A indicação desse mito ou narração de caráter moral, não vem no sentido de reforçar a história oficial ou as narrativas antigas cujo sentido originário perderam-se nos tempos. Mas tão somente uma forma de abordar uma temática, utilizando imagens e metáforas para fins de esclarecimentos. De acordo com a interpretação oficial: Ifigênia é filha de Agamemnão, rei grego, e de sua esposa Clitemnestra. Agamemnão é comandante do exército grego, que se reunira em Áulide para sair para a conquista de Tróia. Não obstante, devido à ação dos deuses, produziu-se uma calmaria de tal maneira que o exército não pôde partir. Perguntando aos deuses pela razão, a deusa Minerva (ou Diana) comunica que somente o sacrifício de Ifigênia, a filha de Agamenão, pode apaziguar sua fúria. O exército exige que se faça esse sacrifício. Em conseqüência, Agamemnão traz Ifigênia a Áulide, enganando Clitemnestra para que a entregue.
Chegando a Áulide, ele sacrifica sua filha, a primogênita de seus filhos, à deusa Minerva. Realizado o sacrifício, o vento volta, o exército parte, conquista e destrói Tróia. (118)
Agamemnão sacrifica Ifigênia, e, não obstante, Minerva seqüestra Ifigênia sem que ele note e põe em seu lugar um animal de sacrifício. Minerva leva Ifigênia a uma ilha selvagem dos tauros, e esta se transforma em uma sacerdotisa de Minerva, na corte de Toante, rei dos tauros.
Franz J. Hinkelammert (1995), em: “Sacrifícios humanos e sociedade ocidental: LÚCIFER E A BESTA” (119) , traça a interpretação e a força desse mito desde a Antigüidade – Ifigênia grega - até o Iluminismo – Ifigênia burguesa, ocidental, “cristianizada” ou “iluminada”/iluminista.
As várias interpretações buscam compreender o sacrifício de Ifigênia. Por isso, indagamos: Qual a adequação do Mito de Ifigênia na condenação de Giordano Bruno? Considerando que o mito transcende o tempo e o espaço, podemos transpor o papel de Ifigênia para Giordano Bruno, o de Agamemnão para a Igreja e a mãe Clitemnestra, que se opõe ao sacrifício da filha, pode ser indicada como o pensamento burguês. Este, na Idade Moderna, resgata o sacrifício de Bruno em nome da liberdade de pensamento; opõe-se ao dogmatismo católico e ao absolutismo real, dando surgimento ao Iluminismo.
Na interpretação grega do mito, vemos que Ifigênia é definida como uma pessoa agressiva, selvagem e descontrolada. Apresenta-se desta forma para fugir ao sacrifício que lhe foi imputado por seu pai. Assim a Igreja olhava para Giordano Bruno, pela sua forma altiva de denunciar o dogmatismo, questionar o princípio de autoridade e buscar a Verdade. Isso pode ser reafirmado pelo peso histórico da sua condenação: “Frade apóstata, herético impenitente, pertinaz e obstinado”.
De acordo com a concepção ocidental, “civilizada” e que se denomina “cristã” (120), Ifigênia é apresentada como a redentora: aquela que é capaz de um sacrifício para salvar os seus. Essa é a concepção burguesa acerca de Giordano Bruno considerado “arauto e mártir de uma nova filosofia”.
E a Igreja, como atua?
A partir do desenvolvimento do mito e da interpretação de Hinkelammert (1995), verificamos que, após sacrificar a sua filha, Agamemnão se transforma em um herói que tudo fez para defender a Grécia e destruir Tróia. Consolida, dessa forma, a hegemonia grega.
Não há mais possibilidade de retorno ou de mudança nos planos: se não conquistar Tróia, ele morre. Se o seu sacrifício como “pai” for em vão, ele será apenas o assassino de sua filha. Porém, se conseguir vencer a guerra, estará justificado: será um herói e não um assassino.
Assim agiu a Igreja, não só contra Giordano Bruno, mas contra os “hereges e os infiéis”. Ao condená-los à fogueira, em se tratando dos “hereges”, ou comandando uma guerra santa, em relação aos “infiéis”, a Igreja na verdade se proclamou “defensora do cristianismo” e não uma assassina. Se a Igreja vencesse essas duas batalhas estaria justificada diante de si mesma e da história. Todos esses sacrifícios e condenações ela o fez em “nome do Criador”; isso legitimou a denominação de “defensora da fé”.
