PROFISSÃO DE FÉ
(24/07/2006)

Ignácio de Loyola Brandão

Entrevista com Loyola Brandão publicada na revista Panorama Editorial - edição 15 de dezembro de 2005
(Câmara Brasileira do Livro – cbl.com.br).

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O escritor, que acaba de celebrar 40 anos de carreira, com a reedição de sua primeira obra, Depois do Sol, pela Global, é um dos autores que mais participa dos eventos relacionados ao livro e à leitura em todo o País. Nesta entrevista pontua sua trajetória, comenta sobre o ofício de escrever e aponta os grandes entraves para formar leitores no Brasil. Manifesta, ainda, um indisfarçável prazer em encontrar e se aproximar do público: “Tenho a certeza de que em cada cidade que vou, conquisto pelo menos quatro ou cinco leitores. Esse cara a cara é importante para o autor”

Panorama Editorial – Como é ser escritor no Brasil? Quem segue esta carreira aqui vive uma situação diferente de quem está em outros países?

Ignácio de Loyola Brandão – Ser escritor no Brasil acho que é igual em todo o mundo. Existem alguns escritores que acabam sendo pinçados pelo talento, por cair no gosto popular ou por marketing, e têm livros que são muito bem vendidos. Mas a maioria, diria 80% dos escritores mundiais, têm um ofício e escrevem. Uns vivem mais modestamente, porque só escrevem, outros têm de arrumar uma forma de sobreviver. Mas o que interessa é escrever. Há as ‘estrelonas’, as estrelas menores e as estrelinhas. O futebol também não vive só de Pelé e Ronaldo, existem milhares de jogadores anônimos que estão mantendo o futebol de pé; não fosse assim, times como o Brasiliense não existiriam. São bons e cumprem seu destino.

PE – Como foi sua trajetória, a partir do primeiro livro editado, Depois do Sol, em 1965?

Loyola – Depois dele vieram 27 obras. Quando cheguei ao quarto título, o Zero, foi um momento especial, por algumas razões. Uma delas porque era um livro que rompia a estrutura tradicional de narrativa e a outra porque foi o primeiro romance na época a desmascarar, a desnudar a ditadura, mostrando como estava sendo a vida neste País. Foi publicado primeiro no Exterior, teve repercussão aqui, e aí foi lançado no Brasil. Conquistou as maiores críticas, vendeu muito na época e vende até hoje [a obra foi traduzida para seis idiomas, Alemão, Espanhol, Inglês, Coreano, Húngaro e Italiano]. Curiosamente, de todos os livros proibidos naquele período é o que continua vendendo. Encontro jovens, ainda hoje, que dizem ‘o livro é um barato, é diferente’, ou ‘comecei a ler por causa do Zero’. Ele cumpriu uma parte desse destino. A partir daí, passei a ter mais visibilidade, o que se acentuou depois com Não Verás País Nenhum [traduzido para o Alemão, Inglês e Italiano], outra obra de impacto e que estourou em 1981 e ainda vende, é inclusive adotado pelas escolas. Mais tarde, veio O Verde que Violentou o Muro, que também teve sucesso, talvez porque era o primeiro livro a tratar da questão do Muro de Berlim e poucos no Brasil sabiam o que era Berlim dentro do muro. Num formato também diferente, era gostoso de ler e após a queda do muro foi atualizado. E então escrevi os outros e assim fiz minha carreira. No entanto, mesmo vendendo razoavelmente bem tive de manter os meus empregos. Trabalho na Carta Editorial, onde dirigi a revista Vogue por 15 anos e agora estou no Conselho. Além disso, escrevo uma crônica semanal para o jornal O Estado de S. Paulo. Este trabalho, aliás, me fez descobrir um outro lado meu, o de cronista, que nunca esperava ser. Sempre li muitos cronistas e nunca imaginei que seria um. E agora, adoro escrever crônicas, me sinto à vontade, me divirto. Com a crônica eu retrato o dia-a-dia em São Paulo. Com a crônica eu faço laboratório de contos, com ela eu protesto, manifesto, ali eu me abro. E, no ano passado, escrevi uma peça teatral, minha primeira, A Última Viagem de Borges. É a aventura de um homem que busca a palavra perfeita, o sonho de todo mundo que escreve. Agora, ao completar 40 anos de carreira reeditei o primeiro livro, Depois do Sol, lançado nos jardins da Global [responsável pela edição de suas obras há 25 anos]. Era o único livro que tinha uma só edição e agora tem duas.

