A crítica a toda forma de ortodoxia, posta por Giordano Bruno, nos conduz à esfera religiosa. De acordo com Miguel Angel Granada (1984) (10), há em Bruno uma tentativa de reforma religiosa.
Embora a tradição católica tenha sido abalada pela reforma de Lutero, a estrutura da religião institucionalizada permaneceu intocável, em virtude da sua ligação com as estruturas de poder. Mesmo não possuindo uma rígida hierarquia como a Católica, a religião luterana submetia a vontade da maioria ao poder político dos príncipes alemães.
Ainda que tenha a religião como ponto de partida e como alvo principal a luxúria e os vícios predominantes na Igreja Católica, o movimento reformista envolve as massas camponesas, despertando os sonhos e as esperanças do mais simples.
A Reforma é o ponto de encontro de homens singulares como Lutero, Calvino e Munzer com o movimento das massas. (11)
Esse encontro se dá em 1517, quando da publicação das 95 Teses de Lutero; um encontro que teve um desfecho dramático com a Revolta dos Camponeses Alemães (1524-1525); um drama que se resolveria com o esmagamento da revolta.
Lutero pretendia reformar uma instituição religiosa e acabou lançando as bases de uma reforma social, embora não fosse esse o seu propósito. À autoridade do Papa colocou o livre exame e fez da Bíblia a única regra de fé e a “Palavra” de Deus.
Se a Bíblia é a única fonte da verdade, todas as outras religiões estavam fora da “Palavra de Deus”. Se assim é, qual o lugar dos livros sagrados de outros povos, tão antigos quanto a Bíblia? (12)
Reconhecemos a importância da reforma religiosa empreendida por Lutero. Ao pregar a livre interpretação da Bíblia, inicia um processo de crítica à ortodoxia católica. Porém, ao limitar a liberdade de expressão à Igreja Cristã Reformada, dá início a uma nova ortodoxia.
Afirma Lutero: “… a alma pode prescindir de todas as coisas, menos da palavra de Deus e fora da palavra de Deus nada mais pode auxiliá-la.” (13)
E ainda: “E Cristo não veio com outra missão a não ser pregar a palavra de Deus.” Mas o que é a “Palavra” de Deus? (14)
Segundo Lutero, “ela não é outra coisa senão a pregação feita por Cristo tal como está contida no Evangelho.” (15)
No Corpus Hermeticum, encontramos: “ (…) o demiurgo criou inteiramente este mundo, não com as mãos, mas pela palavra…” “Ora, a atividade de Deus, é a sua vontade e sua essência, é de querer a existência das coisas.” (16)
Entre a concepção de Lutero e a contida no Corpus Hermeticum sobre a Palavra de Deus, há uma diferença significativa, sobretudo nos dias atuais, quando sabemos que não existem apenas quatro evangelhos e que no decorrer dos séculos estes evangelhos podem ter sido alterados pelos copistas medievais. Entre os textos que surgiram além dos Evangelhos Canônicos, lembramos os Manuscritos do Mar Morto (Evangelho dos Essênios) e fragmentos do Evangelho de Tomé, encontrado em Nag-Hammadi, no Egito. Lembramos ainda, que a partir do Corpus Hermeticum, podemos relacionar a Palavra de Deus com a Criação e a Vontade Divina. Reforçamos a idéia de Lutero apenas no que se refere à missão de Jesus, que era anunciar a Palavra de Deus, ou seja, a Sua Vontade.
É a partir de Münzer que discutiremos a fé, também proposta por Lutero. No primeiro, dá-se o encontro entre religião e vida social; entre imanência e transcendência, como ele mesmo pregava: “Eu prego uma fé cristã que não está de acordo com a de Lutero, mas que é a mesma e única fé que se encontra cá em baixo, no coração de todos os Eleitos.” (17)
Em Lutero encontramos: “A fé é feita de tal modo que quem crê num outro crê justamente porque considera o outro justo e verdadeiro. Nisto consiste a maior honra que uma pessoa pode prestar a outra.” E ainda: “ Essa é a liberdade cristã: é unicamente a fé, é ela que faz, não que nos tornemos ociosos ou maus, mas que não necessitemos de obra alguma para obtermos a justiça e a bem-aventurança.” (18)
A fé é um elo entre duas pessoas ou entre o ser humano e o Criador? O que dizer das palavras de Paulo, o Apóstolo: “A fé sem obras é morta”?
Além destes questionamentos, devemos considerar que a fé difere de reconhecimento. A fé pode nos levar a louvações e cultos exteriores. O reconhecimento, porém, leva-nos à compreensão das Leis Universais e a uma mudança radical: agir conforme as Leis da Criação. Aqui, faremos uma diferenciação entre Lei e Tradição Religiosa, que identificamos com a ortodoxia.
