A máquina do tempo ficou pronta ontem às 16h15. Enquanto investigava o conteúdo da marmita do dia, Gilvan, o idealizador e inventor, ainda pensava no que fazer com ela. Era um nerd meio diferente, tipo boa pinta, nada parecido com um cientista maluco, mesmo porque nenhum estudante de física teórica podia fazer jus ao título enquanto não se formasse. Só depois é que Gilvan poderia, eventualmente, se dedicar à ciência como gostaria. Por ora havia inventado um aparelho que se movia pela 4ª dimensão. Só isso.
Alguma utilidade o dispositivo haveria de ter. Claro, as possibilidades seriam infinitas se fosse uma máquina como nos filmes de ficção científica. Mas esse era um modelo meio tosco, da vida real. Não permitia viagens ao futuro, só ao passado, e assim mesmo por algumas horas apenas, e no máximo uns 30 dias para trás no calendário. Nada de carros voadores e teletransporte de gente careca com macacão prateado, nem tampouco papos-cabeça com Gêngis Khan ou embates com um estegossauro. Menos, muito menos.
“Eu poderia voltar uma semana atrás com o resultado da loteria de hoje e… Não, não seria ético. Não dá.” A sobremesa já fora degustada, ou melhor, deglutida, e nenhuma idéia plausível surgira. “Por outro lado, não deixaria de ser uma experiência científica, com o prêmio pelo pioneirismo já embutido. É, parece justo.” Ponderação feita, decisão tomada, ação cumprida.
Gilvan acomodou-se como pôde no assento adaptado de Fusca, um pouco descosturado na lateral. Acionou os controles para sete dias e pressionou o botão vermelho descascado. Zóóóóiiimmmm. Lá se foi ele chacolejando, mas sem sair da garagem, como bem o sabem os entendidos em viagens no tempo.
Chegou na data prevista (não “lugar previsto”), com uma senhora dor no cóccix. Também lhe doíam as escápulas, o úmero, o perônio e outros tantos. Parecia que dera um passeio numa batedeira de bolo. Saiu de casa como pôde, foi até a loja lotérica no fim da rua, entrou, piscou pra moça do caixa, recebeu o sorriso devido, jogou os números certos e voltou para sua época. Tudo muito rápido, tempo era literalmente dinheiro nesse caso. E também não podia ficar muito tempo fora do tempo, senão… puf! Desintegração dele e da máquina. A aviação também havia sido uma aventura bem perigosa no começo do século XX. As coisas se repetiam, já dizia sua avó. Ele também iria aperfeiçoar seu invento assim que tivesse um tempinho. Tudo a seu tempo.
Tão logo chegou na época atual, corpo moído, dirigiu-se ao banco para receber o prêmio pela sua invenção claudicante. O gerente, normalmente carrancudo como costumam ser os gerentes, mostrou-se desta feita muitíssimo cordial. Cumprimentos efusivos. Muitos cumprimentos.
Parabéns, Gil! Isso é que é sorte, hem? Bonitão e cheio da nota! Estás bem na fita!
Sorriso largo, foi consultar o registro do jogo. Surpresa. Nada feito. Não havia nenhum registro dos números jogados, embora o comprovante apresentado parecesse verdadeiro. Os dados no computador não deixavam dúvidas. O prêmio continuava acumulado. Falsificação muito bem feita, sem dúvida…
Sr. Gilvan, falsidade ideológica é crime previsto no artigo 299 do Código Penal, com pena de um a cinco anos de reclusão. Tom professoral, de quem sabia o que estava falando, cordialidade zero agora.
Ah, é?… Puxa, não se pode confiar mais em ninguém hoje em dia, não é mesmo? A gente joga e o os números não são nem registrados. Que coisa! Bom, vou indo, até.
Até. Voz seca, cavernosa.
O trecho do banco até o portão de casa foi vencido numa velocidade próxima a da luz, a despeito das dores no corpo que, coisa curiosa, nem lhe incomodaram tanto durante o trajeto. Interessante o que a mente é capaz de fazer.
A hora do almoço parecia a melhor para se clarear as idéias. Gilvan comia devagar agora, sentado no chão da garagem, uma olhada na máquina e outra no lixo da reciclagem, encimado por um pequeno, amassado e inútil comprovante de jogo. O que será que tinha dado errado?
