Dizem que as lembranças da infância ficam para sempre, e parece que é assim mesmo. A idade chega, a memória falha, os esquecimentos se superpõem, mas aquelas vivências da primeira década de vida resistem incólumes, indeléveis e nítidas, quase impassíveis, como que preservadas numa redoma protetora, que logo se abre ao mais leve comando de um vetusto neurônio qualquer.
A primeira lembrança que mantenho preservada dessa época não é das mais belas. Tinha eu uns quatro ou cinco anos quando fui pela primeira vez de carro com meu pai para a região central da cidade de São Paulo, na década de 60. Lembro muito bem de ter ficado impressionado com a quantidade de prédios, de carros, de ônibus soltando fumaça, e de gente, muita gente andando apressada de um lado para o outro.
Uma coisa me chamou especialmente a atenção naquele dia: o rosto das pessoas. Nenhum sorriso, nenhuma alegria, sequer um vestígio da mais ínfima felicidade. Caras amarradas, mal-humoradas, apoiadas em troncos encurvados, sustentados por pernas ágeis. Expressões carrancudas levadas daqui para ali em passadas rápidas, ou desfilando estáticas nas janelinhas embaçadas dos ônibus fedorentos, já lotados naquela época. Os ônibus também eram incrivelmente feios, cheios de rebites na lataria.
Isso era ser adulto?… Não se via uma única exceção. Todos, absolutamente todos, com a mesma expressão dura no rosto. Olhei para o meu pai. Sempre cuidadoso ao dirigir, mantinha as mãos firmes no volante do Fusca 63. Expressão séria, nada de alegria também. Parecia indiferente àquilo que me incomodava tanto. Pela primeira vez na vida fui apresentado a um sentimento poderoso, desconhecido de mim até então, e que, logo aprenderia, costumava emoldurar a realidade da vida quando a gente menos esperava: tristeza.
Fecha-se a redoma protetora e abre-se outra, um pouco mais recente. Vejo-me com meu pai novamente, desta vez me levando no mesmo carro para o lugar que eu mais gostava, o clube de campo. Chamava-se “Acampamento dos Engenheiros” e ficava às margens da Represa Billings, de águas cristalinas na época. Lá eu via, sim, adultos sorrindo, até gargalhando, mas não me parecia uma coisa, assim, deles mesmo. Era como se fosse algo emprestado. Ou estavam jogando bola, ou pulando na piscina, ou concentrados no campo de bocha, ou então fazendo churrasco. Não sorriam nem riam se não estivessem fazendo uma dessas coisas. As risadas mais ruidosas vinham dos que tomavam cerveja e caipirinha.
Não, aquelas pessoas também não eram felizes como eu. Seus filhos pequenos, meus coleguinhas, ah, esses eram! Tinha certeza. Era só ver o jeito deles. Por que será que não existiam adultos felizes? Será que a felicidade ia diminuindo quando a gente ia crescendo? Quem tinha inventado essa regra?… Fecha-se a segunda redoma.
Observo meu filho adolescente agora. Quando foi que se apagou aquele brilho nos olhos? Aquele sorriso onipresente? Aquela vivacidade estonteante? Deu lugar a um moço sério, de olhar compenetrado, um menino de ouro, sim, mas… cadê a felicidade que estava aqui? O gato comeu?
Vejo-o rindo com os colegas de escola, alegre mesmo, muitas risadas quando estão em casa fingindo fazer um trabalho da escola, brincadeiras físicas e virtuais, mas… de felicidade mesmo, nem sinal. Evaporou-se, desintegrou-se. Meu filho está ficando adulto e a lei da vida é implacável. Mas que lei será essa?
Há pouco mais de uma década ele me perguntou, neste mesmo quarto, se o papai do céu tinha mesmo feito tudo o que existe.
Fez, disse eu simplesmente, com um sorriso franco.
Até Júpiter?
Até Júpiter.
Puxa.
Essa simples descoberta fora motivo de alegria para ele. À noite, antes de dormir, certamente falou com Ele sobre sua admiração por um planeta assim tão bem feito, gigante.
Quando eu era criança também tinha longas conversas com Ele. Falava abertamente, em total confiança, sobre todos os assuntos importantes: a prova de ditado depois de amanhã, o brinquedo do Luisinho que eu queria um igual, o aumento de salário que o papai disse que precisava e que chamava de “ordenado”, o vestido amarelo que a mamãe ficava olhando na vitrine da loja da Lurdinha. Explicava a situação com calma, pedia, e Ele atendia. Quer dizer, quase sempre atendia. Às vezes não, mas era porque, sendo Pai de todos nós, sabia muito bem o que era melhor para os seus filhos e a gente ia entender quando crescesse.
Olho novamente para meu filho adolescente. Está atualizando seu blog. Sucesso total com a turma. Pode-se ver sua expressão de satisfação, pode-se admirar seu contentamento… E só.
Gentilmente no início e algo mais contundente no fim, convenço-o a desligar o computador. Vamos dar um passeio num parque ecológico. Quero desligá-lo um pouco desse ciber-mundo, entidade insensível que os arranca da nossa convivência muito antes do mundo real, o sequestrador de direito. Quero apresentá-lo à natureza, quero que veja como ela é, ao vivo. Quero que aprenda a admirar as plantas, os passarinhos, bichos de toda espécie.
Já no parque ele andava quase se arrastando, com cara de pouquíssimos amigos. Vinha um pouco atrás de mim, para não pagar mico. Adolescente que se preza nunca gosta de fazer o que o pai pede, muito menos o que ele manda. Lembrei-me da máxima de botequim: “Se hay gobierno, soy contra!” Adolescentes já nasciam com esse ideal. Mas, aos poucos, sua expressão foi se desanuviando e um sorriso tímido se desenhou naquele rosto cheio de espinhas, que agora já deslizava um pouco à minha frente. Passado mais um pouco e o sorriso deu lugar a um riso aberto, a expor um reluzente aparelho de dentes.
Pai, olha só esses bichos correndo! Parece que estão felizes da vida, e nem sabem por que estão aqui ou como surgiram neste mundo. Que legal!
Pois é, veja só. Felizes mesmo, e sem Internet nem jogos on-line.
É.
A cabeça dele anuía, o que não significava que tivesse concordado. Mas seus olhos ondulavam alegres, fixados numa borboleta azul, perseguida em vão por um serelepe.
Não sabem por que estão aqui e nem como surgiram, como você disse. E, no entanto, estão felizes da vida, continuei. Quanto mais não deveríamos estar nós também, você não acha? Nós, que temos a possibilidade de encontrar essas respostas, pois…
Percebi que ele não me ouvia; “não estava nem aí” para ser mais claro. Mas não se tratava de descaso ou tédio. Estava agora por demais absorto em contemplar mamãe pata no lago, com sua fileira de patinhos, como um pequeno sistema solar aquático. Cada vez que ele se movimentava para acompanhar o séquito encantador, o aparelho de dentes refletia um raio de Sol, o qual começava a se esconder por detrás das copas mais altas.
O que eu sentia ao observar essa cena não era exatamente contentamento, satisfação. Era mais do que isso. Um sentimento intenso, especial. Algo que eu experimentara quando criança, que ficou registrado também em outras redomas, numerosas inclusive, e que foi misteriosamente rareando com o tempo.
Nuvens brancas e cinzas desenhavam no céu o que a imaginação desejasse. A natureza e suas criaturas agradeciam a seu modo, com sua vivacidade natural, o dom da vida. Inconscientemente externavam gratidão, difundindo alegria à sua volta. Em troca, recebiam felicidade.