Segundo Lutero, “… a maior desonra que se pode fazer a Deus é não crer Nele…” (19) Pode, pois, a alma humana atingir ou desonrar Aquele que é o Amor, a Perfeição e a Origem de todas as coisas? Com essa afirmação, Lutero demonstra que não se libertou da idéia de um Ser Criador, que pode ser “medido” ou “compreendido” a partir das categorias humanas.
De acordo com a Mensagem do Graal - Na Luz da Verdade, “A venda cai e a crença se torna convicção. Somente na convicção residem libertação e salvação!” (20)
Considerando essa afirmação, podemos dizer que a fé como um valor em si mesma é um momento anterior à convicção; a fé pressupõe a existência de algo, a convicção atesta e dá um testemunho. A fé pressupõe a existência do Criador; a convicção dá-lhe certeza. A fé necessita dos Templos e da Tradição; a convicção é um valor do espírito, reside na alma; está ligada à intuição, que nos faz “ouvir a voz da natureza”.
A convicção está além da fé, porque esta, ainda que necessária, pode estar envolta no véu da cegueira e do fanatismo. Com o verdadeiro reconhecimento do Nosso Criador, - que reside na total integração dos seres humanos às suas Leis -, teremos arrancado a venda que nos tolhe a visão e nos impede de contemplar a Verdade. Aí reside a nossa libertação e salvação: na convicção e no reconhecimento das Leis Divinas que atuam em todo o Universo.
Reafirmamos, portanto, que o espírito humano, ao mensurar, moldar ou imaginar o Criador a partir das categorias do raciocínio, mais longe se encontrará Dele. Ele não pode ser medido, manuseado ou manipulado. Um ser concebido pela limitada razão humana é um ser criado e não o Ser Criador; é humano e não Onipotente e Supremo. O Criador não pode ser reduzido a uma imagem, símbolo ou metáfora. Ele É! E Isso devia nos bastar.
Como estabelecer uma conexão entre esse discurso e a filosofia de Bruno?
Compreendemos que o Altíssimo não pode ser medido pelas verdades relativas que elegemos. Ele não é algo que possamos imaginar, mas um Ser Infinitamente Superior a qualquer medida. Não pode estar confinado em um templo ou ordem religiosa. Revela-se aos homens, através da imutabilidade das suas Leis.
A luta de Giordano Bruno contra toda forma de ortodoxia inclui não só a crítica à Igreja Católica mas também à Igreja Calvinista, herdeira da reforma luterana, que também restringe a liberdade de pensamento às imposições da religião.
Mesmo no período da Renascença, a Igreja insistia em reafirmar os seus dogmas e a sua organização hierárquica, tendo o Papa como “representante de Deus na Terra”. Esta posição ligava-se à visão de mundo fundada no Geocentrismo, indo de encontro ao progresso das ciências e à Teoria Heliocêntrica. Ao procurar reafirmar a sua organização hierárquica, a Igreja colocava-se contra a liberdade de expressão, contra a Reforma Protestante, contra o livre exame das escrituras e contra o questionamento da visão hierárquica do mundo. Buscando evitar tais mudanças, a Igreja reorganizou os Tribunais da Inquisição.
Apesar de todas as mudanças ocorridas na Modernidade, a religião institucionalizada era ainda um limite. Ambas, católica ou reformada, continuaram apegadas à concepção de um Ser Criador medido por categorias humanas. Entretanto, as teorias consideradas heréticas e condenadas como pagãs identificavam-No como Mente Vivente Infinita e Universal, Incognoscível e Indefinível por si mesmo (21), Pai de Todos os seres, Vida e Luz (22), Sem Limites e Infinito. (23)
Atento a todas as teorias que estavam além da ortodoxia religiosa e acadêmica, Bruno fundamenta a sua filosofia. Além de uma disposição interna, identificada por ele como “amor heróico” pela Verdade, várias razões históricas o conduzem a este caminho. Uma delas é o Renascimento.
Neste período, algumas correntes filosóficas buscavam inspiração na mais remota Antigüidade, objetivando um retorno à idade de ouro da magia. Entre as obras inspiradoras desse retorno, encontrava-se o Corpus Hermeticum, que os renascentistas acreditavam tratar-se de uma herança direta de Hermes Trismegistus. Depois descobriu-se que ele havia sido escrito entre os séculos II e III da era cristã (24), o que não impediu que os modernos o considerassem um escrito sagrado da Antigüidade.(25)
Apesar do ressurgimento dos Tribunais do Santo Ofício, a linguagem utilizada por Bruno está repleta de significações herméticas - mentalismo, transmutação e pluralidade dos mundos, que podem ser identificadas em suas obras, se tomarmos como parâmetro os sete princípios herméticos: Princípio do Mentalismo, da Correspondência, da Vibração, da Polaridade, do Ritmo, da Causa e do Efeito, e do Gênero (26). A partir desse estudo, a única conclusão que nos chega é que a luta contra a ortodoxia concretiza-se na superação da religião institucionalizada.
