A reforma que se pretende busca acabar com alguns anacronismos persistentes no nosso sistema tributário. Entre eles, estão os impostos que envolvem a propriedade imobiliária e os negócios dela decorrentes. Temos um emaranhado de quatro tributos, sendo dois para taxar a posse e dois para taxar os negócios. Um dos impostos sobre a posse da propriedade imobiliária é simplesmente ridículo. Estamos falando do Imposto Territorial Rural (ITR), que concedeu ao País uma receita de 190 milhões de reais em 2001, 0,05 % da carga tributária. Ou seja, os proprietários de um território superior a duas Europa só contribuíram com o equivalente a pouco mais da metade dos recursos gerados pela cota de participação das universidades estatais de São Paulo nas receitas do ICMS em um mês.
A precariedade da taxação da propriedade rural no Brasil, principalmente a improdutiva, fica ainda mais chocante se atentarmos para o estudo feito pelo economista Kenard da Silva Balata, membro da Sociedade Brasileira de Cartografia, com mais de 30 anos de experiência em cadastramento técnico. Ele considera a arrecadação do ITR “inexpressiva e desprezível” diante das possibilidades não aproveitadas de receitas oferecidas pela grandiosidade territorial do País. Kenard estima que uma cobrança adequada do que já está cadastrado poderia gerar receitas de mais de R$ 4 bilhões. E se for feito o recadastramento pleno da propriedade, a receita poderia chegar a mais de R$ 10 bilhões por ano.
O estudo de Kenard oferece para reflexão os seguintes números: partindo do pressuposto de que, nos países com um regime fiscal mais eficiente, o imposto sobre a terra varia de 3 % a 5 % da carga tributária, no Brasil o ITR, se for corretamente taxado, pode render de R$ 4,5 bilhões a R$ 7,5 bilhões por ano. O economista atribui essa defasagem à sonegação, porque a autoridade tributária deixa a cargo do proprietário o preenchimento do Documento de Informação e Apuração do ITR (DIAT), pelo qual o contribuinte informa o valor do tributo que deve pagar ou não pagar. Além disso, existem no Brasil entre 4,5 a 5 milhões de imóveis rurais, mas só estão cadastrados cerca de 3,1 milhões, totalizando uma área de terra ocupada de 331.364.012 hectares. Mas existe, segundo estimativas, uma área ocupada e não cadastrada de 513.754.888 hectares. Daí o cálculo de Kenard de que é possível arrecadar cerca de R$ 10 bilhões de impostos sobre a terra.
É esse potencial de arrecadação de detentores de grandes fortunas em propriedades de terras que um novo sistema tributário tem que atingir, o que será mais facilmente conseguido com a descentralização da cobrança desses contribuintes na esfera municipal, onde ficará mais fácil cadastrar, avaliar quanto o dono da propriedade pode pagar em razão da localização e uso, para onde mandar o carnê de cobrança e recolher os recursos gerados ao caixa da Prefeitura. Manter na esfera da União esse tributo é deixar livres de impostos os detentores de riqueza, enquanto se pune com elevados tributos o conjunto da população.
O outro imposto que taxa a posse da propriedade imobiliária é o IPTU, de competência municipal, cuja receita total, em 2001, foi de R$ 5,36 bilhões, somadas as arrecadações por ele geradas nos atuais 5.559 municípios existentes no País. É, também, um imposto mal cobrado, sobre o qual os prefeitos e/ou as câmaras de vereadores aplicam muitas isenções, raticamente não usam a progressividade e é taxado com alíquotas extremamente modestas, mesmo nos casos de imóveis cuja ostentação é visível.
A participação desse tributo, de apenas 1,32 % da carga tributária, é uma prova de que se trata de uma possibilidade de arrecadação subestimada. Não se deseja defender aqui uma taxação escorchante, mas de distribuir adequadamente uma taxação sobre todo o universo de contribuintes, o que possibilita arrecadar mais com alíquotas menores. Neste sentido, o exemplo dado pela Prefeitura de São Paulo, que isentou mais de um terço dos imóveis do município em 2001, não ajuda criar uma cultura de melhor aproveitamento da capacidade contributiva do universo de contribuintes municipais.
