A MENINA DAS LANTERNAS VERMELHAS
(22/07/2007)
Silvano Darcizo Hackenhaar
No interior da China, na região central, no sopé entre as montanhas Songshan e Hengshan, brotam as nascentes de um regato de águas frias e límpidas, às quais se juntam, no final do inverno, as águas formadas pelo degelo que descem do alto das montanhas. Nessas alturas inóspitas impera a imensidão branca da neve, entremeada de vez em quando por choupanas, construídas por caçadores. Mas à medida que se afasta das montanhas o regato se avoluma, se alarga, banhando verdejantes vales, planícies, formando murmurantes cascatas e lindos lagos, espelhando o azul do céu, desenhando bucólicas paisagens. De vez em quando outros regatos que nascem nas fraldas das montanhas engrossam o seu manancial, para, finalmente, transformar-se no rio Yang, vindo a desembocar, muitos e muitos quilômetros abaixo, no grande rio Huanghe (Rio Amarelo) que nasce nos montes Kunlun e desemboca no golfo de Bo, banhando imensas pradarias no planalto do norte da China, onde surgiram os primeiros povos chineses.
É considerado um dos dois rios colonizadores, onde nasceu a civilização chinesa, um dos berços da humanidade!
Nas enchentes, o rio Huanghe espalha pelas amplas planícies que banha, uma argila amarela, que o mesmo traz do deserto de Gobi até o vale; daí o nome rio Amarelo.
Seu vale é formado por terras muito férteis, bons pastos, propícios para a agricultura e o pastoreio e importantes jazidas minerais.
***
Na região montanhosa do rio Yang, a estação hibernal, era muito fria!
A temperatura caía sensivelmente, chegando a muitos graus negativos, estendendo um gigantesco e maravilhoso manto nevado sobre aquelas paragens, congelando as límpidas águas do mesmo.
A monotonia daquela imensidão nevada era quebrada apenas pela fumaça que saía das chaminés daquelas pequeninas choupanas tenazmente engastadas nas encostas daquelas montanhas.
Mas quando chegava a primavera a paisagem se modificava completamente!
As montanhas pareciam dançar, fazendo a neve derreter e para o vale correr!
As águas do rio voltavam a correr livres como as corças do campo, enquanto desciam em direção aos vales, a vivificar suas margens transformando aquelas regiões em estâncias paradisíacas.
Aos pés das cascatas, ao redor dos lagos, formavam-se lindos remansos propiciando ótimos lugares para descanso.
Às margens desses remansos formavam-se viridentes campinas e bosques floridos, habitados por pássaros multicoloridos e animais mansos, domesticados pelos seres humanos, vivendo em perfeita harmonia, cheios de alegria.
Foi nesse paraíso terrestre formado pelo rio Yang que a natureza criou um recanto extraordinário; uma cachoeira espumante, um lago azul, habitado por alvas e graciosas garças e um afluente de águas claras, ambos cercados por verdejantes e floridos vales, estendidos, quais lençóis verdes, entre as montanhas. Essas majestosas montanhas, vistas de longe, formavam uma serrania azulada, ondulando no horizonte. Nesse deslumbrante jardim da natureza, nasceu uma aldeia de aproximadamente dois mil habitantes, há mais de três mil anos, durante a dinastia Shang.
Era um pequeno povo, mas muito feliz!
Vivia em paz consigo e com a natureza.
Seu sustento tirava da agricultura e do pastoreio.
Aprendia e vivia de acordo com as leis naturais, transmitidas pelos seus ancentrais, que por sua vez, diziam, tinham aprendido do povo invisível que vive nas águas nos bosques, nos campos, nos ares e nas florestas!
Algumas das pessoas mais idosas do lugar, diziam ter visto alguns desses pequenos seres.
A seu respeito contavam-se maravilhas!
Da sua alegre maneira de ser, do seu incansável trabalho e das belas lições sobre a natureza que transmitiam, com muito amor, aos seres humanos.
A pessoa mais antiga desse lugarejo era conhecida como o Velhinho pela sua idade avançada, que ninguém sabia como também não sabiam o seu verdadeiro nome.
Pela idade e pela simpatia que irradiava era carinhosamente chamado de Velhinho.
E ele sabia contar muitas e maravilhosas histórias!
Era o encanto da criançada, dos oito aos oitenta anos!
