“Certo homem tinha dois filhos; o mais moço deles disse ao pai: Pai, dá-me a parte que me cabe dos bens. E ele lhes repartiu os haveres. Passados não muitos dias, o filho mais moço, ajuntando tudo o que era seu, partiu para uma terra distante e lá dissipou todos os seus bens, vivendo dissolutamente. Depois de ter consumido tudo, sobreveio àquele país uma grande fome, e ele começou a passar necessidade. Então ele foi e se agregou a um dos cidadãos daquela terra, e este o mandou para os seus campos a guardar porcos. Ali desejava ele fartar-se das alfarrobas que os porcos comiam, mas ninguém lhe dava nada.
Então, caindo em si, disse: Quantos trabalhadores de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui morro de fome! Levantar-me-ei e irei ter com meu pai e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e diante de ti, já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus trabalhadores. E, levantando-se, foi para seu pai.
Vinha ele ainda longe quando seu pai o avistou e, compadecido dele, correndo, o abraçou e beijou. E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e diante de ti, já não sou digno de ser chamado teu filho. O pai, porém, disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa; vesti-o, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés; trazei também e matai o novilho cevado. Comamos e regozijemo-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado. E começaram a regozijar-se.”
(Lc15:11-24)
Essa parábola sintetiza toda a saga humana. Mostra o início do desenvolvimento do ser humano, inicialmente sem mácula, depois quando peca e, por fim, a possibilidade de sua redenção.
O filho mais moço requisita os bens que lhe cabem e parte para longe. Essa imagem mostra a saída do germe espiritual humano do Paraíso, que traz consigo todas as dádivas para vicejar na materialidade – “uma terra distante”, com a finalidade de obter a autoconsciência através de vivências e retornar ao Paraíso, como espírito plenamente amadurecido.
No Paraíso há seres espirituais criados, que sempre puderam permanecer lá, sem precisar antes descer até os mundos da materialidade a fim de amadurecer e se desenvolver. Estes seres criados são simbolizados pelo outro filho, o mais velho, que sempre viveu na Casa do Pai.
O filho mais moço representa os germes espirituais humanos, que tal como as sementes precisam crescer e se desenvolver mediante estímulos exteriores, só encontrados no grande campo de cultivo da matéria. As vivências na Terra atuam sobre esses germes como o Sol e a chuva atuam sobre as sementes das plantas. Assim como uma pequena semente traz em si a capacidade de se transformar numa árvore frondosa, mediante as influências climáticas que atuam continuamente sobre ela, também o germe espiritual humano, mediante as vivências angariadas em múltiplas vidas terrenas, tem ensejo de se transformar num ser espiritual completo, autoconsciente, pronto a dar frutos em abundância lá na pátria espiritual de onde saíra, o Paraíso. Para tanto, ele precisa aproveitar as muitas vivências no sentido do seu próprio aperfeiçoamento, corajosamente, tal como um tijolo de barro que se fortalece cada vez mais sob os raios solares, e não como um pedaço de cera qualquer, que se derrete desconsolado sob o mesmo sol da reciprocidade.
A perspectiva de que o processo ocorra dessa maneira normal é dada pelas faculdades inerentes ao germe espiritual – “os bens que lhe cabem” mencionados na parábola. Contudo, o relato mostra que o germe espiritual plantado aqui na matéria não aproveitou essas suas capacidades inerentes, não se desenvolveu espiritualmente. Pelo contrário, ele “dissipou todos os seus bens”, preferindo “viver dissolutamente”, isto é, não desenvolveu as faculdades espirituais que trazia consigo, antes deu valor apenas às coisas materiais, perecíveis.
Por causa dessa negligência, desse pecado, ele teve de experimentar grandes penúrias, efeitos retroativos do seu mau proceder e de outros como ele – “a grande fome” que se abateu no país. Ele então passou a “guardar os porcos”, uma atividade ínfima comparada à missão destinada ao espírito humano na Criação. Nesse ponto, o filho nada mais desejava senão se saciar com as “alfarrobas (vagens da alfarrobeira) que os porcos comiam”.