“Quem se atreveria a lutar com divindade tão poderosa?” (121) Identificando Minerva à História, como lutar contra a sua inexorabilidade e mudar o seu rumo?
Ao passar grande parte de sua vida como um errante por quase toda a Europa, Giordano Bruno inicia a sua luta contra a força da Igreja e o fatalismo histórico. Aquela pode-se enfrentar; este pode-se mudar. A atuação de Bruno faz-se, portanto, em nome da liberdade.
Nesse contexto, a liberdade não existe só para Bruno. À Igreja pertence também a “liberdade de defender a religião” e o faz, mesmo que seja contra o Cristianismo, que tem como regra máxima o Amor ao próximo e a condenação a toda e qualquer violência (“Não matarás!”).
A Igreja proclama a iberdade de condenar e sacrificar pessoas, mesmo que precise se chocar com os preceitos que constituem o seu fundamento. E assim age porque possui autoridade. Como “defensora da fé”, carrega em si mesma a autoridade que lhe fora “outorgada” e, sendo infalível, não admite questionamentos ou contestações. Assim age, em relação àqueles que ela denomina “hereges” ou “infiéis”.
Mas, como agir quando o fundamento da religião proíbe toda forma de violência e sacrifícios? Como justificá-los?
Voltemos à explicação do mito:
“A Lei de Minerva que proíbe os sacrifícios humanos religiosos, proíbe exclusivamente estes. Em sua forma não religiosa mantém-se o sacrifício humano, porque não apareceu nenhuma liberdade que consista em não sacrificar homens.” (122)
A saída encontrada pela Igreja é secularizar os Tribunais e para não “sujar as mãos”, entrega os hereges às autoridades civis. Aos “infiéis” declara um “santo combate”, através das guerras de religião, contra as quais se insurge Giordano Bruno.
Como resolver os problemas dos hereges sem se colocar contra a Lei Divina? Tornar os sacrifícios plenamente justificáveis, dar-lhes um valor espiritual, qual seja, libertar a alma dos “hereges” da influência maligna e em se tratando dos “infiéis”, libertar a Terra Santa.
Passa-se, então, a exaltar o sacrifício para salvar a instituição religiosa, através da retomada do Tribunal do Santo Ofício. Tornava-se necessário salvar a humanidade dos inimigos de Cristo; essa era a tarefa da Igreja. Daí a sua autoridade para sacrificá-los em nome do cristianismo, a Religião do Amor.
Formulavam-se as justificativas para os sacrifícios. Essa era a liberdade da Igreja ou ela poderia ter escolhido o caminho da tolerância? Se ela possui a liberdade do não-sacrifício, por que escolheu a outra?
Em se tratando de Giordano Bruno, a Igreja não se manteria , pois a Cosmologia bruniana, - Infinitude do Universo e Pluralidade dos Mundos -, aliada aos questionamentos dos dogmas, destronava as concepções teológicas do seu tempo.
De acordo com as teologias católica e reformada, Jesus Cristo morreu para redimir o mundo. Assim sendo, sua morte extingüiria toda a culpa humana, mas também tornava desnecessários novos sacrifícios.
Se essa Teologia correspondia, à verdade, então por que ocorreram novas condenações? Se o sacrifício de Jesus foi necessário para expurgar todos os sacrifícios passados e evitar os futuros, por que a Igreja continuou a sacrificar pessoas?
Se realmente o sacrifício foi necessário para apagar as culpas, por que a humanidade não se tornou livre, tolerante e justa? Por que a humanidade não pôs um fim às discórdias, guerras e massacres de toda ordem?
Talvez devamos chegar a uma conclusão mais plausível: a morte de Jesus Cristo na cruz, não deveria ter ocorrido. Ela não representou a redenção da humanidade, mas ampliou a sua culpa diante do Criador. Sim, a humanidade é responsável pelo assassinato do Filho de Deus, o Messias, que veio para nos indicar o caminho do Amor e da Salvação. Salvar-nos de que ou de quem? De nós mesmos, da arrogância, da violência, da miséria, do raciocínio extremado, desprovido de humanidade e desligado da intuição.