Outro momento de reflexão sobre a Filosofia de Giordano Bruno liga-se à influência da Cabala Judaica, já indicada por YATES (1964). Partimos das categorias infinito, ilimitado e plenitude.
Que argumentos históricos justificam a influência da cabala judaica no pensamento bruniano?
Encontramos a resposta em Agnes Heller. O Renascimento não foi apenas um produto da Antigüidade Clássica; nele encontramos as raízes da tradição judaica: “O pensamento e a sensibilidade dos homens representativos do Renascimento estavam enraizados de forma pelo menos tão firme na tradição judeo-cristã como na visão recém descoberta do mundo grego e latino.” (27)
O ponto de partida para Bruno é a busca da Verdade, que como um fim em si mesma e por estar acima das considerações humanas, não pode conviver com a ortodoxia. Para alcançá-la, tornava-se necessário questionar as rígidas estruturas da hierarquia religiosa e ultrapassar os seus limites.
Em YATES (1964), encontramos “três vias” que podem conduzir o pensamento humano para longe da ortodoxia: o hermetismo, a mnemônica e o lulismo (influência de Raimundo Lúlio) (28). A via hermética, apoiada no mentalismo, nos remete à compreensão de uma religião sem dogmas, ritos ou cultos oficiais:
“Eis como essa religião do mundo, subjacente em grande parte ao pensamento grego, especialmente no platonismo e no estoicismo, torna-se no hermetismo, realmente uma religião sem culto, nem templos, nem liturgia, seguida apenas mentalmente, uma filosofia religiosa ou uma religião filosófica que contém uma gnose.” (29)
O Renascimento traz também uma reflexão sobre o Ser Criador e o homem. Para Bruno, O Ser Supremo não está fora do mundo; está presente no mundo e ao mesmo tempo acima dele. Aqui reside o “problema” de Bruno: de acordo com a Tradição Hermética, o Criador não possui qualidades humanas; é uma “Mente Vivente e Infinita”, que a tudo preside. “Aquele que excede todos os nomes e todos os termos”. Ou ainda: “Aquele que é a Verdade Fundamental, a Realidade Substancial”, por isso não pode ser definido, mas o sábio chama-o Todo (30). Este pensamento ultrapassa os limites da religião institucionalizada. Um Ser Infinitamente Supremo, que não pode ser explicado pelo intelecto, muito menos medido pelas categorias do pensamento humanas.
Encontramos em Nicolau de Cusa a mesma posição:
“É pois necessário que o intelecto se torne ignorante e se coloque na sombra, se te quiser ver. Mas o que é, Deus meu, o intelecto e a ignorância, senão a douta ignorância? Por isso, não pode aproximar-te de ti, ó Deus, que és a infinidade, senão aquele cujo intelecto está na ignorância, ou seja, aquele que sabe que te ignora. Enquanto concebo um criador que cria, estou ainda para cá do muro do Paraíso. Do mesmo modo, enquanto concebo um criador criável, ainda não terei entrado, mas estou no muro. Quando, no entanto, te vejo como a infinidade absoluta à qual não convém nem o nome de Criador que cria nem o de criador criável, começo então a ver-te mais claramente e entrar no Jardim das Delícias, porque nunca és nada de semelhante ao que pode ser dito ou concebido, mas absolutamente sobreexaltado ao infinito e acima de tudo isso.” (31)
A religião institucionalizada constitui um problema. Fundamentada em dogmas e interesses de toda ordem, ela afasta o ser humano da Mente Divina. Induz ao erro, quando atribui ao Divino, emoções e sensações próprias do gênero humano. Relacionar tais qualidades ao Altíssimo, distanciar-se da natureza é negar a unidade entre o Criador e suas Leis. Giordano Bruno, identifica esta unidade na seguinte citação:
“Vedes assim, como todas as coisas estão no universo e o universo em todas as coisas; como nós estamos nele e ele em nós, de modo que tudo concorre numa perfeita unidade.” (32)
Considera que o Ser Criador é o Primeiro Princípio, porquanto tudo o que existe vem depois dEle, seguindo uma certa ordem de prioridade, de acordo com a natureza e segundo uma dignidade. (33)
No Universo há uma Razão que a tudo ordena: é a Criação. Tudo o mais vem depois dela.