Todavia, todo esse sofrimento acabou despertando nele a saudade da Casa do Pai, onde mesmo os trabalhadores “têm pão com fartura”. No reino espiritual só existe alegria, permanentemente usufruída pelos servidores que lá se encontram, num permanente dar e receber. Todos desfrutam de abundância, pois a miséria é decorrência unicamente do pecado, e este não pode medrar lá. Só em regiões muito afastadas do reino espiritual, como é o caso do plano material da Criação, é possível a ocorrência de uma falha consciente de uma criatura, o pecado, que traz como conseqüência inevitável a dor e o sofrimento.
Os instrumentos que provocam esse sofrimento podem apresentar-se de múltiplas formas, mas a culpa real é sempre do próprio atingido por ele. Vamos intercalar aqui o relato do reconhecimento do pecado, como única fonte de sofrimento humano, feito pelos irmãos condenados pelo rei Antíoco IV Epífanes, no momento em que estavam sendo torturados por ele. Disseram-lhe os irmãos: “Não te entregues a vãs ilusões, porque é por causa de nós mesmos que suportamos estes padecimentos, tendo pecado contra o nosso Deus. Sobrevieram-nos por isso estranhas calamidades. Nós, se sofremos, é por causa de nossos próprios pecados” (2Mc7:18,32).
Estranhas calamidades... advindas do pecado. Como dor, miséria, fome, doenças...
O filho mais moço então “caiu em si”, ou como diz muito apropriadamente o original grego da parábola: “entrou em si mesmo”. Reconhecendo seu erro – “pequei conta o céu e diante de ti”, ele pede perdão ao pai e se diz indigno de ainda ser considerado seu filho. Todavia, nesse reconhecimento está implícita a firme resolução de não mais atuar daquela maneira errada, de esforçar-se em agir direito dali por diante, segundo a vontade do pai. Por isso, o pai lhe perdoa e o cobre de graças, pois seu filho “estava morto e reviveu”, “estava perdido e foi achado”. Em outras palavras, o filho estava prestes a sofrer a morte espiritual, mas ressuscitou a tempo para a vida eterna. Sua roupa nova, o anel e as sandálias, indicam que a sua alma (a veste do espírito) já terá sido completamente purificada quando estiver prestes a entrar no reino espiritual. Com isso o filho comprovou, por experiência própria, que “só se entra no Reino de Deus superando muitas tribulações” (At14:22).
O pertinaz e perspicaz Pelágio, nosso nobre amigo do século V, observou muito bem que se o filho pródigo pôde se arrepender e voltar sozinho para o pai, sem auxílio de nenhum mediador, então isso significa que nós também não precisamos de nenhum mediador para nossa redenção, leia-se “igrejas”. Mais um ponto para o audaz Pelágio, assaz sagaz e por vezes mordaz, mas sempre veraz!
A segunda parte da parábola, não reproduzida acima, mostra um presumido descontentamento do filho mais velho pela recepção que o mais moço teve por parte do pai (cf. Lc15:25-32). Como é impossível qualquer tipo de descontentamento no Paraíso, onde reina apenas a alegria mais pura, esse relato serve apenas para mostrar que, após seu retorno, o filho mais moço será tão valioso quanto o mais velho, não havendo mais nenhuma distinção de vulto entre os dois. Após o desenvolvimento necessário dos dons de cada filho, um no reino do espírito e outro no da matéria, ambos terão as mesmas capacitações e mesmo valor, fato indicado já no início da parábola, quando o pai repartiu seus haveres igualmente entre os dois.
O ser humano que está a ponto de se perder na matéria, devido aos erros nele aderidos, mas que num determinado momento redireciona sua sintonização interior para um alvo elevado, equivale ao filho que toma a resolução de voltar para a Casa do Pai. Vê-se assim que o sofrimento também pode ser uma bênção, se consegue levar a pessoa atingida por ele a modificar seu modo errado de vida de até então. De fato, muitas vezes só nas agruras, decorrentes da reciprocidade, é que o ser humano redireciona seu íntimo no sentido certo.
E depois de ele mesmo ter ascendido até a Casa do Pai, sua chegada será então motivo de grande regozijo entre os habitantes do reino dos céus, o Paraíso. É uma alegria que se renova a cada filho pródigo que encontra o caminho de volta para casa.