E o sacrifício de Jesus Cristo qual foi? Foi efetivamente descer da Região Divina onde se encontrava, para o plano da matéria. Descer para um plano completamente denso. O seu grande sacrifício foi pregar para uma humanidade surda, porque preocupada demais com o plano material, mas nunca morrer de forma tão brutal.
Aqui reside a nossa culpa, haja visto que no Evangelho de João, capítulo 19, versículo 7, no diálogo entre os sacerdotes judeus e Pilatos encontramos: “Nós temos uma lei, e segundo esta lei ele deve morrer porque se fez Filho de Deus.” De fato, os sacerdotes dizem: “Nós temos uma lei…” Uma lei humana que determina a morte de Jesus Cristo; não a Vontade do Pai.
Prosseguindo na reflexão vemos que Pilatos vai até Jesus e o interpela:
“De onde tu és? Mas Jesus não lhe deu resposta alguma. Pilatos lhe disse então: É comigo que te recusas a falar? Não sabes que tenho o poder de te crucificar? Mas Jesus lhe respondeu: Não terias poder algum sobre mim se não te houvesse sido dado do alto; e, por isso mesmo, o que me entregou a ti tem um pecado maior.” (123)
Como atesta o Evangelista, a morte de Jesus não era natural, nem foi determinada pelo Criador, mas de inteira responsabilidade dos homens; um pecado maior, por se tratar do assassinato do Filho de Deus. Lucas, em seu Evangelho, capítulo 23, versículos, 33 e 34, relata o momento da crucificação e relembra a invocação de Jesus: “Pai, perdoa-lhes porque eles não sabem o que fazem.” Por esta citação está claro que a morte de Jesus foi um ato de insanidade, loucura ou mesmo cegueira humana e não a Vontade do Criador.
De fato, a humanidade cometeu um assassinato e até os dias de hoje não adquiriu consciência; ao contrário, rejeita-a, porque ela pressupõe mudanças profundas: “Tornai-vos perfeitos como Vosso Pai é Perfeito”.
O ser consciente exige a transformação: “tornar-se homem novo”. Abandonar os maus hábitos como aquele que abandona uma veste que não mais serve; abandonar os prazeres, as paixões e os vícios. Pressupõe uma mudança interior, radical. Abandonar os cultos exteriores e servir ao Criador em Luz e em Verdade; buscar a pureza, a misericórdia , a justiça e a paz, sem turbar o coração diante dos “apelos” do mundo material. Essa é a mudança que nos é exigida e contra a qual relutamos, pois estamos com a vista turva e a nossa alma se encontra na embriaguez. É o conhecimento de si mesmo, anunciado por Sócrates e a correção dos erros, exortada por Jesus:
“Eu vos digo a fim de que vós vos conheçais. Pois o reino dos céus se assemelha a espiga de trigo que cresceu em campo, e chegada à maturidade, semeou seu fruto e novamente encheu o campo para outro ano. Vós também, apressai-vos em segar para vós uma espiga de trigo, a fim de serdes preenchidos pelo reino.” (124)
Outro aspecto que reforça a rejeição do ser humano em se tornar consciente do seu erro acerca do assassinato de Jesus, é o fato de que ele - o ser humano –ainda vive na lógica da Idade Média, que é a exaltação do sacrifício.(125) E aí reside o seu erro, cristalizado como a estátua de sal em meio à destruição de Sodoma e Gomorra.
Na exaltação do sacrifício de Jesus Cristo pela humanidade, a Igreja considera que não pode mais haver nenhum sacrifício, pois “cada novo sacrifício seria uma nova crucificação de Cristo.” (126)
Se de fato o sacrifício de Jesus Cristo redimiu a humanidade por que ela não norteia a sua vida pela ética do amor deixada por Ele? Por que ainda há miséria e sofrimento de toda ordem?
Entre tantas respostas que podem surgir a este questionamento, indicamos uma: a teologia medieval fundamenta-se no sacrifício. Por isso em vez de buscar um mundo sem sacrifícios, exige novos.