Até que gostava daquela comida de marmita, cozinha caseira da pensão em frente. Ele mesmo ia buscar. Melhor do que a gororoba que um outro colega fazia questão de preparar quando a república ainda abrigava outros habitantes. Já ia quase um ano que morava sozinho ali. Ninguém agüentava muito tempo os ruídos e clarões vindos da garagem, transformada em laboratório já há tempos, sem trocadilho. Sozinho no mundo naquela república de estudantes, Gilvan tinha que se virar com marmita mesmo. Quando namorava a Claudinha ainda podia se esbaldar de vez em quando com a especialidade dela, lasanha de massa verde…
A Claudinha!… Sentia falta dela. Quase um mês separados já. Por que haviam terminado desta vez? Ah, sim, ela tinha algum espião na churrascada do fim de ano, sobre a qual ele tinha garantido, com todas as letras, que não ia de jeito nenhum. Mas foi, e acabou sendo enlaçado comprometedoramente no final pela Márcia, que só o libertou depois do beijo exigido. Longo beijo. Coisa de criança que não sabe beber. Nada sério, mas a Claudinha soubera e não perdoara. Fim do namoro pra sempre, como sempre. Rei morto, rei posto. A fila andou e o próximo, claro, foi o Paulo, que fez por merecer a oportunidade. Começaram a namorar no mesmo dia.
Verdade seja dita, Gilvan não havia mentido. Quando explicou para a Claudinha que não ia na churrascada porque precisava resolver uma questão de paradoxo temporal com parâmetro randômico, estava falando sério. Mas o pessoal insistiu, insistiu, e ele capitulou. E deu no que deu.
“Queria voltar com a Claudinha… Claro, tem a lasanha também, mas isso é o de menos. Já brigamos e voltamos tantas vezes… Ué, e porque não? É só eu me encontrar com ela um dia antes do churrasco e convidá-la… Simples assim!” Resolução tomada, ação cumprida. Gilvan dissecou o último osso do frango a passarinho, acomodou desta vez a sobremesa – uma espécie de gelatina verde-amarronzada – na geladeira e embarcou na máquina. “Preciso lembrar de instalar um cinto de segurança aqui.” Zóóóóiiimmmm.
A primeira providência ao atemporrissar foi tomar um analgésico, daqueles de cápsula, bem fortes. Descansou meia hora, para fazer efeito. A segunda providência foi ligar para a Claudinha e marcar uma conversa na casa dela. Seis minutos de moto. Chegaria num instante. Quando rumava para lá começou a cair uma chuva fina. “Tudo bem, é só pilotar com cuidado.” Duas quadras antes do destino viu o sinal fechar ao longe e diminuiu a velocidade. Com os carros já parados, foi seguindo com cuidado por aquele corredor improvisado para motos que se forma automaticamente nessa situação, tão temida pelos retrovisores. A moto que estava à sua frente não ia tão devagar e por isso não conseguiu frear quando um vulto cruzou sua frente. A roda traseira travou e escorregou na pista molhada, o choque foi inevitável. Gilvan conseguiu evitar a batida na moto acidentada, pois vinha bem devagar, mas ficou completamente sem ação ao ver o colega motociclista manobrar rapidamente e sair em disparada, atravessando o cruzamento com o sinal vermelho. À sua frente jazia agora um senhora idosa, deitada de bruços em meio a sacolas e produtos de supermercado.
A senhora foi quase içada até a calçada por inúmeras mãos solícitas, surgidas poucos segundos depois do acidente. Parecia um pouco tonta, mas além de alguma manchas arroxeadas não apresentava sinais de maior gravidade. Gilvan estava a seu lado, a moto estacionada na calçada. As buzinas ignorantes já tinham cessado lá atrás, o sinal abrira, e a vida seguia normalmente naquele passado não tão longínquo.
A senhora está bem? Quer que eu chame um médico?
A culpa foi minha. Atravessei fora da faixa. Estava ansiosa pra chegar em casa, é ali na esquina, disse ela apontando com o dedo.
Vou chamar um médico.
Não precisa, meu filho. Estou bem.
Levo suas compras, faço questão.
Obrigada.
Compras entregues, Gilvan ainda aceitou o café com biscoitinhos de polvilho. Mais um oferecimento de médico, mais uma recusa e ele se prepara para ir embora.
Obrigada mais uma vez. Diga, o que você faz da vida?
Sou estudante de física, pretendo trabalhar como pesquisador, cientista.
Que interessante! Falta muito tempo pra você se formar?
Não, estou no último ano.
E pra que serve essa sua física?
Pra muitas coisas, cortou Gilvan já impaciente.
Serve para ajudar as pessoas?
Certamente sim, se aplicada para fins nobres, por gente bem intencionada… Senhora, preciso ir. Um ótimo dia!
