Nem Pessoal, Nem Profissional
(23/10/2006)

Inúmeros livros, cursos e palestras têm abordado o tema “vida pessoal x vida profissional”. Parece haver, na atualidade, uma verdadeira fobia a qual, em realidade, vem complicar ainda mais aquilo que é abordado como “gestão moderna”.

Vou exemplificar contando o que aconteceu comigo. Minha filha mais velha nasceu da terceira gravidez. Antes disso, minha esposa teve dois abortos.

Nunca esqueço. Era um sábado à noite e minha esposa, já com três meses da segunda gravidez começou a passar mal. Liguei para a casa do médico e me informaram que ele estava em uma festa. Nesta época, telefones celulares não eram nem projetos.

Consegui o telefone da casa onde se realizava a festa e localizei-o. Relatei o que se passava com minha esposa e ele, imediatamente, pediu para levá-la ao hospital. Provavelmente ela iria perder o bebê.

Quando lá chegamos, já estava tudo preparado. Corpo de enfermagem, sala cirúrgica, etc. Em menos de vinte minutos, mas que pareceram uma eternidade, ele chegou, realizou os exames e concluiu: iríamos perder o bebê, o que de fato aconteceu.

Mas, afinal, por que estou relatando tal fato?

Porque foi e é, até hoje, um exemplo vivo e uma lição que me acompanha por todos estes anos. O médico saiu de uma festa, de seu lazer, para dar assistência a uma paciente. Ou seja, deixou e privou-se, por algumas horas, de um contato com seus amigos (vida pessoal) para fazer um atendimento emergencial em um hospital (vida profissional).

Este exemplo acontece a todos nós, em todas as horas, sejamos profissionais autônomos, liberais ou colaboradores em empresas públicas ou privadas.

E agora podemos nos perguntar: dá, realmente, para separar vida pessoal da vida profissional? Dá, realmente, não deixar que a vida pessoal interfira na vida profissional?

Mas, afinal de contas, o que é vida pessoal e vida profissional?

Você é único(a)

A nossa individualidade começa quando nascemos. A maior prova disto é que não existem duas impressões digitais iguais. Só isto basta para que sejamos únicos.

Depois, crescemos, vamos “virando gente”, tendo nossas próprias idéias, desenvolvendo nossas crenças e nosso valores. Com isto, vamos “criando nossas responsabilidades” em função dos papéis que vamos assumindo durante a vida profissional (autônomo, servidor, funcionário, executivo) e pessoal (pai/mãe, filho/filha para o lado familiar e amigo/amiga, companheiro/ companheira, para o lado social).

Estes são apenas poucos exemplos daquilo que o viver nos traz. A visão holística do Ser, onde o “eu” é composto de corpo, mente e espírito, nos mostra que estes papéis são assumidos e exercidos por um único Ser, cuja “composição” não pode ser dissociada, como querem alguns, como se fossemos capazes de ter mais de uma vida. E se seguíssemos nesta ordem de idéias poderíamos acrescentar, além das vidas pessoal e profissional, a vida cultural, a vida esportiva, etc.

Mas vamos nos ater apenas às duas do título deste texto.

Quantas vezes já levamos trabalho para fazer em casa, como preparar um relatório ou uma apresentação? E, no trabalho, quantas vezes nossa produtividade foi menor em função de algum problema familiar, como morte ou doença?

Vamos atentar para o fato que todas as experiências vividas no exercício dos diferentes papéis são acumuladas no nosso ser.

Podemos considerar separadamente nossos diferentes papéis, mas no dia-a-dia acabamos exercendo-os todos.

Quantas vezes você foi amigo/amiga, que escutou um problema pessoal de um colega de trabalho enquanto vocês exerciam suas atividades profissionais?

Quantas vezes você lançou mão de seus conhecimentos para ajudar aquele vizinho que queria consertar o telhado da sua casa?

Estamos, sim, exercendo nossos papéis a todo instante, sete dias por semana, trinta dias por mês. E, para mais, isto nos faz pensar que estamos sempre nos modificando, crescendo interiormente e produzindo, em nós mesmos, uma re-engenharia diária.

Ou será que somos hoje a mesma pessoa de 10 anos atrás, seja na nossa “vida pessoal”, seja na nossa “vida profissional”.

No entanto, continuamos o mesmo Ser, composto de corpo, mente e espírito.

O corpo se relaciona com nossos cinco sentidos.

A mente se relaciona com nossas idéias, criatividade, inovação, acúmulo do conhecimento, etc. E aqui se inserem nossa razão e nossa emoção, nossa lógica e nossos sentimentos, etc.

O espírito nos mostra nossa grandeza, nossa fé que nos faz ultrapassar obstáculos para poder chegar onde queiramos, que fazemos parte de um Universo e que aqui estamos para cumprir uma clara missão de vida (embora muitos não se dêem conta disso) e onde nossos valores mais nobres, como honestidade ética, moral, podem ser exercidos.

Viver para trabalhar ou trabalhar para viver?

Particularmente concordo que o mundo corporativo, a partir dos anos 90, sofreu mudanças profundas.