Em Hinkerlammert (1995) (127) encontramos:
“A idéia de que os que crucificam Cristo o abandonam e nele não crêem, recebe desta forma um fundo extremamente agressivo. Nunca mais Cristo deve ser crucificado. No entanto, eles voltam a crucificá-lo. Transformam-se, portanto, em inimigos de Deus, aos quais se censura que estão golpeando, flagelando e ofendendo a Cristo. Não deve haver outro sacrifício, e, não obstante, eles sacrificam de novo a Cristo.”
Em Hebreus, capítulo 6, versículos 4 a 6, encontramos:
“De fato, os que uma vez foram iluminados – que saborearam o dom celeste, receberam o Espírito Santo, experimentaram a beleza da palavra de Deus e as forças do mundo que há de vir – e, não obstante, decaíram, é impossível que renovem a conversão uma segundo vez, porque de sua parte crucificam novamente o Filho de Deus e o expõem às injúrias.”
Se de fato, o sacrifício de Cristo foi necessário por que então a Epístola aos Hebreus exorta a uma segunda conversão para que não se sacrifique novamente o Filho de Deus?
Outra indicação contra os sacrifícios está em Isaías, Capítulo 1, Versículos 10-17:
Se Deus repudia dessa forma os sacrifícios de animais feitos em “sua honra” (128) , muito mais veio a repudiar o sacrifício do Seu Filho Divino. Se Ele repudia o sacrifício de animais em seu “louvor”, por que haveria de entregar o Seu Filho daquela forma? Se Ele cuida tão bem dos homens pecadores e decaídos e ainda considerados de pouca fé, como não cuidaria mais ainda de Seu Filho? Por que o condenaria a morrer em nossas mãos? Valemos mais que o Seu Divino Filho? Decerto que não!
A reação de toda a natureza ao assassinato de Jesus, citado em Lucas, Marcos e Mateus, demonstra que foi uma ação criminosa da humanidade e, portanto, carregada de culpa. Vejamos então:
“Era já quase meio-dia e houve trevas sobre toda a terra as três horas da tarde, tendo o sol desaparecido. Então o véu do santuário se rasgou pelo meio; Jesus deu um grande grito; ele disse: Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito. E com essas palavras, expirou.” (129)
Tendo o véu do santuário se rasgado por causa da morte de Jesus, isso demonstra que a humanidade não só desafiou o poder do Criador, mas reafirmou que não queria ouvir a sua Palavra. Na verdade, isso significa que, por esse ato, os seres “humanos” afastaram-se cada vez mais Dele. Não podemos conceber que, a partir da morte de Jesus e ao rasgar-se o véu, a aliança com o Altíssimo, tenha se fortalecido, como quer fazer crer boa parte das igrejas.
A liberdade da Igreja Medieval consistia em evitar que novos sacrifícios fossem realizados, para que o “reino” se implantasse na Terra. De que reino estamos falando? Um reino temporal, inserido na História e não um reino transcendente. Esse reino temporal inicia-se quando a Igreja se alia ao poder político e objetiva iniciar um “reino cristão”; isso se reflete historicamente pela legitimação do sacrifício dos “hereges” e “infiéis”, considerados inimigos da fé. Nesse período, vemos a consolidação do seu poder temporal e institucional através da ênfase aos sacrifícios.
A liberdade da Igreja está alicerçada na sua autoridade para julgar e condenar. Ela possui a autoridade de trazer de volta os sacrifícios humanos; nisso se constitui sua autoridade/liberdade.
Possuía, ainda, a liberdade de interpretar as escrituras de acordo com seus interesses e ignorar a Lei do Amor e a condenação dos sacrifícios (Não matarás!). Ignora também Isaías. (130)
Consideramos, pois, que a liberdade da Igreja se torna concreta por sua autoridade. Porém, assim não deveria ser; ela poderia se orientar pelas Leis da Criação. Não somente ela, mas toda a humanidade.
Sendo, pois, as igrejas um reflexo da própria humanidade, podemos entender por que a maioria delas comete crimes em nome do Altíssimo.
Em vez de se apoiar na autoridade/liberdade, a Igreja poderia ter se fundamentado no Amor/Liberdade. Se assim tivesse feito, não teria se transformado na igreja que persegue, mas na Igreja que cuida, já que o Amor pressupõe cuidados.
E ela exerceu a sua autoridade/liberdade até o fim, a ponto de, na Idade Moderna, reacender as fogueiras da Inquisição.
