Tradição e cultura são palavras que se conversam mutuamente e que são empregadas para diferentes usos e com diferentes conotações. Alguns pressupostos contemporâneos fazem de “cultura” algo que pode ser tanto o retrato de uma época ou sociedade, como algum recorte específico do substrato que permeia a vida social.
Dizemos que algo é cultural, quando está profundamente enraizado em determinado lugar ou coisa, tanto que se torna possível reconhecer algo característico disso em extratos sutis ou mais objetivos da realidade. Outra conotação da palavra “cultura”, dessa vez mais popular, está mais próxima do sentido da arte e do conhecimento. Fazer um programa cultural ou ir a busca de cultura vai ao encontro da origem da palavra, mais próxima do sentido de um “cultivo de algo”. Nesse sentido ela simpatiza com noções ligadas ao aprimoramento, desenvolvimento e evolução.
Já o termo tradição nos leva a pensar em coisas mais antigas, anteriores às culturas do presente e ligadas a conhecimentos remotos, mas nem por isso menos válidos.
No entanto, existem aspectos agradáveis e outros tantos muito desagradáveis que se escondem tranquilamente sob o título de tradição e cultura. Ora, dirá você, agradável e desagradável são coisas subjetivas. “Não se pode julgar uma cultura na qual não estamos imersos” – cuidado aqui, é muito comum se usar essa constatação para fazer proliferar uma lista argumentos relativistas e vagos. Sobre isso falarei mais adiante.
Antes gostaria de dizer que seria mais saudável de nossa parte um pouco mais de cautela para não cair em chavões intelectuais, que através do carimbo destas duas palavras – tradição e cultura – ignoram algo muito valioso, chamado senso de humanidade. Muitos vão querer discutir exaustivamente a terminologia do termo e novamente flertar com o relativismo, então eu diria apenas que se refere a aquilo que nos torna seres humanos, interiormente. E cada um sinta como bem entender ou conseguir. Pois há hoje nessa compreensão, infelizmente, uma necessidade de esforço.
A cautela que vejo ser necessária é simplesmente a de que, nem tudo que é tradição, conserva em si riqueza do passado. Muitas coisas sim. Nem tudo que é tradicional, merece ser guardado e louvado como algo especial, só por não estar presente na atualidade. Algo que muita gente entende por “coisas que estão se perdendo” e que “merecem ser resgatadas”.
O outro passo cauteloso vai à mesma linha da tradição, mas vale para a cultura, que sob esse largo nome, abre os braços às manifestações que vão muito longe do sentido do valor cultural. Algo que poderia pressupor riqueza e cultivo, no sentido de auto aprimoramento e até mesmo arte ou conhecimento.
Um exemplo é o sacrifício e a tortura de animais para fins religiosos. Assunto que virou projeto de lei para virar um direito legal em certas localidades no Brasil. Aqui a palavra cultura assume contornos mais fixos e intocáveis ainda, pois se liga à outra, chamada religião. E nesse assunto ninguém quer mexer não é mesmo? Sobre isso, vale mencionar uma corajosa declaração de um vereador do RS, Beto Moesch, feita em 2004, “Estamos em pleno século 21, e o mundo inteiro avança na harmonização dos seres vivos. Trata-se de uma decisão lamentável, que vai de encontro ao próprio sentido da religião, de buscar a paz de espírito. É um atraso”.
Outro exemplo são antigos rituais dolorosos de iniciação para adolescentes em sociedades tribais, que transgridem sem muito esforço quase todos os direitos humanos. Em matéria publicada na Folha, jovens com acesso à Internet tem se questionado sobre a validade destas práticas.
Muita gente diz que grupos culturais mais antigos não devem ter suas tradições tocadas, mas eu pergunto, é direito de alguém, tribo ou sociedade, impedir o livre questionamento e a quebra de padrões culturais de um jovem para si? Até que ponto nossa posição perante a cultura dos outros não influencia na própria cultura dos outros? Se todos fossemos contra barbaridades como essas, algo enfim haveria de se modificar. Daríamos força e apoio, social e político a tantos jovens, docilmente subjugados a certas práticas culturais que vão contra a dignidade humana.
Será que com apoio, informação e conhecimento, suas próprias culturas não se modificariam? Uma cultura que muda, evolui e vai além, deixa de ser uma cultura? As dinâmicas da civilização também não vieram de mudanças e transformações culturais necessárias? Quem foi que contou para nós que uma cultura não pode se modificar? Tantas e tantas vezes, lideranças e vozes de opinião, ao deixar de manifestar a respeito disso, coadunam com estas práticas através do silêncio.
A cultura pode sim ser mexida e modificada, pois ela é viva, e não é algo estático que tantos admiram no museu como algo exótico e que deve ser respeitado, mas ai de nós se estivéssemos imersos naquilo, não é mesmo?
Touradas são outro símbolo da cultura e tradição de um país. Pior, viraram esporte. Afinal, a Espanha não seria a Espanha sem o calor de suas touradas que alimentam uma agressividade e perversão indignas à condição humana. A sensação de mal estar e tristeza sobre isso é latente e constante, não há remédio.
Ora, dirá você, “há o agradável e o desagradável para cada um, e deve se respeitar a individualidade cultural dos grupos e sociedades”. Mas eu pergunto, até onde vão os grupos e sociedades, no limite em que me tocam? Até onde meu vizinho pode praticar coisas que ferem o senso de humanidade de uma coletividade na qual me incluo? Será que “humanidade” também é algo relativo, e assim, num mundo intelectual, abstrato e vazio de significados ficamos a mercê do nada? A individualidade do outro não pode ser em nenhum aspecto examinada e confrontada com valores como ética, saúde e direitos humanos? A lei e o costume, que moldam a cultura e retomam tradições servem à humanidade até que ponto?
Enquanto coletividade que evolui, não nos seria próprio deixar para trás e nunca mais retomar certas práticas e hábitos que tantos escondem maliciosamente sob o signo dito intocável das manifestações culturais e tradicionais? Se eu pudesse fazer alguma pergunta à sociedade, eu perguntaria por que esse medo teimoso em perder certas coisas do passado? Nós mesmos, julgando liberdade desmedida abandonamos sem dó aquilo que achamos desagradável. Por que então querer preservar e repetir passos dados no passado que hoje, só nos impedem de caminhar para o futuro?