CIRURGIA DE SOMBRA
(31/05/2011)

Caroline Derschner

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Lá vamos nós outra vez, cutucar o senso comum. O “efeito sombra” anda literalmente assombrando toda uma classe de livros de autoajuda que falam da sombra, do lado obscuro e negro do ser humano. Uma espécie de cisne negro da vida real com o qual somos convidados a nos confrontar e reconhecer: um processo que na maioria dos casos não dispensa a dor e o espanto.

No entanto, a dor propriamente dita, não vem só deste feliz encontro, no qual reconhecemos nossos maus hábitos, pensamentos dispensáveis e emoções prejudiciais.  A dor necessária é de sua paulatina separação. Mas algumas correntes das “teorias da sombra” não raro costumam anestesiar o processo de encontro com a sombra com base no conceito de aceitação… Mas o que é essa aceitação?

Vista a primeira impressão de nossas sombras, e passado o primeiro, segundo e terceiro impulso de sair correndo, não há alternativa no caminho do autoaprimoramento que não seja aceitar a existência da sombra. Às vezes a sombra é só nossa mesmo, tem nossa marca, nosso nome e os traços da história de vida e das vidas de cada um. Outras vezes, essa sombra, difusa e abafada, parece pairar também acima de nós, partilhando de outras sombras coletivas – uma chamada inadiável para o reconhecimento das coisas que queremos ou não dar, receber e compartilhar com a coletividade.

E atenção, já não é mais segredo que a mente é um espaço aberto, que quando abandonado e mal vigiado, recebe toda sorte de transeunte sombrio pronto para se instalar sem aviso, que reconheça ali, na arquitetura de nossos espaços mentais algum ponto de conforto disponível.

Mas aceitar a existência da sombra, não significa aceitar a convivência com ela. Aceitar a sombra nada mais é do que verificar se ela está ali. Fazemos isso aos bater na porta desse desconhecido inquilino que ocupa o andar de cima de nossa mente, nos dando ao trabalho de encarar seu rosto, perguntando de onde veio, quando veio e por que se recusa em contribuir com um aluguel útil e necessário à manutenção de nossa vida e de nossa felicidade. Caso ela não seja capaz pagar em espécie, contribuindo conosco, coisa que é quase regra geral entre as sombras, resta-lhe ainda uma última alternativa: contanto que contribua de alguma forma para a manutenção do condomínio, transformando-se em virtude, ela poderá ficar.

A raiva pode ajudar com força e iniciativa limpando o jardim da frente, a desconfiança pode aprender muito com o simpático vigia do prédio e a vaidade pode deixar de espiar pela fresta da porta dos outros e fazer uma boa arrumação na própria casa, deixando tudo bonito e tinindo. Mas, se nem assim a sombra puder pagar, através de sua transformação, o melhor a fazer seria desapropriá-la de uma vez. Quando reconhecida a sombra, cada um procederá da maneira que mais lhe convém, lembrando da diferença entre aceitar a existência e aceitar a convivência com nossa sombra.

Diferente de algumas correntes de pensamento, menos propensas à necessária dor da cirurgia ou da desapropriação das sombras, a sombra não é um amigo interno a quem possamos dar as mãos com tranquilidade, através da aceitação. Principalmente se você souber que ela é um inquilino mal educado que sempre que pode, faz festa e deixa entrar pela janela de seu apartamento uma série de convidados indesejados dos prédios vizinhos, afinal, para ela também vale o ditado “me diga com quem andas que te direi quem és”. Sombras também escolhem suas companhias com base na identificação.

Falo isso porque tem gente que escolhe fazer as pazes com sua sombra, tentando se convencer de sua naturalidade. Mas como sociedade em crise, não é exatamente isso que estivemos fazendo o tempo todo, e que visivelmente não deu muito certo? A corrupção é um dos melhores exemplos para isso: não há como conviver pacificamente com essa sombra sem impedir que ela cresça assustadoramente. Não gostamos das sombras de nossa sociedade. Não gostamos das sombras dos outros, nem das nossas. Aliás, reconhecemos justamente ali uma força contrária a todo um outro lado, que não é sombra mas sim felicidade, tranquilidade, paz e claridade.

Minha gente, nesses tempos em que resolveram tratar da sombra e levá-la ao consultório, verifique muito bem que médico você anda frequentando, pois o meu e o de muita gente já sugeriu, ao invés de um calmante para os nervos assombrados e um acordo de convivência com a sombra, nada mais nada menos do que uma boa cirurgia.