Essa foi a igreja contra a qual se insurgiu Giordano Bruno; uma igreja que, para efetivar a “liberdade”, se utiliza do princípio de autoridade e do dogmatismo. Ao princípio autoridade/liberdade, Giordano Bruno opõe Verdade/Liberdade.
Para ele a única forma de ser livre era encontrando a Verdade, que está inscrita na natureza e no coração dos seres humanos.
A Verdade que faz daqueles que a encontram bem-aventurados, como afirmou Jesus; que está presente na natureza, porque ela guarda a Palavra e reflete a Vontade do Criador, ao contrário dos seres humanos que procuram fazer não a Vontade Divina mas a própria vontade.
Dentre todas as palavras proferidas pelo Mestre, relembramos a citação conhecida como o Sermão da Montanha. Mais uma vez a indicação da natureza, como receptáculo do Divino. A natureza que guarda em si mesma, a beleza, a pureza, a adequação de seu atuar de acordo com a Lei Divina.
“Bem aventurados aqueles que aceitam com simplicidade o que é verdadeiro, pois deles é o Reino dos Céus.
Não cismeis e não sutilizeis acerca de minhas palavras, pois assim jamais chegaríeis a um fim. Não faleis aos vossos semelhantes daquilo que estas palavras despertam em vós; porque sendo eles diferentes de vós em sua espécie, falariam tão somente daquilo que é próprio a eles e assim os confundiriam!
Bem-aventurados os homens que são pacientes e afáveis, pois eles dominarão a Terra.
Aprendei a esperar e aprendei a ser sóbrios, então tereis em vós o poder para dominar outros. Vossa própria integridade ensinará os outros!
Bem-aventurados os que têm de curtir sofrimento, pois serão consolados!
Quando pensardes estar sofrendo injustamente, volvei o olhar para o vosso próximo e reparai todo o mal que lhe fizestes algum dia, mesmo julgando ter razão! Criatura alguma tem o direito de fazer outra sofrer. Se neste ponto fordes puros, criatura alguma vos fará sofrer injustamente; sentir-se-ão envergonhados diante de vossa grandeza espiritual!
Bem-aventurados os misericordiosos, pois eles alcançarão misericórdia!
Não vos enganeis, entretanto, praticando falsa misericórdia, mas considerai se a vossa boa vontade é verdadeiramente proveitosa aos homens!
Bem-aventurados os pacíficos, pois serão denominados filhos de Deus.
Para possuir a paz íntima, para transmiti-la aos seus semelhantes, é necessário tal pureza de alma, que poucas criaturas, quando ainda na Terra, poderão ser denominadas filhos de Deus. Uma criatura que encerra em si a verdadeira paz que provém do Divino, será para os seus semelhantes bálsamo e alívio, curará as suas feridas apenas com a sua presença!
Bem-aventurados os que sofrem, por amor à justiça, pois deles é o Reino dos Céus!
Sofrer pela justiça significa sofrer pela verdade. Arcar com tudo, tudo vencer, para poder permanecer verdadeiro, é o que de mais árduo existe para o homem durante a sua peregrinação. Significa tudo: viver com justiça, viver com sinceridade até nas mínimas coisas. Custará muita luta, muito sofrimento, mas será viver a vida, vivê-la verdadeiramente, durante toda a sua peregrinação. É assim que deve ser o seu proceder para que lhe seja franqueado o caminho que leva ao Reino dos Céus.
Bem-aventurados os puros de coração, pois eles verão Deus.
Estas palavras encerram tudo, encerram o que de mais elevado o homem pode alcançar: ver Deus em suas obras. O seu coração deve ser puro, límpido como um cristal, para que nenhuma turvação o impeça de ver. Ver é reconhecer! O homem cujo coração é puro, tê-lo-á conseguido; ele poderia ascender à Luz.” (131)
A idéia de Liberdade aqui apresentada nos remete a uma reflexão sobre a escolástica e o pensamento aristotélico. Podemos considerar que os modernos travaram uma longa controvérsia com o aristotelismo e que Giordano Bruno não foi uma voz solitária, como algumas vezes nos faz crer o pensamento tradicional.