Vez por outra, o Velhinho desaparecia da aldeia, durante vários dias, deixando todos preocupados. Quando retornava era questionado pelos demais sobre as suas fugas e onde andava; ele simplesmente respondia:
- Aprendendo!
E não dava mais conversa a ninguém sobre esse assunto!
Com o tempo ninguém mais o interrogava, pois já se tornara um hábito perante a aldeia. Mas nessas escapadas ele mantinha grandes contatos.
Distante um dia de caminhada pelo vale através de uma trilha margeando o rio finalizava numa estalagem, ponto de parada obrigatória para descansar e se abastecer; e mais um dia de árdua subida através de um escarpado caminho à beira de verdadeiros desfiladeiros. Esta estalagem sempre estava abastecida de cobertores quentes, víveres e água. Mas o viandante não sabia por quem. A meta final era um grande castelo, semelhante a um mosteiro, plantado no meio de uma densa floresta de coníferas, escondido da maioria dos seres humanos, mas com todos os recursos de uma comunidade auto-sustentável. Poucos eram admitidos no seu interior.
Neste local abençoado pela Luz o bom Velhinho recarregava suas forças espirituais e mantinha contatos com pessoas que sabiam ainda mais do que ele, dos princípios da vida e das leis naturais da maravilhosa criação.
Retornava sempre mais alegre para sua aldeia, agradecendo a oportunidade de tanto aprendizado. Depois distribuída a todos, dentro do possível, o que aprendera, com muito amor e simplicidade, aquilo que lhe fora autorizado revelar.
***
Sozinho, o bom Velhinho adotou, como filha, uma criança de poucos meses, que perdera seus pais.
Essa menina crescia forte, sadia e trazia no rosto uma luminosidade fora do comum.
Uma luz que vinha do seu interior e que ninguém sabia explicar.
Ela irradiava felicidade por onde passava!
Por isso fora batizada com o nome de Shao Shao! Quer dizer: alegria!
Shao Shao, como toda criança, era muito inquieta, queria saber de tudo, explicações sobre cada coisa que despertasse sua atenção.
E o Velhinho cumpria bem e fielmente seu papel de pai adotivo!
Além disso, o bom Velhinho, como o mais velho do lugarejo, considerado o mais sábio, fora incumbido de um trabalho que era disputado como muito honroso: acendedor oficial das lanternas vermelhas da rua da sua vila, assim que começasse a escurecer!
Por isso morava também estrategicamente no início da única rua que havia, onde a mesma formava uma meia lua, com canteiros de muitas flores e arbustos exóticos.
A única rua do lugar era ampla, bem larga e fora calçada com as redondas e reluzentes pedras do rio Yang, que brilhavam suavemente nas noites de luar!
Além dessa função o Velhinho era exímio artesão na arte de fundir bronze e produzir verdadeiras obras de arte com o mesmo; sabia também produzir utensílios de cerâmica. Onde e com quem ele aprendera todo esse conhecimento?
Conhecimento que ele transmitiu fielmente ao seu povo que fez dessa arte uma tradição cultural e uma fonte de renda, além da agricultura. Shao Shao seguia admirada e curiosa o trabalho do pai adotivo, que aos poucos ia lhe ensinando o ofício.
Ambos mantinham um convívio muito bom. Um era a alegria e o arrimo do outro.
Aquele pequeno vilarejo era um paraíso!
Flores matizadas, de várias espécies adornavam a beira do rio, as laterais da rua e os canteiros centrais da mesma. Borboletas de mil cores sobrevoavam aqueles jardins maravilhosos! Beija-Flores vinham colher o néctar de certas espécies, fazendo verdadeiros malabarismos no ar!
Todos os dias, ao entardecer, infalivelmente, o Velhinho acendia as lanternas vermelhas penduradas em postes de madeira rija extraída das florestas que sustentavam o sopé da montanha.
Shao Shao crescia feliz, realizada!
Com a arte do bronze e da cerâmica, que ela também passava às crianças, fizeram muitas obras bonitas. Como vasos de flores, castiçais, archotes e muitas outras utilidades domésticas, que facilitavam sua vida.
Todos a admiravam e teciam comentários a respeito da sua bondade, do seu caráter, da sua beleza, da sua inteligência e principalmente pelo seu desprendimento ao próximo.