PE – O senhor participa de inúmeros eventos que promovem o livro e a leitura em todo o País. Pode-se dizer que o senhor é um ativista do livro?

Loyola – Não é bandeira, não é missão, não é nada disso. Não gosto dessas palavras. Gosto de participar; acho importante chegar aos lugares e descobrir pessoas que leram meus livros e não tinham a menor idéia de como eu era. É a oportunidade de me encontrar com os leitores. Eles vêm, fazem perguntas, questionam, enfim converso com essas pessoas. Não são muitos os escritores que encontram os leitores pelo País. Ficar encerrado em casa não adianta.

PE – O que pode significar para o escritor esse contato mais próximo com o leitor?

Loyola – Primeiro, conheço o Brasil. Acho que não tem uma biboca neste País para a qual não tenha ido. Fui a cidades que não imaginava que existissem. Abri feiras de livros, por exemplo, em Serafina Corrêa, no Interior do Rio Grande do Sul, uma colônia italiana, onde falam dialeto [vêneto]. Estive em Mossoró, Areias, Corumbá. Só este ano participei de mais de 50 eventos desse gênero. Isso é importante no sentido de que vejo a cara do leitor, conheço um Brasil diversificado. Sou um escritor paulista , mas o Brasil não é só São Paulo. Tenho a certeza de que em cada cidade que vou conquisto pelo menos quatro ou cinco leitores. Talvez por isso, de repente, meus livros mantenham as vendas. Esse cara a cara é importante para o autor. O João Antonio [Ferreira Filho] tinha uma expressão para definir este contato: “enfrentamento com o leitor”. É o olho no olho.

PE – As estatísticas sobre o hábito de leitura dos brasileiros indicam um quadro bastante ruim. De que maneira, na sua opinião, essa situação pode ser revertida. Promover a aproximação entre leitores e autores pode ser um caminho?

Loyola – Não, isso é uma coisa que o escritor faz, quando tem montada uma estrutura. Os índices também caí-ram na França e nos Estados Unidos, então, isso está acontecendo no mundo todo. Agora, em um país como o Brasil em que o ensino é o que é, como podemos esperar que as pessoas leiam? As pessoas não sabem ler, as escolas não formam leitores, não há bibliotecas. O que mais me impressiona em muitas das cidades por onde ando é a ausência de bibliotecas públicas. Às vezes, tem biblioteca pública na cidade, mas o acervo é composto por doações feitas por almas caridosas que dão uma limpada em casa, ou seja, é um lixo. Outra coisa é que muitas vezes a pessoa que está lá fazendo o papel de bibliotecária não é formada; na maioria das vezes é uma velha funcionária em vias de se aposentar que é encostada ali. E, quando encontro uma bibliotecária, muitas vezes a situação ainda não é a ideal. Uma vez perguntei qual era o critério de compra dos livros para o acervo e ouvi da bibliotecária ‘ah, a gente pega a lista da Veja e compra’; e quando questionei por que não consultavam alguns professores para saber o que é importante ter, recebi como resposta ‘a gente dá o que o povo quer ler’. Isso é feito com dinheiro público! Então, a escola não forma, o professor que teria de ler e formar, não tem tempo de ler nem ganha o suficiente para comprar livros e o pai, que para ajudar a formar o filho deveria de ter um emprego e ganhar bem, sequer tem trabalho. Além disso, tem o preço do livro. Enquanto não resolver tudo isso, esse panorama vai continuar e se lerá cada vez menos.

PE – Como o senhor vê iniciativas como as do governo de criar um Plano Nacional do Livro, Leitura e Bibliotecas e de inúmeras entidades com foco na educação e na leitura. Podem trazer alguma mudança a esse cenário?