Em Rossi encontramos: “Renovou-se na Grécia a soberba pretensão de Adão e os homens perderam mais uma vez o seu domínio sobre a criação.” (132)
Deparamo-nos com as seguintes categorias: queda, pecado, razão e dominação. Qual a soberba de Adão que se renovou na Grécia ou mais precisamente em Aristóteles? A busca do saber em si mesmo, desprovida de intuição ou da atuação da Força Divina. Não é senão o homem, que fecha as portas do seu intelecto à atuação da Graça.
“É necessário ouvir a voz da natureza!” – Nessas palavras proferidas por Giordano Bruno havia também um combate ao aristotelismo que situa a razão como única explicação do mundo. A Escolástica, ao buscar fundamento em Aristóteles, construiu – segundo Rossi –, uma “teologia racional”, abandonando o grande livro da natureza, na qual o Criador manifesta a sua potência.(133)
A razão, vista como um fim em si mesmo, transformou-se ao longo da história humana em um instrumento de justificação do poder de uns sobre outros: o direito à propriedade, o direito de submeter ao capricho e à vontade humana toda a natureza. Dominar é a expressão maior da razão instrumentalizada, da razão como um fim em si mesma.
Vivemos um momento em que os homens destroem a si mesmos e a natureza. Um período de barbárie, que pode ser definido pela ânsia do poder político e econômico, a adoração do dinheiro e da propriedade, justificando a destruição, tanto da natureza humana, quanto da natureza física. A partir do endeusamento da razão instrumental ou raciocínio desprovido de intuição (Graça Divina), explica-se a destruição causada pelo ser humano no decorrer de toda a sua História. É a razão instrumentalizada que afasta o homem da natureza e do Criador. Ao dominar todas as formas de vida, matando, escravizado e torturando, o homem não pode se aproximar do Sumo Bem.
Em vez de adaptar o seu comportamento às Leis Universais, os seres humanos, guiados pela razão instrumental, criaram um “deus” que satisfizesse os seus desejos e não se colocasse contra os seus interesses. Que aceitasse os sacrifícios de animais, se nos reportarmos à Antigüidade, ou ainda sacrifícios humanos, como se deu na Idade Média. Tudo, em sua “honra” e glória”!
Pensamos no Altíssimo, como um ser com qualidades humanas, no lugar de buscarmos uma identificação com tudo o que é natural. Adaptamos a Verdade Revelada pelos grandes profetas e místicos aos nossos interesses políticos e econômicos. No que se refere às religiões, nos limitamos a criar instituições.
Não é essa a razão da crítica à escolástica? Sua instrumentalização a partir de Aristóteles? Explicar a Potência Divina através da razão instrumental não será o caminho mais fácil para d´Ele se afastar?
Giordano Bruno, ao repudiar o dogmatismo, a ortodoxia e o aristotelismo, o fazia não em seu nome, não de forma isolada de outros pensadores, mas expressou o espírito do seu tempo e se deixou guiar pela Voz do Espírito (intuição ou Graça Divina). Para ele, o aristotelismo representava tudo o que é morto e seco no Universo. Confrontava-se com a escolástica, que identificava a Perfeição com o motor imóvel. Para Bruno, o Universo representava um Todo no qual nada é imóvel, muito menos a Terra. Esse movimento, porém, não era apenas de natureza mecânica, mas expressava um princípio anímico, inerente a todos os seres.
Abbagnano considera, a partir da explicação tomista, que “o aristotelismo torna-se flexível e dócil a todas as exigências da explicação dogmática…” (134) A partir dessa interpretação podemos compreender a divergência de Bruno com a escolástica, já que este combatia o dogmatismo como forma de reafirmação da Verdade.
Torna-se lógico concluir que o dogmatismo não se coaduna com a Verdade, pois esta pressupõe Liberdade. Como pode a escolástica expressar essa liberdade, se em sua essência encontra-se a explicação dogmática?
Como enfatiza Abbagnano, “Para além desse ponto, só existe a verdade sobrenatural da fé. Integrar a filosofia e a fé, a obra de Aristóteles e a verdade revelada – por Deus ao homem e de que a Igreja é depositária, - é tarefa a que S. Tomás se propõe” (135)
A realização dessa tarefa supõe uma separação entre Filosofia e Teologia; entre o pensamento lógico e a explicação do mundo.