Você nem me disse seu nome.
Gilvan.
O meu é Marietta, com dois tês.
Ah, tá. Tudo de bom então.
Você mora por aqui?
Na república dos estudantes, lá pra cima. Até logo.
Ah, sim, sei onde fica. Até logo. Foi um prazer, viu? Obrigada mais uma vez.
Gilvan correu para onde estava a moto. Montou e consultou o relógio. “Minha nossa! Mais de duas horas nessa brincadeira!” Ligou para o celular da Claudinha. Fora de área. Ligou para a casa dela. Atendeu a mãe.
Ah, você. A Maria Claudia cansou de esperar e saiu com as amigas.
Tive um contratempo, sabe? Pode acreditar. A senhora poderia dizer a ela que liguei?
Digo.
Foi a simpática progenitora desligar e o vibracall entrou em ação.
E aí, Gilvan? Resolveu a parada do churrasco?
Vamos ver, Paulo. Ainda não. Meu tempo está curto. Você não imagina quanto.
Não havia tempo para mais nada. As pernas começavam a formigar. Os dedos das mãos pareciam já meio translúcidos. Sentia uma tontura. Tinha que voltar imediatamente. Voou para a garagem e mergulhou no cockpit, sem se importar com o cheiro de queimado e a fumaça meio cinza que começava a sair do transversor intertemporal, fixado atrás do banco. A máquina tremia, sacudia, balançava nas três dimensões, pulava mais que um cabrito. Pulou tanto que acabou pegando no tranco e ele pôde, enfim, retornar no último momento. Ainda teve tempo de passar na pensão e pegar a marmita do dia. O cóccix guinchava a cada passo. “Mais uma viagem dessas e vou direto pro hospital.”
Claudinha parecia ser um caso sem esperança. Valeria a pena tentar mais uma vez? Se o seu invento era um sucesso de física aplicada, sua utilidade prática se revelara nula. Desastre total. Não conseguia melhorar em nada sua vida com essas idas ao passado e retornos com hora marcada.
Ainda tentava entender o funcionamento desse estranho mecanismo do universo quando a campainha tocou.
Sr. Gilvan?
Sim.
Sou advogado da família da Sra. Marietta, que morava sozinha cinco quadras abaixo. O senhor a conhecia, não?
Ah, sim, D. Marietta… com dois tês.
Isso. Não vimos o senhor na missa de sétimo dia, daí minha pergunta.
É, tive um contratempo… (Estudante tem que ter jogo de cintura.)
D. Marietta refez o testamento logo depois de um acidente que sofreu perto da casa dela. Não sabemos se isso teve alguma influência, mas parece que estava adivinhando. Dois dias depois… infarto agudo.
É, fulminante… (Muito jogo de cintura.)
Sim. Este cheque é seu e aqui está uma cópia do testamento, com firma reconhecida. Ela diz aqui que o senhor saberia utilizar o recurso para ajudar outras pessoas. Assine por favor. Perfeito, tenha um bom dia.
Até.
Dobradinha à moda da casa. Foi o que Gilvan encontrou na marmita de hoje. Novamente comeu devagar, sentado na garagem, uma olhada na máquina, outra no cheque. Sim, poderia auxiliar muita gente com uma máquina mais aperfeiçoada. Avisar sobre a possibilidade de acidentes, por exemplo. E se conseguisse fazê-la deslocar-se até no futuro, poderia ver o resultado de resoluções tomadas no presente. Sempre no sentido de ajudar as pessoas. Sim, as finalidades se ampliariam muito com um novo aparelho. Talvez, no futuro, contasse pra Claudinha qual era sua nova ocupação atual. Uma espécie de auxilador temporal ou algo semelhante. Quem sabe ela até voltasse pra ele.
Bem, por ora, enquanto ainda não desenvolvia o projeto de um novo modelo, com múltiplas finalidades, poderia tentar ajudar algumas pessoas com este mesmo. Assim já iria treinando. Poderia, por exemplo, conhecer melhor a D. Marietta, ouvi-la com atenção. Saber dos anseios delas, dos problemas. E também falar dos seus. Talvez ela se interessasse pelos seus projetos. E mesmo que não se interessasse, estaria construindo uma amizade verdadeira, não limitada ao espaço e ao tempo.
Gilvan foi buscar umas almofadas para a nova viagem. O futuro modelo teria amortecedores com molas helicoidais, cinto de segurança de couro com ajuste milimétrico e apoio para a cabeça. Mas este aqui precisava pelo menos de uns air bags.