Quem precisasse de ajuda, lá estava Shao Shao! Tornou-se assim uma pessoa muito querida entre seu povo. Uma pessoa pura. Um canal para a Luz!
***
Foi assim que um belo dia, tendo-se isolado dos demais, coisa que gostava muito de fazer, fora sentar-se sozinha à beira de um remanso do rio, mais adiante da sua aldeia.
Estava assim, absorta em seus pensamentos, olhando distraidamente para a água serena, translúcida, a ponto de ver as pedras no fundo, quando repentinamente teve a sensação de que alguém estava ao seu lado.
De um pulo ela estava de pé! Espantada e admirada ao mesmo tempo!Não via ninguém!
Ela não via, mas junto dela estava um enteal feminino de pequena estatura.
Essa figura irradiava paz e alegria, que Shao Shao sentia, mas não podia explicar!
Era uma fadinha das flores!
Os enteais são seres que vivem em mundos menos densos que a matéria grosseira. São sempre belos e muito alegres. Descrevê-los adequadamente é impossível!
Mas, como servos do Criador, cumprem fielmente sua tarefa, interagindo e vivificando a matéria grosseira. São eles que mantêm a terra viva e aquecida!
Quando os enteais se retiram de um corpo celeste, este morre!
Shao Shao, muito intuitiva, continuava a sentir aquela presença ao seu redor.
E a fadinha das flores começou a voejar ao redor de Shao Shao numa velocidade incrível! Subia, descia e ficava parada no ar em frente da menina, que não a via, mas sorria numa expressão de incontida felicidade!
A jovial menina, por sua vez, começou a correr pela campina, acompanhada pela fadinha, brincando com borboletas de variegadas cores e pássaros de coloridas plumagens e maviosos gorjeios!
Que felicidade, que alegria!
Aquela cena daria um quadro tão maravilhoso que nenhum pintor humano poderia reproduzir com fidelidade!
E com esse entretenimento entre o infantil e aquele ente feminino, passaram-se horas, embora não se comunicassem.
A menina deslumbrada não se dava conta do passar do tempo e o Velhinho preocupado com a demora da sua protegida foi procurá-la.
Ao enveredar pela campina onde as duas estavam, seu coração quase parou! Sua razão não queria aceitar o que via! Fora-lhe dado a graça de ver um pouco além da matéria grosseira, e assim, viu na matéria mediana, a fadinha das flores engraçando-se com a alegria de Shao Shao. Num primeiro momento não entendeu exatamente o que estava acontecendo.
Shao Shao estava brincando com um… com um… enteal!?
Ai!Ai!Ai! Estaria sua visão lhe pregando uma peça? Estaria fora do seu juízo normal? Ou vendo miragens? Mas não! As duas continuavam ali, bem a sua frente!
Num impulso incontido, caiu de joelhos e exclamou:
- Obrigado ó Senhor, meu Criador, por mais uma vez poder ver um dos pequeninos seres da Tua magnífica criação!
Aquela jubilosa exclamação explodira do seu coração como um vendaval!
Seu corpo tremia, invadido por um fervoroso frenesi!
A menina ouviu o grito desfechado do seu peito como uma flecha mensageira!
Ao ver o Velhinho prostrado, com o rosto sobre a relva, saiu em disparada para ajudá-lo, esquecendo-se completamente do que estava fazendo.
Ao erguer seu rosto, viu uma face que estampava enlevo, estupefação, amor, alegria e um largo sorriso de agradecimento, cujos lábios não paravam de repetir:
- Obrigado Senhor! Obrigado Senhor!
***
Já em casa, refeitos do duplo susto, Shao Shao e o Velhinho, que fora ajudado pela menina, entreolhavam-se, com um enorme ponto de interrogação entre ambos.
O que acontecera?!
O Velhinho, que já tivera experimentação semelhante em sua juventude e lembrava-se perfeitamente das profundas e indeléveis marcas que os acontecimentos imprimiram em seu espírito, estranhou o comportamento de Shao Shao. Ela teria que estar vibrando intensamente! Mas ao verificar que ela não tinha visto a fadinha, calou-se.
Mas a nova graça de ver um enteal marcara-o tão profundamente que suas forças pareciam faltar. Aquele carvalho que furacão algum conseguiu derrubar, começou a vergar e sentiu intuitivamente que seu tempo chegara ao fim. Mas ele ainda tinha uma incumbência a cumprir. Esclarecer Shao Shao sobre os enteais.