Com os dados oferecidos, ficou claro que a taxação da propriedade imobiliária, a posse da propriedade imobiliária, quer seja urbana, quer seja rural, é inexpressiva. Ela representa apenas 1,37 % da carga tributária. É, provavelmente, uma das mais baixas do mundo, pois sabe-se que a média da taxação sobre a propriedade predial e territorial, nos países desenvolvidos ou em desenvolvimento, vai de 3,5 % a 11 % da carga tributária dos países. No Brasil, estamos longe disso. De modo que não seria necessário exagerar na taxação da propriedade imobiliária em nosso País para obter um salto na arrecadação desse imposto. Bastaria adotar o menor padrão de outros países, algo em torno de 3,5 % da carga tributária, para se triplicar o atual nível de receita neste segmento de contribuintes, que em 2001 recolheram aos cofres públicos, de IPTU e ITR, apenas R$ 5,64 bilhões, quando poderiam recolher mais de R$ 15 bilhões.
Os outros dois impostos envolvendo a propriedade imobiliária no Brasil são: o ITCD (Imposto sobre Transações Causa Mortis e Doações), de competência estadual, cuja receita, em 2001, foi de R$ 339 milhões, 0,08 % da carga tributária, em todo o País; e o ITBI (Imposto sobre Transações Imobiliárias Intervivos), de competência municipal, cuja receita, em 2001, alcançou, apenas, R$ 980 milhões, algo em torno de 0,24 % da carga tributária. Percebe-se pelos números que também esses impostos, envolvendo não a posse e sim os negócios ou transmissões de propriedades imobiliárias, oferecem um baixo rendimento para as receitas públicas. Isto porque a tributação neste segmento ainda conserva o arcaísmo dos tempos coloniais.
Temos, sem dúvida, uma atitude de reverência para com os proprietários imobiliários em geral, e mais ainda para com os grandes proprietários de terra, na hora de tributar. Tal como acontecia nos tempos do Brasil imperial e rural, nem um pouco condizente com o estágio de modernização econômica do País. Outra questão que precisa ser lembrada e a reforma precisa enfrentar: trata-se da dispersão de competências desses impostos. Para arrecadar uma soma irrisória de apenas R$ 6,87 bilhões, ou seja, 1,69 % da carga tributária, envolvem-se as três esferas da administração - União, Estados e Municípios -, quando os quatro tributos podem ser resumidos em dois: um na esfera municipal, taxando a posse dos imóveis urbanos e rurais; e o outro na esfera estadual, taxando os negócios e as transações imobiliárias.
A retirada da União dessa área de tributação, ou seja, a unificação dos impostos sobre a posse da propriedade imobiliária em um só de competência municipal, será benéfica para a própria União, que não aproveita o potencial de receita que a propriedade territorial pode gerar. A unificação dos impostos sobre as transações imobiliárias em um só tributo, cuja legislação adotaria critérios parecidos com aqueles usuais na comercialização de bens, de competência exclusivamente estadual, também permitiria aproveitar todo o potencial de geração de receita possível nessa área de tributação. Contudo, nem os municípios, nem os estados devem perder de vistas que tanto a taxação da propriedade predial e territorial urbana e rural, quanto a taxação dos negócios imobiliários devem ser progressivas: no tempo, em razão do valor, da localização e do uso.
Para o imposto único municipal pela posse da propriedade predial e territorial urbana e rural, cabe uma só legislação. Basta adaptar as normas que regem a cobrança do IPTU, estendendo-as à área rural dos municípios, naturalmente sem as liberalidades das isenções descabidas, responsáveis pelas gritantes desigualdades de receitas próprias per capita que se observam entre os municípios brasileiros.
Para o imposto único estadual sobre as transações imobiliárias de qualquer natureza, a legislação poderia partir de normas usuais na legislação que taxa a comercialização de bens em geral, naturalmente observando a necessidade de estabelecer alíquotas diferenciadas, sem abusos, mas com critérios de justiça.
E assim concluímos esse trabalho, lembrando que, se desejamos e lutamos por um País desenvolvido, com a riqueza distribuída com mais justiça, temos que enfrentar a questão tributária agora, sem mais delongas. Chega de falar em reformas e fazer apenas pequenos remendos.
O Brasil é campeão em perder as oportunidades de se transformar numa potência de peso no mundo. São décadas e décadas perdidas. São séculos perdidos. Se comparado com outros países contemporâneos e com menor potencial, o nosso País fica devendo em termos de desenvolvimento e de desigualdades sociais.
Mas, vale lembrar que nunca é tarde para buscar saídas para os problemas e encontrar o caminho certo. Só precisamos de coragem e determinação, de administrações arrojadas, dispostas a ultrapassarem os obstáculos que nos separam do desenvolvimento econômico e social e de um ciclo de prosperidade que todos nós almejamos.