Não seguiremos o caminho da discussão dos objetos das respectivas ciências ou da importância de cada uma delas para a explicação do mundo e do Criador. Pretendemos eleger como base da discussão a idéia de “separação”, que se traduz numa “compreensão” do mundo, dos seres vivos e do planeta, isolados da Totalidade. De seres humanos separados da natureza e das Leis da Criação. Essa atitude, representa uma ruptura com o sagrado, e com Lei Natural Universal, à qual deveríamos estar ligados de forma livre e consciente, o que nunca traria a sensação de submissão que muitos sentem, principalmente no que se refere à religião institucionalizada.
Ao nos “separarmos “ do Todo, separamos também religião, ética, política e vida. Nada se relaciona. Isso torna as coisas mais difíceis do ponto de vista social, pois não pressupõe ligação com a Totalidade. Do ponto de vista individual, há uma tendência a acomodar a religião, a ética, a política aos nossos desejos.
Há, portanto, o fortalecimento dos anseios individuais em detrimento dos coletivos; do ego em detrimento das ações altruístas; da mentira como uma substituta da Verdade; do dogmatismo como substituto da liberdade e das leis humanas como substitutas da Lei Divina.
Em detrimento da Verdade Universal, nos apegamos à “verdade” da religião institucionalizada, que em vários momentos históricos buscou a sua expressão na violência, na total ausência da liberdade e na negação do Amor.
Tudo está interligado. O Criador está fora do mundo, e ao mesmo tempo dentro dele, através de suas Leis. Ele não se confunde com o mundo, mas a ele se revela através da natureza e dos seres vivos. A Terra é um organismo vivo! Desta forma Bruno compreendia a ação do Criador sobre o mundo. Embora não possamos compreendê-Lo, podemos identificá-Lo e perceber a sua presença. Podemos exalta-Lo, a partir de suas obras. Ele está presente no mundo, - mas não é o mundo; está acima de tudo; é exaltado e dignificado; paira acima de toda a compreensão humana!
Desta forma, tudo o que vive revela a sua Força Criadora: os animais, os seres humanos, as estrelas, os planetas, os sóis. Imaginar a Criação sem movimento é negar a própria vida.
Como Giordano Bruno poderia aceitar a Escolástica e a sua visão acerca do Criador?
Bruno não se comprazia apenas em combater o “pedantismo dos doutores” que tinham em Aristóteles o seu mestre, mas também em combater fortemente o dogmatismo. Este se constitui na justificativa de toda a violência gerada pelos sistemas religiosos na história da humanidade terrena.
Bruno compreendia o Universo como saído das Mãos Divinas, um Todo orgânico, constituído por inumeráveis planetas. Estes, por sua vez, seguindo o movimento que lhes é próprio, se sucedem ininterruptamente na infinitude universal.
Eis as suas palavras:
Sobre os corpos infinitos que povoam o espaço e a ligação que há entre os mesmos, constituindo a unidade:
“ (…) confirmamos que existem terras infinitas, sóis infinitos e éter infinito; ou, segundo as afirmações de Demócrito e Epicuro, existem o cheio e o vácuo infinitos, um ínsito no outro. E existem diferentes espécies finitas, umas contidas pelas outras e uma ordenadas para as outras. E todas essas espécies, mesmo diversas, concorrem todas para a construção de um inteiro universo infinito, e para a construção de infinitas partes do infinito, pois de infinitas terras semelhantes a essa se origina, em ato, uma terra infinita, não como uma só entidade contínua, mas como uma unidade constituída pela inumerável multidão delas.” (136)
Sobre o movimento que se opera em todos eles, o que contribui para a infinitude do Universo:
“Todavia sendo o universo infinito e todos os seus corpos transmutáveis, consequentemente, todos difundem sempre partes de si e sempre a eles voltam, emitem algo próprio e recolhem o que é alheio.
Não considero coisa absurda ou não conveniente, pelo contrário, muito possível e natural, que existam transmutações finitas que podem afetar um sujeito; e que partículas de terra vagueiem pelo éter e se aproximem, através do espaço imenso, quer de um corpo quer de outro, da mesma maneira que podemos ver as mesmas partículas mudar de lugar, de organização e de forma, enquanto permanecem ainda perto de nós.