O novo perfil profissional exige novas competências que devem se alinhar às demandas atuais. Por ser mais requisitado em função destas demandas, o profissional acaba dedicando mais tempo ao trabalho (vida profissional) e um tempo menor para si próprio (vida pessoal).

Assim sendo, responda sinceramente: é melhor trabalhar de doze a quatorze horas por dia, viver cansado e estressado ou trabalhar apenas oito horas por dia e viver sempre “com pique”?

“Mergulhar de cabeça no trabalho”, como dizem alguns, ou “vestir 100% a camisa da empresa”, como afirmam outros, durante doze a quatorze horas por dia faz com se pague um preço alto, muito alto, por esta escolha de vida.

Para Richard Sennett, sociólogo americano e autor do livro A corrosão do caráter (Ed. Record), as empresas modernas que valorizam o trabalho em equipe, a flexibilidade, a inovação e o risco em substituição à lealdade à empresa, estabilidade, hierarquia e disciplina, fizeram com que o caráter das pessoas se deteriorasse.

Não apenas o caráter, mas sua identidade em função de um cargo e do poder a ele inerente. Tais pessoas deixaram de ser o Fulano de tal para “ser” o Diretor da empresa X, esquecendo que isto é apenas um papel, um “estar”. E o “estar” é temporário.

Com isto seu corpo adoece, o estresse se instala, a atividade física e o lazer são adiados para um amanhã que nunca chega. Sua vida amorosa deixa de existir e o casamento pode naufragar.

Os filhos? Bem, eles cresceram e o diretor não percebeu. Eles já “viraram gente” e ele nem se deu conta da perda do primeiro dente de leite ou que sua filha teve a menarca é já é mulher.

Amigos? Que amigos? Ele não tem mais tempo para isso.

Final de semana com a família? Nem pensar.

Férias? O que é isto, mesmo?

E o diretor vai ficando cada vez mais só. É um excelente profissional, reconhecido pelo mercado, mas sem vida “pessoal”. Ele é rico, profissionalmente realizado, mas ao mesmo tempo pobre, para não dizer paupérrimo, em relação aos papéis pessoais, tanto familiares, como sociais. E o pior: à medida que o tempo passa isto nunca mais será resgatado.

Mudanças à vista

“Vida pessoal” e “vida profissional” são facetas da vida de todos nós. Tratá-las de modo separado gera desequilíbrio, com consequências imprevisíveis.

Embora muitas corporações ainda têm o conceito de “viver para trabalhar”, não se importando com as consequências, outras já são partidárias do “trabalhar para viver”. Estas últimas já se conscientizaram que, tendo em seus quadros colaboradores mais felizes e “inteiros” (física, mental e espiritualmente equilibrados”), seus desempenhos serão muito melhores e a lucratividade da empresa será muito maior.

Empresas que vivem no passado, “matam as galinhas dos ovos de ouro” (colaboradores) ou ameaçam “degolá-los” caso não consigam acompanhar as mudanças, cumprir prazos ou atingir metas impossíveis. Esquecem-se de que cada um é um Ser único, com suas qualidades, seus defeitos e suas limitações.

As outras, com uma nova visão, já adotaram um novo modelo de visão dos recursos humanos. Muitas têm sido as mudanças, mas, dentre tantas, cito algumas já postas em prática:

De acordo com Maria Núbia Chinchilla, professora de comportamento humano da Universidade de Navarra (Espanha), o tripé empresa-familia-social deve nortear este novo modelo visto que “ao criar programas que estimulem um vínculo saudável, permite que o colaborador tenha tempo e energia para si e seus familiares, diminuindo o absenteísmo e aumentando sua capacidade produtiva”.

Um estuda da Fundação Dom Cabral revelou que a falta de equilíbrio entre vida pessoal e vida profissional é uma das principais fontes de tensão entre os profissionais entrevistados.

Um outro estudo realizado pela London School of Economics revelou que a maioria dos homens coloca o trabalho acima de tudo, embora 45% deles querem dar a mesma atenção à vida pessoal como a dada à vida profissional. Já 60% das mulheres tentam harmonizar sua carreira coma vida pessoal e familiar.

Parece-me que equilíbrio passa a ser a palavra-chave, a senha, para esta harmonização. Mas, como buscá-lo?

Infelizmente não existem receitas prontas. Como cada ser é único, cabe a cada um verificar quais são os seus limites e até onde balancear os aspectos pessoais e profissionais. Mas, veja algumas sugestões que podem lhe ajudar:

Enfim, equilíbrio é a palavra “da hora”.

A este respeito, o consultor Luiz Carlos Cabrera nos diz: “vejo os executivos como malabaristas, tentando equilibrar cinco bolinhas: sua saúde, seu trabalho, sua família, seus amigos e sua alma. Todas elas são de vidro, só a do trabalho é de borracha. Esta pode cair e ser recuperada. As outras, não”.

Nossa vida é única. E buscar o equilíbrio entre “vida pessoal” e “vida profissional” é uma tarefa difícil e que exige esforço e disciplina. Mas cabe a cada um de nós considerar, e escolher, até onde vale a pena beneficiar uma em detrimento da outra.