TEMPO QUE FOGE
(22/03/2011)

Aurora Serena

“Esta vida é uma estranha hospedaria,
De onde se parte quase sempre às tontas,
Pois nunca as nossas malas estão prontas,
E a nossa conta nunca está em dia.”
(Mario Quintana)

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Chegou o dia da tão esperada promoção. Finalmente, ele ocuparia o cargo com que tanto sonhara. Os telefonemas dos amigos, o orgulho de “ter chegado lá”, após tantos sacrifícios… O troféu a exibir para a família, que tantas vezes fora deixada em último plano por conta de sua intensa vida profissional…

É bem verdade que muitos comemoravam sua ascensão na carreira às avessas: alegravam-se porque não precisariam mais compartilhar seu dia a dia com essa personagem. Prepotente, diriam alguns. “Alguém com um ego imenso”, qualificariam outros. De fato, não era dado a ouvir opiniões divergentes das suas. Tão convencido estava de suas elevadas qualidades, que esperava que os demais o seguissem e admirassem.

Impiedoso nas humilhações aos que o desagradassem, esmerava-se em cultivar uma imagem de excelente profissional perante seus chefes. Envaidecia-se de sua grande resistência física e mental, dedicando-se inteiramente ao trabalho, e exigia que seus subordinados o imitassem. Não tolerava os simplesmente diferentes de seu ideal de vida. Afinal, ele era forte, vitorioso e merecia reconhecimento.

E, agora, as escolhas que fizera pareciam ser pública e inequivocamente recompensadas: ele chegara a uma situação de elevado status profissional, invejada por muitos. Quase não cabia em si de tanta vaidade e euforia. Uma semana após receber essa festejada notícia, sobreveio-lhe o resultado de um diagnóstico médico. Câncer. Seu auge profissional foi subitamente interrompido.

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Desde criança, ela fora a melhor aluna da classe. Gostava de aprender. Tinha facilidade em assimilar novos conhecimentos e dedicava-se com disciplina às atividades escolares. Na adolescência, passava as tardes de sábado a resolver os problemas-desafios de Física, vivenciando a satisfação de encontrar as respostas certas. Colegas e professores consideravam-na “genial”.

Com o passar dos anos, acostumara-se a exigir de si própria um elevado nível em seus trabalhos, também motivada pelo desejo do reconhecimento alheio. Ser “uma boa aluna”, “uma estudante brilhante” ou alguém que fazia “um excepcional trabalho" eram conceitos que faziam parte de sua autoimagem, com a qual buscava ser coerente.

Em primeiro lugar, sempre vinham tais obrigações. Relacionamentos, prazeres, sentimentos, intuições… tinham pouco espaço na agenda. Certo dia, entre um relatório e outro, atribulada para cumprir o prazo e apresentar um trabalho próximo da perfeição, ouviu uma pessoa gritando. Sua cachorrinha havia sido atropelada. O que antes era prioridade, perdeu totalmente o sentido. Naquele momento, pensou que deixaria de entregar todos os trabalhos, de cumprir todos os prazos e obrigações, de atender a todas as expectativas, se pudesse voltar no tempo e trazer aquele frágil animalzinho de volta…

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Ele se parecia com um deus grego, na opinião da plateia feminina. Belo, saudável, inteligente, arrancava suspiros por onde passasse, o que lhe permitia se relacionar com as mulheres que desejasse.

Cultivava erudição pela leitura de clássicos da filosofia e da literatura, e adotava uma alimentação rigorosamente saudável. Aliás, esmerava-se em cuidar de si próprio, muito mais do que daqueles que o cercavam.

De porte atlético, praticava diversos esportes radicais na Natureza, destacando-se pela audácia e destreza. Para ele não havia perigo. Acreditava possuir habilidade e inteligência suficientes para enfrentar qualquer adversidade. Em sua obstinação, mergulhou literalmente fundo demais, faltando-lhe o ar vital. De posse da plena força da juventude, pôs fim à sua existência terrena.

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Histórias de cortes, interrupções no curso da existência. Pessoas que acreditavam ter as rédeas de suas vidas nas mãos, surpreendidas por “golpes do destino”. Julgavam ter poder para controlar o tempo, com suas tão estimadas capacidades, e eis que este lhes escapou… Surgiram desfechos que a Senhora Razão não conseguira prever. O que se pode concluir disso?

Abdruschin, em sua obra “Na Luz da Verdade”, ensina:

“Lamentável é ver como o ser humano terreno
se empenha diligentemente para seu retrocesso
e, com isso, para sua queda, na crença errônea
de que com isso caminha para cima.”
(Na Luz da Verdade, Vol. 3, p. 359).

O que buscavam essas três personagens em sua existência? Que valores norteavam seus esforços? Haveria, essencialmente, algum ideal maior, além da autoglorificação? Obter poder, testar capacidades, superar limites, alcançar reconhecimento social… Não seria tudo isso fundamentalmente um exercício de vaidade?

“Não existe palavra que possa designar acertadamente tal presunçosa arrogância em sua ilimitada ignorância. Aprofundai-vos nesse comportamento inacreditável; imaginai o ser humano terreno, como ele, com ares de importância, quer se colocar acima da engrenagem da obra maravilhosa desta Criação de Deus, para ele até agora desconhecida, a fim de dirigi-la, ao invés de ajustar-se nela obedientemente, como uma pequena parte dela… então, não sabereis se deveis rir ou chorar!”
(ABDRUSCHIN, Na Luz da Verdade, Vol. 3, p. 359).

Os seres humanos aqui retratados vivenciaram situações-limites, em que tiveram a oportunidade de reconhecer a legítima verdade: que são ínfimas parcelas da Criação, extremamente limitadas, as quais não podem estabelecer as leis que irão reger seu destino. E que há valores infinitamente superiores aos cálculos do raciocínio, por vezes só reconhecidos em momentos de perda…

O que fizeram essas três personagens, a partir desses fatos? Não se pode dizer com certeza. Sabe-se, sim, que a cada uma foi proporcionada, mais uma vez, a escolha: reconhecer os valores essenciais da existência humana, buscando humildemente integrar-se às Leis da Verdadeira Vida; ou continuar a considerar-se o próprio centro do Universo, perseguindo objetivos egoísticos, como um cego arrogante que, apesar das advertências, caminha obstinadamente em direção ao abismo.