. Em oposição ao verdadeiro espírito do Natal – de alegria pelo surgimento do Novo Homem e pela morte do velho Adão – o que se festeja é o espírito de Mercúrio, o esperto deus romano do comércio. Nada disso tem qualquer coisa a ver com o extraordinário renascimento a que se refere o Natal, materializado na história pungente contada nos Evangelhos.

Perdida a essência – que inicialmente foi modificada, depois substituída e em seguida totalmente esquecida – ficou a casca, o símbolo vazio, pretexto para mil coisas diferentes, tema de todos os apelos e pretexto para todos os personalismos. A árvore, o presépio a figura friorenta e distante de Papai Noel, toda essa parafernália deslocada em pleno trópico, fazendo alusões a neve, a trenós, a renas, a lareiras acesas – tudo é uma só loucura e imensa alienação. Para o comerciante que não se considera comprometido com a inteligência e o bom gosto – como estão, por princípio, todos que têm alguma coisa a comunicar – essas velharias inexpressivas servem de tema. O verdadeiro significado do Natal não ajuda a vender as mil coisas que estão nas lojas – e que deveriam ser vendidas pelos seus próprios méritos e respectiva utilidade prática. Pode e deve existir uma promoção comercial adequada. O que devia ser evitado – e desaparecer para sempre, em nome da inteligência e do bom senso – é a deformação do Natal, o aviltamento de um antigo e precioso símbolo.

Nada é mais doloroso em todo esse festival de mau gosto que se repete todo ano, do que as esperanças que são sopradas no coração da pobreza, da gente humilde que se deixa tentar pelo sonho se a realidade não é das mais sedutoras. O mito do velhinho que visita as chaminés e os pés de meia do mundo inteiro, e cavalga nas nuvens com seu trenó tirado a renas, pode ser – se visto de um ângulo particular, embora bastante real – incrivelmente cruel. Não são apenas os pequeninos que se sentem frustrados com as preferências desse exótico personagem, mas também os adultos, que não conseguem convencer suas crianças de que tudo é uma brincadeira infantil dos adultos. Todo esse aspecto esfuziante de festa, essa aparência vivaz de cores e sons, não compartilha um só momento do milagre da renovação que existe no espírito humano, mas apenas chama atenção para as possibilidades de prazer – e esse prazer de adquirir, de possuir, de aparentar, de desfrutar ao máximo, é basicamente fútil, quando não é profundamente neurótico. Esse carnaval de anjinhos e estrelas, que invade as cidades em nome de um mistificado espírito religioso, não apenas é provinciano e fraudulento, como também é nocivo, na medida em que espicaça o apetite de quem não pode comer.

As religiões cristãs têm, todas elas, sua visão particular do Natal, e a todas muita coisa é comum. Nenhuma ignora o sentido de fraternidade da festa, quando os desencontros humanos devem cessar para dar vez a uma forma alta de amor entre os homens. Outras religiões têm celebrações semelhantes e falam da mesma coisa. Esse consenso tem sido sistematicamente afrontado, nos grandes centros urbanos do mundo ocidental, por uma espécie de deformação consciente – e consentida – do Natal, na qual nada se salva da tradição original.”

“Palavras Amigas” concorda com o ilustre escritor, em gênero, número e grau, e assina em baixo: J. Nivaldo Alvarez.