Foi em busca da sua querida filha adotiva, que saíra da casa enquanto ele mergulhara fundo em seu eu, respeitando os seus sentimentos, encontrando-a a caminhar pensativa à margem do rio.
Sentaram-se sobre um banco feito de pedras à beira do remanso.
Uma brisa deliciosa inebriava o ambiente. E ele começou:
- Filha, tenho algo a lhe dizer!
- Diga meu pai.
- Você sabe quem e o que são os enteais?
- Sei que são servos do Senhor, respondeu ela.
- Sim, são os servos do Criador. Assim, tem uma infinidade de pequeninos e gigantes servos da natureza! Enteais da terra, do ar, do fogo, das águas, enfim, de todos os elementos.
E o bom Velhinho iniciou uma longa dissertação sobre os queridos enteais!
Falou da infinidade e variedade de enteais existentes em todos os degraus da Criação. Inclusive de mundos e elementos ainda desconhecidos dos seres humanos. (*)
Explicou como hoje, infelizmente, os queridos e maravilhosos obreiros da natureza, os alegres e incansáveis enteais, foram relegados à mísera condição de mitos e lendas, para profunda tristeza e desgosto dos espíritos de luz e de toda a entealidade.
E eles tanto admiravam e gostavam dos espíritos humanos!
Vieram à terra para ajudar o ser humano, mas este, na sua imbecil demência, optou pelo enganoso brilho da materialidade!
Que decepção para os enteais. Por isso se afastaram do ser humano, com asco e desprezo por esse mísero e pretensioso homúnculo, que arrogantemente desperdiçou a grande graça do conhecimento dos seres enteais e com eles as leis da natureza!
***
Os dias que se seguiram, foram dias de muita reflexão para ambos, o pai e a filha.
Shao Shao concentrava-se na graça de viver naquele ambiente. Como era maravilhosa a natureza, complexa e simples ao mesmo tempo! Basta um pouco de boa vontade, sinceridade na busca da verdade, para a terra se transformar num paraíso, num mundo cheio de luz, de graças e de bênçãos!
O bom Velhinho andava pensativo e apreensivo, pois sentia que os seus dias na terra estavam chegando ao fim.O que seria de Shao Shao?
Por isso, certo dia reuniu o Conselho que dirigia e organizava a parte material daquele povoado e entre outras providências, no sentido de ampararem Shao Shao, pediu também, que no dia que ele partisse, fosse deixado para Shao Shao o legado de acendedora das lanternas vermelhas.
Todos estranharam esse pedido, mas foi aceito por unanimidade!
As águas frias, consequência do degelo nas nascentes do rio Yang já haviam passado e a primavera dava os seus primeiros sinais.
Os campos pareciam renascer; a relva tenra surgia num verde claro dando leveza às campinas, que amanheciam borrifadas de orvalho, sob uma tênue cortina de neblina.
Os primeiros brotos das árvores frutíferas começavam a rebentar a casca.
As flores! Ah! As flores! Miríades de flores dos mais variados matizes pareciam explodir de dentro da terra, inundando os ares com inebriantes perfumes!
Os campos transformavam-se em colchas multicoloridas!
Cada nascer do dia a passarada iniciava com uma orquestra no fundo da floresta!
Certo dia, ao caminhar pelos jardins, inalando uma brisa perfumada, agradecendo a vida feliz que tinha, sentiu uma presença perto dela, parou e começou a observar. Nada. Continuou. De repente, bem a sua frente, uma rosa cor de púrpura, começou a balançar. Vento não tinha. Quê ou quem seria?
No mesmo instante, teve a graça de ver uma pequenina fada das flores! Aproximadamente quinze centímetros! Algo maravilhoso! Impossível de descrever, tantos eram os detalhes e as cores da roupinha daquela criaturinha!
E os olhos da fadinha! Pareciam dois brilhantes de intensa luz!
Seu jeitinho meigo fascinava!
Mãozinhas tão pequenas que pareciam de boneca!
A fadinha captou os pensamentos da menina e começou a sorrir e a voar ao seu redor.
Logo, várias fadinhas, semelhantes a ela estavam voando e brincando junto de Shao Shao!
E como vieram, desapareceram.
O aprendizado de Shao Shao aumentava, cada vez mais rico em conhecimentos.