A expressão “certa ordem de prioridade”, utilizada por Giordano Bruno, refere-se à Potência Criadora que ordena o Universo e os seus inumeráveis mundos. Pode indicar, também o conceito cabalístico dos “Sefirots”, que representam os dez aspectos do Ser Criador, ou seja, a expressão da Linguagem Divina que se manifesta ao mundo através da natureza. São canais ou emanações da Luz Divina, através da qual o Transcendente torna-se Imanente.
Em suas reflexões sobre a Divindade, Bruno afirma:
“Anaxágoras não deixa de tirar proveito [da observação] da natureza, porque não somente nela mas também fora e talvez acima dela ele reconhece um intelecto, que Sócrates, Platão , Trismegisto e nossos teólogos chamaram igualmente de Deus.” (34)
Apoiado na tradição hermético-cabalista, Bruno concebe a natureza como a expressão do Divino. Para ele, o Criador se revela ao homem através da natureza - (Está na natureza; tudo o que existe vem depois Dele); mas não se confunde com ela (segue uma certa ordem de prioridade e dignidade).
Ao incorporar elementos do Hermetismo Religioso e da Cabala Judaica, Bruno reafirma a idéia de uma religião sem dogmas e ritos. Uma religião que se manifesta no reconhecimento de que Deus está presente no mundo através da natureza e no coração dos seres humanos, e que se revela ao mundo por seus atributos e emanações. Essa posição confirma a sua rejeição a toda ortodoxia.
Tais foram os argumentos utilizados por Bruno para fugir à ortodoxia religiosa: buscar outras fontes de inspiração, a fim de considerar que a verdadeira sabedoria está presente no mundo, na natureza e no homem, já que tudo foi criado por Deus e vem depois dEle. O que é sábio, transpõe a sabedoria para as suas obras. Para ele, Sabedoria, Verdade e Unidade são absolutamente idênticas. (35)
Na esfera filosófica, apoia-se no Sistema Copernicano e passa a contestar os doutores de Oxford, os quais pelo espírito fechado e pela ortodoxia filosófica, designa de “pedantes”. Em sua obra Ceias das Cinzas (Cena de le ceneri), Bruno refere-se a Copérnico como aquele que nos libertou de vários preconceitos filosóficos que poderiam ser identificados como cegueira: (36)
“Quem, então, haveria de tratar esse homem (Copérnico) e sua labuta como tão ignóbil descortesia que se esquecesse de suas realizações e do seu aparecimento divinamente ordenado, como a alvorada que precede o pleno nascer do sol da antiga e verdadeira filosofia, depois de ela Ter estado durante séculos enterrada nas sombrias cavernas da cega e invejosa ignorância; e quem o julgaria, em razão de algumas omissões na sua obra, como um pensador de igual nível ao do rebanho vulgar, que oscila de um lado para outro conduzido pela brutal superstição? Não deveria ele ser contado entre aqueles cujo grande espírito lhes permitiu elevarem-se, sob a fiel orientação do olho da inteligência divina?”
A partir de uma visão mais consciente do mundo e de um reconhecimento do ALTÍSSIMO, resta ao homem compreender a sua posição no Universo e a de ambos (homem e universo) em relação ao Criador. Para resolver essa questão, Bruno lança mão da Teoria Copernicana.
Agnes Heller argumenta que Bruno considerava a imagem que Copérnico traçou do Cosmos não como uma descoberta científica, mas como uma nova concepção sobre as transformações do mundo físico. Para ela, a atitude de Bruno revela uma “visão consciente do mundo” (37)
Assume também uma postura contra a ortodoxia católica, ao colocar-se ao lado do Calvinismo, não por seu conteúdo religioso, mas porque o via como um movimento capaz de abalar, mais ainda, os alicerces da religião institucionalizada; crença essa que mais tarde seria contestada pelos próprios fatos, pois Bruno viria também a ser perseguido pelos calvinistas.
Opõe-se, ainda, à Contra-Reforma, o que reforça, de acordo com Agnes Heller, a sua “visão consciente do mundo”, visão esta que mais tarde lhe custaria um processo, a prisão e a exigência de uma retratação.
Retratar-se diante da Igreja, nos primeiros tempos da Contra-Reforma, representava apenas uma formalidade e o reconhecimento – da parte do sentenciado – do poder e da superioridade da Igreja. Com o passar do tempo, a retratação deixou de ser uma formalidade para significar uma “vitória ideológica” sobre o opositor.