Loyola – O que acredito é que será um trabalho de formiga do setor privado. Por exemplo, tem um grupo de jovens da “Expedição Vaga-Lume” que está fazendo bibliotecas na Amazônia, levando a leitura para aldeias nas quais nunca se ouviu falar e está dando certo. Se tivermos centenas ou milhares de pequenas organizações como essas será uma grande ajuda nessa direção. Agora, o governo talvez atrapalhe. Não acredito em iniciativa do governo, não deste especificamente, mas de qualquer outro, porque nunca fizeram nada. Vai ter corrupção na compra, vai ter censura nos textos escolhidos, vai ter sacanagem nas listas. Já conhecemos esse tipo de coisas. Não é a utopia que eu quero. Uma vez fui a Joinville, há uns 15 anos, e conheci um projeto desenvolvido pelas escolas para ter biblioteca na sala de aula. Os professores distribuíam a lista do material e colocavam um bilhete para o pai dizendo que, se ele pudesse, se achasse interessante, doasse um livro infantil para a classe do seu filho. No primeiro ano dois pais doaram. Eles insistiram e no segundo ano foram dez, e aí o projeto cresceu. Nessa visita, numa sala de aula tinha estantes com 300, 400 livros. Isso em cada sala de aula, que trocavam os volumes entre si e o controle dos empréstimos era feito pelos próprios alunos. Isso foi uma iniciativa das escolas dali. Por que todas as escolas não fazem isso no Brasil? Porque também o professor tem uma dose de preguiça. Independente da má remuneração, ele tem um papel a cumprir.

PE – Existem algumas parcerias entre poder público e privado que demonstram resultados positivos, como o programa de bibliotecas dos Estados de São Paulo e Pernambuco. Essa não pode ser uma alternativa?

Loyola – Talvez sim. A FAAP [Fundação Armando Álvares Penteado] tem um projeto de doação de bibliotecas: vai lá e monta, doa os volumes, instala computadores e põe gente para trabalhar. Acho que esse tipo de ação é válido, se houver essa união. Mas o que não se deve é deixar para o governo fazer. Acho que ele não deve interferir, deve dar o dinheiro para abrir o espaço, instalar as estantes, o computador. Agora, as boas iniciativas também esbarram em problemas. Em Uberlândia a biblioteca central passou a levar os livros num ônibus para vários bairros da periferia,até que um dia a responsável pelo projeto foi informada de que não poderia mais mandar o veículo para determinado bairro porque estava incomodando os traficantes. Quando o ônibus chegava a população ficava em volta no momento em que eles estavam vendendo a droga. É uma situação surrealista. Em vez de chamarem a polícia para proteger, tiram dalí o ônibus da biblioteca. Aquelas crianças dali, que teriam a possibilidade de ler, portanto, vão continuar sendo “avião” dos traficantes. Essa é a realidade.

PE – De que maneira os editores podem contribuir para conquistar leitores?

Loyola – Acredito que deva haver uma união dos editores para buscar uma solução, uma abertura. Por que os preços são tão altos? A questão da baixas tiragens e de que o livro se tornará mais barato à medida que elas aumentarem ouço há 40 anos. Empresário no Brasil, de modo geral, gosta de chorar de barriga cheia; é preciso pensar um pouco diferente. Aí, entramos em uma outra questão: se pensarmos em fazer um produto mais barato, mais simples, esbarramos no preconceito do leitor. Por que o livro de bolso, só recentemente, começou a dar resultados com a série da LP&M? Porque o leitor ainda tem essa coisa do livro objeto. É uma mentalidade de classe média preconceituosa. Vendido com o jornal, que custava R$ 1,00 na banca, não deu certo. Então, quando houver essa consciência de que o livro é para ser lido e não para ser exposto talvez mude. É complexo, é uma estrutura imensa para se modificar.

PE – E os eventos como as feiras, que acontecem pelo País inteiro, as bienais do livro, a Jornada de Passo Fundo, que tem um caráter diferente, que importância eles têm para a formação de novos leitores?

Loyola – As bienais são importantes porque durante dez dias se fala de livro, canaliza um público para dentro daquele lugar. Mas é mais um evento para editores e livreiros; os escritores vão lá para dar o colorido, que de um tempo para cá começou a ficar mais interessante com os cafés literários. Talvez no dia em que as bienais ampliarem essa programação de conversas, de leituras, de encontros do público com os autores, seja ainda melhor. Se hovesse uma bienal em todas as capitais, teríamos todos os meses uma em algum lugar. Então, durante os 12 meses do ano se falaria constantemente de livro. Sou a favor dessas feiras. Participei este ano da primeira de Mossoró, pequeníssima, precária, mas já estava cheia de gente. Já a Jornada de Passo Fundo tem outro formato. É para professores e estudantes debaterem, participarem de workshops, oficinas, sessões de leitura, não para vender livros. São em torno de seis mil adultos e 15 mil crianças, todos participando de alguma atividade. Depois, existem feiras mais populares, como a de Porto Alegre, com mais de 50 anos, e a de Ribeirão Preto, ambas na rua, e a de Paraty, que é mais elitizada, mas também é importante que exista. Isso tudo vai conquistando leitores.