E assim passavam-se os dias nesse lugarejo, com muito trabalho, alegria e felicidade!
Até que certa manhã, como previra, o bom Velhinho não mais despertou no mundo de matéria grosseira.
Partira feliz, pois ao ser procurado por Shao Shao que estranhara a sua demora para despertar, uma vez que sempre levantava com o nascer do sol, um suave sorriso cobria seus lábios e felicidade irradiava da sua face serena.
- Partiu como viveu! Foi um digno exemplo para todos, conseguiu balbuciar a menina, no momento que seu corpo baixou à sepultura.
Como fora prometido, a partir daí Shao Shao passou a ser a acendedora das lanternas vermelhas da rua. E ela cumpria fielmente, com muito orgulho a sua obrigação, pelo senso do dever e em homenagem ao seu pai adotivo, que, antes de tudo, fora um grande amigo! Shao Shao tinha então quinze anos.
***
Os anos passaram céleres.
Shao Shao continuava morando na mesma casa, onde crescera junto com seu pai adotivo.
Todas as tardinhas lá ia ela, rua acima, acender as lanternas vermelhas.
Aos vinte e um anos casara-se, enviuvando um ano e meio depois.
O homem que a desposara era bom, mas muito quieto e reservado.
Quase não conversavam, deixando às vezes Shao Shao um pouco nervosa e intrigada. Porque, afinal, casaram? Tinha convicção, por ocasião do casamento, de que era o certo a fazer.
Numa tarde muito ensolarada, sentada num banco de madeira, em baixo de um florido caramanchão, coberto de grandes e perfumadas rosas vermelhas e brancas, à beira do lago azul, onde filhotes de gansos nadavam despreocupadamente, sentiu-se leve e sonolenta e então pareceu-lhe ouvir uma voz que vinha bem lá do fundo do seu íntimo:
- Espanta essa nuvem que se formou sobre sua cabeça, pois poderá dificultar e atrasar sua jornada terrena!
Shao Shao ficou perplexa!
- Nuvem sobre minha cabeça? Afinal, que nuvem é essa?
Então, subitamente, ela compreendeu!
O casamento, sim o casamento! Foi minha dúvida! Como fui tola!
Caiu de joelhos e exclamou:
- Perdão Senhor! Perdoa a ignorância da minha dúvida! Faça-se sempre a Tua sacrossanta vontade, hoje e sempre!
Ali, ajoelhada, ela sentiu intuitivamente, que um dia teria a resposta!
E teve! Foi num entardecer muito gelado…
***
Mais uma vez o inverno sobreveio… e muito frio!
As águas do rio Yang desciam das montanhas e gélidas corriam pelo vale, sob forte nevoeiro, congelando tudo!
As pastagens estavam queimadas pelo frio.
Agricultores, pescadores e camponeses recolheram-se, pois não havia o que fazer no rio, no campo e na lavoura.
Os animais foram recolhidos para estábulos especialmente preparados para a longa estação hibernal.
Previdentes, os seres humanos haviam preparado e embalado cuidadosamente alimentos para si e para os animais.
Muita lenha havia sido estocada para o aquecimento dos lares, durante as longas noites de inverno.
Os pássaros e as flores sumiram!
Mas os seres humanos sabiam que essa paisagem fazia parte do grande conjunto da criação. Jamais reclamavam. Ensinamentos recebidos do bom Velhinho.
À noite, ao redor do fogo, cujo crepitar hipnotizava a todos, as histórias e ensinamentos do Velhinho eram repetidas para calar fundo na alma daqueles homens rudes, simples mas tementes ao seu Senhor e Criador.
Difícil… muito difícil tornara-se o ofício de Shao Shao, de acender as lanternas vermelhas todo entardecer.
Ela tinha um corpo saudável mas muito delgado e sofria para cumprir com a sua obrigação! Mas jamais esboçou sequer um gesto ou um pensamento de revolta ou de impaciência!
Muito pelo contrário! Agradecia a oportunidade de servir!
***
Um certo dia…
Nevou muito no povoado de Shao Shao!
Frio intenso… a neve cobria tudo com uma espessura de aproximadamente vinte centímetros!!
Montanhas, rio, pastagens, casas, tudo estava coberto por um enorme e gigantesco lençol nevado! Neve e mais neve! Por todos os lados!