Segundo Agnes Heller, Bruno quebra a tradição da retratação, aceitando a luta ideológica contra a Igreja, que ele considera inimiga dos seus esforços.” (38)
Apontado como herege e contrário aos preceitos cristãos, ele foi condenado à fogueira pela Inquisição católica em 1600, tendo a historiografia identificado a defesa do sistema heliocêntrico como a causa de sua condenação.
Na verdade, a historiografia divulga apenas um aspecto dos fatos, omitindo grande parte dele, quando não reconhece e não identifica na trajetória de Bruno a luta contra o dogmatismo e o princípio de autoridade que permeia a esfera religiosa, filosófica e política. Tão pouco admite a retomada dos princípios herméticos: Lei da Causa e do Efeito, Inumerabilidade dos Mundos, Princípio do Mentalismo, Transmutação e Infinitude Universal. (39)
Foi considerado um inimigo da cristandade; entretanto, lembramos que Bruno reconhecia a presença do Criador em todas as coisas, e os seus atributos de Perfeição, Poder e Sabedoria: “Louvado sejam os deuses! E que todos os viventes magnifiquem o [Ser] simplíssimo, uníssimo, altíssimo e absolutíssimo [que é] Causa, Princípio e Uno.” (40)
Um ponto importante na luta contra a ortodoxia é a reafirmação da Liberdade. A ortodoxia pressupõe a intolerância, a verdade absoluta e a aceitação passiva de dogmas ou argumentos sem base racional. Ao seu lado, encontramos o medo e a coerção. Como destronar a ortodoxia sem apontar como valor fundamental a Liberdade?
É esse anseio que encontramos em Bruno. Um amor heróico, capaz de ir às últimas conseqüências, mesmo até à morte, para defender a Verdade dos ataques daqueles que praticam a “filosofia vulgar”. (41)
Mas o que é a Verdade? Ela pressupõe sabedoria e contemplação. Bruno consegue visualizá-la, mas não defini-la. Consegue compreendê-la intuitivamente, a ela se refere sempre, mas não lhe dá uma definição final. Não ousa fechá-la em conceitos rígidos, a fim de não recair no mesmo erro dos seus opositores: a ortodoxia.
Sobre a Verdade, ele nos fala:
“… quem encontrou a verdade, tesouro escondido iluminado pela beleza da face divina, zela ciosamente para que não a defraudem, negligenciem e contaminem, como faria um avarento com seu ouro, rubis e diamantes ou com o cadáver de uma bela mulher.” (42)
Através de uma linguagem poética e simbólica, Bruno refere-se à Verdade como um tesouro escondido, como uma expressão do Divino ou como uma bela mulher. Está na ordem dos valores pelos quais se deve lutar; zelar ou defender com “amor heróico”.
Dentro do espírito filosófico de Giordano Bruno, poderíamos argumentar que a Verdade se encontra no coração dos homens e circunscrita na natureza. Ou ainda, como reveladora da Potencialidade Divina, está nas Leis da Criação e corresponde à Vontade Divina. Esta, não deve ser confundido com o fazer cotidiano braçal ou intelectual, mas uma ação perfeita e inimitável, que se expressa na Criação. Identificamos em Bruno a mesma expressão:
“Este ato absolutíssimo que é idêntico à absolutíssima potência, não pode ser compreendido pela inteligência, senão pelo modo da negação: não pode, repito, ser entendido enquanto pode ser tudo, nem enquanto é tudo. Porque a inteligência, quando quer compreender, deve formar espécies inteligíveis, assimilar-se, medir-se e igualar-se a elas. O que é impossível, porque a inteligência nunca é tão grande que não possa ser maior; pois este [ato absoluto] não pode ser maior, porque ele é infinito em todos os lados e sob todos os aspectos. Não existe olho que possa dele aproximar-se e que tenha acesso a luz tão brilhante nem a abismo tão profundo.” (43)
O homem que compreende a Verdade reconhece o Criador; ama o mundo, a natureza e tudo o que ela exprime e contém. Desta forma, quem compreende a sua natureza interior e a natureza do mundo aproxima-se da Verdade.
Seguindo esta lógica, podemos dizer que o mundo é também uma expressão da Verdade Divina, ou ainda, citar Hermes Trismegistus: “Cada Sol é um pensamento de Deus, e cada planeta um Modo desse Pensamento.” (44)
Torna-se necessário compreender – sob a inspiração da Filosofia bruniana -, que a verdade não pode ser definida, mas sentida, contemplada e amada. Ela se inscreve em todo o Universo; tem várias faces, mas somente uma expressão. Revela-se através da Criação, do Amor e da Bondade Divina.
A Verdade pode aproximar-se do Bem, mas ainda assim não pode ser definida. Para o hermetismo, é como uma realidade espiritual que se expressa nos planos mental e material através da palavra e do pensamento humano:
“Pois a amplitude do Bem é tão grande quanto a realidade de todos os seres e dos corpos e dos incorpóreos e dos sensíveis e dos inteligíveis. Eis o que é o Bem, eis o que é Deus. Não chame nenhuma outra coisa de boa pois isto é impiedade ou dê a Deus qualquer outro nome que esse único nome de Bem, pois isto também é uma impiedade. Certamente, todos pronunciam a palavra Bem, mas não percebem o que ela pode ser. Eis porque não percebem também o que é Deus, mas, por ignorância, chamam bons os deuses e certos homens, ainda que não o possam ser e nem se tornar: pois o Bem é o que menos se pode retirar de Deus, é inseparável de Deus, porque é o próprio Deus. Todos os outros deuses imortais são honrados com o nome de Deus. Mas, Deus é o Bem, não por uma denominação honorífica mas pela sua natureza. Pois a natureza de Deus é apenas uma coisa, o Bem, e os dois juntamente formam uma única e mesma espécie, da qual saem todas as outras espécies. Pois o ser bom é aquele que tudo dá e nada recebe. Ora, Deus tudo dá e nada recebe. Deus é portanto o Bem e o Bem é Deus.” (45)
Ainda na tentativa de destronar a ortodoxia e reafirmar a liberdade, nos deparamos com a necessidade de reconhecer os Atributos Divinos, sutilmente presentes na Filosofia bruniana, e revelados à humanidade através da Cabala Judaica.
A liberdade pressupõe consciência e reconhecimento do mundo físico, circunscrito nas categorias de tempo e espaço e do mundo que se encontra além da Física. A liberdade proposta por Bruno, também circunscrita à história (tempo e espaço), se concretiza na liberdade do espírito humano de transcender o tempo e o espaço.
Ela pode definir uma Cosmologia – como fez Copérnico - ou Cosmogonia – como fizeram os antigos, sobretudo os gregos. Pode ainda indicar o caminho para a libertação espiritual indicadas no Zoroastrismo, Judaísmo e Cristianismo. Pode ser a medida para a tolerância na esfera filosófica ou religiosa; para vencermos o abismo entre a vida e a morte; entre o mundo material e o mundo espiritual; entre a Filosofia e a Teologia e entre o homem e a natureza.
Liberdade para se expressar e para viver. Liberdade para que a natureza siga o seu curso sem a violência e a arrogância humana. Liberdade para que possam desaparecer do coração humano os resquícios do “pedantismo de Oxford”, rejeitados por Bruno.
Liberdade aos que preferem “ver” a Divindade através de seus atributos: Potência Suprema, Sabedoria Infinita, Inteligência Divina, Majestade, Misericórdia, Força, Beleza, Vitória sobre a Morte, Glória e Repouso, Fecundação e Reino. Eis a visão de Bruno sobre os Atributos Divinos:
“O primeiro princípio absoluto é grandeza e magnitude; e é essa grandeza e essa magnitude que são tudo o que podem ser. Não é grande de uma grandeza que pode ser superior ou inferior, tampouco que possa dividir-se, como qualquer outra grandeza que não é tudo o que pode ser; mas é grandeza máxima, mínima, infinita, indivisível e de toda medida; ela não é maior, porque é mínima; não é menor porque é também aquela mesma que é maior; acha-se além de toda igualdade, porque ela é tudo o que pode ser. O que digo da grandeza, entende tu de tudo o que se pode dizer: porque [o primeiro princípio] é semelhantemente bondade, que compreende toda bondade possível; é beleza que compreende todo belo possível; e não há outro belo que seja tudo o que pode ser, senão esse único [belo]. Uno é o que é tudo e o que pode ser tudo absolutamente.” (46)
Encontramos, ainda, em Bruno a reafirmação da liberdade de pensamento, nas indicações que faz sobre a Filosofia antiga, citando Orfeu, Pitágoras, Platão, Empédocles e Plotino. Perseguia, acima de tudo, a liberdade de expressar em seu tempo um pensamento que fugisse às imposições filosóficas e teológicas estruturadas na Escolástica. Que filosofia Bruno reafirmava?
Aquela “ (…) que de maneira mais cômoda e mais elevada realiza a perfeição da inteligência humana e que mais corresponde à verdade natural e, na medida do possível, coopera com esta última, seja por adivinhação (o que entendo na ordem natural e na explicação das mudanças; não pelo instinto animal, como agem os animais selvagens e aqueles que os semelham; não por inspiração bons ou de maus gênios, como agem os profetas; não por melancólico entusiasmo, como os poetas e outros contemplativos) seja para o ordenamento das leis e para a reforma dos costumes ou sua correção, seja para a aceitação e prática de uma vida mais feliz e divina.” (47)
Uma filosofia que liga os homens entre si e com todos os seres viventes, que busca a elevação da alma e a religação com a Verdade Suprema. Uma filosofia que objetiva a conformação das leis, costumes e tradições humanas à verdade natural, como um indicativo à felicidade humana, pois, quem pode ser feliz se agir contra a Natureza? Não a humana, mas a natureza viva, perfeita, que saiu das Mãos Divinas e exorta os homens a ‘ouvir a sua voz’.