No entardecer daquele dia, todos já estavam recolhidos, quando Shao Shao saiu de casa, com a tocha acesa, para cumprir com o seu dever…
Com dificuldade conseguira abrir a porta da casa, devido ao acúmulo de neve!
Começava a escurecer… e um vento gélido soprou…
Shao Shao caminhava com dificuldade para poder chegar na primeira lanterna vermelha e acendê-la com a tocha.
Mas outra lufada de vento gelado tonteou-a!
Ela sentiu as forças faltarem… mas ainda, num derradeiro esforço, conseguiu fincar a tocha acesa na neve para que a mesma não viesse a apagar… caiu de joelhos e antes de desmaiar, agradecida implorou por ajuda…
- Senhor! Obrigado por tudo, por esta vida tão plena de experiências maravilhosas! A Ti dou minha vida! Recebe meu espírito no Teu Reino de amor e de paz! Manda ajuda para o meu corpo que tanto me serviu nesta jornada terrena! Obrigado!
Nesse meio tempo os moradores da vila, estranhando a demora para que as lanternas vermelhas fossem acesas, preocuparam-se. Primeiro um, depois outro e mais outro saíram de casa, para ver o que estava acontecendo, pois Shao Shao nunca, em todos esses anos, deixara de cumprir com o seu dever.
Com a conversa lá fora, nesta hora inusitada, mais moradores saíram para a rua e aos poucos quase todo o vilarejo saíra de casa, até que de repente uma voz se ouviu:
- Vejam! Uma luz ao lado da casa de Shao Shao! No chão!
Todos correram para lá, apesar do frio e da neve.
Grande foi o espanto de todos ao toparem com aquela sena: Shao Shao do jeito que ajoelhara caiu no chão, ficando portanto com as pernas e joelhos encolhidos, uma mão sobre o peito e a outra segurando a tocha ainda acesa! O rosto virado para cima com os olhos bem abertos, olhando para o alto, um sorriso encantador nos lábios e a face serena como o lago num dia de calmaria, transmitindo a todos um estado de graça e bem- aventurança.
Foi quando um morador pegou a tocha da mão ainda quente de Shao Shao, acendeu a primeira lanterna vermelha que estava ali do lado.
Um oh! saiu da boca de todos, pois no mesmo instante uma luz começou a surgir no alto, no fim da rua, que foi crescendo, crescendo, até ofuscar totalmente a luz da lanterna vermelha.
E no mesmo ponto apareceu uma porta de luz ainda mais resplandecente, da qual desceu uma escada com degraus dourados até onde estava Shao Shao.
Naquele momento a porta iluminada se abriu e por ela surgiu um ser luminoso, que começou a descer a escada dourada.
À medida que se aproximava do local onde estava Shao Shao rodeada pelo povo estupefato, abriu os braços e falou:
- Vem!
Todos os que ali estavam, caíram de joelhos, com os rostos banhados de lágrimas, alguns soluçando alto, pois, ali diante deles, o jovem e resplandecente espírito de Shao Shao estava deixando o corpo terreno e de braços abertos foi ao encontro do ser luminoso que, ao encontrar-se com ela disse:
- Shao Shao! Este último sofrimento terreno por que passaste foi para desmanchar a pequena nuvem que deixaste pairar sobre ti, pois chegaste a duvidar do por que do seu casamento. Lembra-se? Eram os últimos fios que você e seu esposo tinham que resgatar por isso esse último encontro aqui na terra foi tão curto!
Ela já tinha reconhecido em vida o seu erro e por isso o resgate foi rápido, praticamente simbólico.
O deslumbrante ser luminoso e o espírito de Shao Shao olharam juntos para aquele povo prostrado aos seus pés, em humilde espectativa; acenando deram meia volta e começaram a subir a escadaria que brilhava em tons dourados.
Outros espíritos de luz vieram ao seu encontro!
Estáticos, sem poder balbuciar uma única sílaba o povo da vila de Shao Shao só olhava… olhava e admirava… tanta beleza… tanta luz!
Não tinham condições de entender e avaliar aquele sublime momento! Apenas assistiam, embevecidos!
Tantas coisas admiráveis estavam acontecendo simultaneamente!
O ser luminoso e Shao Shao ao chegarem no alto da escadaria voltaram-se, despediram-se do seu querido povo e desapareceram pela porta dourada!