Em Bruno, compreendemos que a felicidade não consiste em buscar as fantasias ou a vitória em si mesma e muito menos o poder e as honras. A felicidade consiste em não desviar os olhos do Divino Objeto – a Verdade – e atuar em conformidade com ela.
Isso não significa abandonar a vida humana e temporal e viver em contemplação. Ao contrário, aquele que se dedica à busca do Divino Objeto e que adquire uma “visão consciente do mundo” atua de acordo com a sua consciência, que Bruno dizia chamar-se ‘voz da natureza’. Se assim não o fizesse, seria como aquele que coloca a mão no arado e olha para trás.
Considerando que a vida humana e temporal está ligada às questões de poder, iniciamos aqui a discussão sobre o Princípio de Autoridade, também objeto das preocupações de Bruno. O que vem a ser a autoridade?
Do latim auctoritas, o termo indica qualquer poder exercido sobre uma pessoa ou um grupo. Em Abbagnano (48), encontramos que esse termo é genérico e não se refere apenas à autoridade política, podendo definir também uma autoridade religiosa ou científica. Considera ainda que qualquer controle sobre as opiniões e comportamentos – sejam individuais ou coletivos – provém de uma autoridade. Uma das características da Filosofia moderna é o abandono deste princípio.
Por este caminho, segue Giordano Bruno: refutava a crença nas verdades absolutas, considerando que algumas verdades poderiam ser confirmadas, desde que fossem objeto da razão. Tais eram suas palavras:
“Nunca deve valer como argumento a autoridade de qualquer homem, por excelente e ilustre que seja… É sumamente injusto submeter o próprio sentimento a uma reverência submetida a outros; é digno de mercenários ou escravos e contrário à dignidade humana sujeitar-se e submeter-se; é suma estupidez crer por costume inveterado; é cousa irracional conformar-se com uma opinião devido ao número dos que a têm… É necessário procurar sempre, uma razão verdadeira e necessária… e ouvir a voz da natureza.” (49)
O ser ilustre e excelente, o que eqüivale a poderoso, não faz de nenhum homem uma autoridade e a ela ninguém deve submeter-se. Para Bruno, o fundamento da autoridade não é a natureza, como defendia Aristóteles; não é a divindade, como pregavam os medievais, mas a razão, que nos conduz na busca da Verdade e nos faz ouvir a voz da natureza, que é Divina.
Bruno não estaria utilizando o argumento aristotélico de que a autoridade provém da natureza? Consideramos que não, pelo fato de que a natureza, para Aristóteles, é um “princípio de vida e de movimento de todas as coisas existentes.” É a substância e a causa final de todas as coisas.
Nicolau de Cusa, – que influencia o naturalismo renascentista – afirma: a natureza “é o espírito difuso e contraído por todo o universo e por cada uma de suas partes (…) Portanto, de algum modo a natureza é a reunião (complicatio) de todas as coisas geradas através do movimento” (De Docta ignor., II, 10).
Em Bruno, temos que “a natureza ou é Deus mesmo, ou a virtude divina que se manifesta nas coisas.” (Summa terminorum, Op. latine, IV, 101) (50). Para Bruno, é a razão que nos faz buscar a verdade e nos faz ouvir a voz da natureza, que é a manifestação do Divino. É a razão que nos faz reconhecer os Atributos do Criador, visíveis na natureza, ao passo que o conceito de Aristóteles não considera a existência de uma Vontade Universal que a tudo preside.
Para Aristóteles, sendo a natureza a causa final das coisas, é ela que determina a igualdade ou as desigualdades entre os homens; é ela que faz os aptos ao mando e à obediência. Para Bruno, não. Todos aqueles que se deixarem guiar pela razão verdadeira compreenderão as Verdades Divinas que se manifestam ao mundo através da natureza. A natureza manifesta a Divindade Suprema, mas não determina as desigualdades. Os homens, como racionais e livres que são e no pleno uso da razão, é que dirigem seus destinos. Na posição aristotélica, não há liberdade diante da natureza/existência; resta apenas a ela adequar-se ou submeter-se. Em Bruno, podemos considerar que “a natureza, sendo divina”, jamais será injusta. O ser justo ou injusto refere-se às ações humanas. Daí a diferença entre a posição de Aristóteles e a de Bruno.
Combater o bom combate é o que pretendia Bruno; varrer do convívio da Ciência e da Filosofia, a arrogância, o pedantismo e o cinismo. Isto significava combater os “Doutores de Oxford” ou os “pedantes”, como ele mesmo afirmava. Além do título de doutor, um homem devia carregar dentro de si a nobreza. Para ele, “… os verdadeiros doutores e os verdadeiros padres, ainda que de baixa condição, serão naturalmente civilizados e nobres, pois a ciência é um excelente caminho para tornar heróica a alma humana.” (51)
Como se vê, ele não combate as autoridades em si mesmas, mas o princípio que as colocava acima dos outros, pela simples ostentação do saber ou pelo poder em si mesmo. Estabelece relações com as autoridades da época, procura influenciá-las, a fim de interromper as guerras de religião. Atraiu sobre si a atenção do rei Henrique III (França) e da rainha Elizabeth I (Inglaterra).
Segundo Miranda (1997), “Bruno havia elaborado para si mesmo um projeto missionário de reformador das estruturas de pensamento e ação não apenas religiosas, mas até políticas, ou pelo menos sociais.” (52). Considerava que, sem apoio político, o seu intento de reforma jamais se realizaria. O seu desejo vai mais longe; procura influenciar o Papa Clemente VIII e convencê-lo de que as estruturas do poder temporal e religioso deveriam ser modificadas.
Malgrado todas as tentativas, Bruno não consegue o seu intento e cai nas mãos do Santo Ofício.
Antes de ser condenado, ele mesmo conclui: “Enganam-se os que pensam que aqueles que estão no poder vão reformar o poder!”
Qual a origem do princípio de autoridade? Está presente no desejo de superioridade de alguns; para outros, reside na imposição de argumentos e nos títulos e estudos conquistados nas universidades. A base deste princípio está na arrogância e na negação da máxima socrática: “Só sei que nada sei!” Em Bruno temos que, além do título de doutor, o homem precisa alcançar uma condição de nobreza interior. Considera, ainda, que a honra e a bravura dos homens deve estar menos em poder e saber molestar o seu próximo do que no contrário.
Em nada adiantaria todos os títulos se um homem não consegue alcançar a sabedoria nem a paz de espírito; muitos desses títulos podem representar apenas uma doce ilusão ou uma falsa sabedoria. Guiado por essa reflexão, Bruno argumenta: “Quem é mais insensato e tolo senão aquele que não vê a luz? (…) Considerai um pouco a verdade, erguei os olhos para a árvore da ciência do bem e do mal, vede a contradição e oposição que existem entre esta e aquela.” (53)
Nessa referência de Bruno à Árvore do Bem e do Mal, encontramos na Cabala o conceito de Árvore da Vida. Para os cabalistas, a Árvore é uma representação da alma humana e do Universo. Assim como o Universo é governado por Deus, a alma humana deve ser governada por seu Eu Superior. Em assim não ocorrendo, a alma humana é governada pelas forças em desequilíbrio. A Árvore é na verdade, o símbolo que estabelece uma mediação entre a alma humana e a Alma do Mundo. Esta ligação entre a alma humana e a Alma do Mundo resulta num influxo de energia capaz de transformar tanto a pessoa como a realidade que a cerca. A esse influxo, os cabalistas denominam de poderes mágicos. (54)
A indicação da Árvore, como representação da alma humana, é apontada por Bruno:
“Considerai um pouco a verdade, erguei os olhos para a árvore da ciência do bem e do mal, vede a contradição e oposição que existem entre esta e aquela. Observai quais são os homens e quais são as mulheres. Aqui descobrireis como sujeito o corpo, que é vosso amigo: masculino; lá a alma, que é vossa inimiga. Deste lado, o masculino caos; do outro a feminina disposição; deste lado, o sono; do outro, a vigília; aqui o letargo, lá a memória; aqui, o ódio, lá a amizade; aqui o medo, lá a segurança; aqui o rigor, lá a doçura; aqui o escândalo, lá a paz; aqui o furor, lá a tranqüilidade; aqui o erro, lá a verdade; aqui o defeito, lá a perfeição; aqui o inferno, lá a felicidade; (…) Todos os vícios, enfim, os defeitos, os crimes, são masculinos. As virtudes todas, as excelências e bondades são femininas.” (55)
Mais que cultivar o desejo de poder e o princípio de autoridade, deveríamos nos voltar para as virtudes, expressas de forma simbólica na Árvore do Bem e do Mal e cuidar para que o nosso atuar seja de tal forma que não façamos mal a nenhum ser vivente.