Nesse instante aquela luz maravilhosa, dourada, desapareceu, ficando apenas a luz da lanterna vermelha iluminando a rua.
Um oh! de consternação, em coro, ecoou naquela noite gelada.
Os moradores da vila estavam todos prostrados ainda. Ninguém parecia sentir frio. Ninguém tinha pressa em sair dali. Cada um procurava seu vizinho mais perto e perguntava: - Você viu!?
Sim, todos tinham visto!
Mas ninguém se atrevia explicar o acontecido. Para eles, era sagrado demais!
E após um longo tempo, um dos mais antigos moradores da vila, levantou as mãos para o alto e, em nome de todos, agradeceu:
- Senhor! Agradecemos do fundo do nosso coração a bendita graça com que fomos presenteados por Ti, esta noite! Obrigado pela graça de poder ver um pouco mais além da matéria grosseira! Grandes são Teus desígnios e admiráveis Tuas obras! A Ti rendemos graças, Senhor, hoje e sempre, pois Teus são os mundos e Teus são o poder e a glória para toda a eternidade! Aceita, Senhor, nosso coração, que somente quer bater por Ti, aceita nossas obras como um ato de amor a Ti e guia nossa vida de acordo com a Tua sacrossanta vontade!
Aos poucos, uma a uma, aquelas pessoas levantaram-se e foram para casa.
Rostos iluminados pela graça obtida, um grande sorriso nos lábios enregelados e um coração palpitante de amor e agradecimentos. Que noite!!!
Jamais sairia do pensamento daquele povo, nem que passassem milênios!
Um ponto de interrogação ficou: quem era aquele ser luminoso que veio buscar Shao Shao?
***
Nos dias que se seguiram, a neve continuou a cair.
As pessoas somente saíam de casa em caso de necessidade ou juntavam-se na Casa Comunitária, no centro da vila, para saborear um gostoso chá quente e relembrar os últimos acontecimentos, que marcaram e mudaram profundamente suas vidas.
No centro, ao alto, dessa Casa Comunitária existia um campanário com três sinos de bronze: um grande, um médio e um pequeno. Quando era necessário reunir a comunidade, nos dias de louvor ao Senhor e nos dias de festa, os sinos eram tocados. Cada toque tinha um significado. Mas quando eram tocados em conjunto irradiavam pelo vale sons tão melodiosos que até os animais paravam para escutar!
Já naquele tempo, os sinos repicavam entre aquelas montanhas, que retribuíam em forma de eco, viajando no dorso do vento, por aquele vale, bordado por uma infinidade de cores dos campos em florescência e de diversos matizes do verde das florestas.
O inverno passou e as lindas manhãs primaveris haviam voltado!
O vilarejo voltou a ter uma vida normal, muito ativa.
O rio Yang voltou a correr lépido pelo vale, cortando as campinas floridas.
O lago azul era agitado em sua superfície pela cascata espumante, novamente! As borboletas e os colibris voltaram a beijar as flores, de muitas cores, que enfeitavam o rio, o lago, a rua e os belos jardins.
As fadinhas das flores volta e meia pousavam no alto do caramanchão e de graciosas cestinhas tiravam algo parecido com um pó, que derramavam sobre as grandes rosas.
Então o ar ficava todo impregnado, fazendo com que os moradores da vila chegassem para inalar profundamente aquele perfume característico, que passaram a chamar de “o perfume de Shao Shao”!
Foi a maneira que os queridos enteais acharam para homenagear a singela alegria de Shao Shao!
Naquele dia, inesquecível, muitas pessoas obtiveram a resposta do grande ponto de interrogação das suas vidas, redimensionando seus ideais, redirecionando seus pontos de vista e os seus sonhos… mas, continuam a sonhar, com a certeza de encontrar a sua distante e florida pátria, em algum lugar, entre as estrelas, na vastidão do Universo, um reino de eterna alegria e muito… muito amor…!
Lá onde os lagos, os rios, as flores e os amores, os perfumes e a música são inigualáveis e os espíritos humanos, eternamente jovens! Na quintessência da eternidade!
(*) Nada existe na Terra que os pequenos enteais não tenham formado antes na matéria grosseira mediana, e ainda muito mais belo, mais aperfeiçoado!
(Abdruschin - "Na Luz da Verdade", 3º volume, dissertação "Na Oficina da Matéria Grosseira dos Enteais")