Do que se conclui que, se esta terra é perpétua e eterna, não o é pela consistência das suas próprias partes e dos seus próprio indivíduos, mas pela vicissitude de outros que ela difunde e de outros que lhes sucedem no lugar daqueles; de forma que, embora possuindo sempre a mesma alma e a mesma inteligência, o corpo sempre muda e se renova nas várias partes. (…) pois estamos continuamente em transmutação, a qual faz com que cheguem a nós continuamente novos átomos e de nós partam aqueles anteriormente acolhidos." (137)
O pensamento bruniano confirma a Unidade e a Infinitude do Universo (porque composto de inumeráveis mundos), tendo o movimento como princípio fundamental. Não é pois de se estranhar que esta categoria esteja presente na filosofia hermética que tanto influenciou Bruno.
A separação que imaginamos existir é produto do intelecto desprovido da Intuição (Graça). Tudo está interligado. Essa idéia de “separação”, reforçada no decorrer dos tempos, desviou os seres humanos da Lei Universal, levando-nos a pensar a vida material desligada da vida espiritual; no homem desligado da natureza; na natureza desligada da Potência Divina, podendo aquela ser objeto de exploração e domínio.
A idéia de totalidade também está presente nos escritos apócrifos:
“Eu sou o Todo: o Todo saiu de mim e o Todo chegou até mim. Se rachardes a madeira, eu estarei lá; se erguerdes a pedra, lá me encontrareis.” (138)
Estas palavras revelam a Unidade de todas as coisas, a ligação constante entre o Céu e a Terra; entre o que está em cima e o que está embaixo.
Sobre movimento e repouso encontramos na mesma obra:
“Se eles vos dizem ‘De onde vindes?’, dizei-lhes: ‘Nós viemos da luz, do lugar onde a luz nasceu dela mesma; ela (se ergue) e revelou-se em sua imagem’. Se eles vos dizem ‘Quem sois vós?’, dizei-lhes: ‘Nós somos seus filhos, pois nós somos os eleitos do Pai Vivo’. Se eles vos perguntam: ‘Qual é o sinal do vosso Pai que está em vós?’, dizei-lhes: É movimento e repouso.’ ” (139)
Tudo está no Todo! Não seria esse o momento de voltarmos a discutir as tradições antigas, principalmente as que tratam o Universo e a Criação com uma visão de totalidade? Não seria o tempo de revisarmos alguns dos conceitos que temos como verdade absoluta, reconhecermos os erros históricos dos sistemas políticos e religiosos e darmos um passo para uma mudança de paradigma?
Rever os conceitos e os modelos de comportamento que nos separam da Criação, da Bondade e do Amor Divino; rever as leis que regulam as relações sociais e o direito de posse sobre o mundo e sobre as pessoas, as quais só têm gerado desequilíbrio.
Abandonar o que está ultrapassado e retomar a caminhada a partir de conceitos morais e éticos que nos liguem à Harmonia Universal e nos livrem do tempo de insegurança e violência no qual nos encontramos.
Abandonar tudo? Evidente que não, mas apenas os modelos de comportamento que nos conduzem ao egoísmo, à luta de todos entre todos e em relação ao descaso à vida e ao Universo.
Tudo o que vive merece ser cuidado. Que a humanidade se renove e que possa viver de acordo com as Leis da Criação.
Que seja essa a sua oração para o novo milênio:
“Acreditamos que a nossa propriedade mais preciosa é a Vida.
Acreditamos que mobilizaremos todas as forças da Vida contra as forças da morte.
Acreditamos que a compreensão mútua conduz à mútua cooperação; que a mútua cooperação conduz à Paz; e que a Paz é o único modo de sobrevivência da humanidade.
Acreditamos que, em vez de desperdiçar, preservaremos nossos recursos naturais, que são a herança de nossos filhos.
Acreditamos que evitaremos a poluição do nosso ar, da nossa água e do nosso solo, precondições básicas da Vida.
Acreditamos que preservaremos a vegetação do nosso planeta: a relva humilde, que chegou há cinqüenta milhões de anos, e as árvores majestosas, que chegaram há vinte milhões de anos, a fim de preparar o nosso planeta para a humanidade.
Acreditamos que só comeremos alimentos frescos, puros, naturais e integrais, sem substância químicas e sem processamento artificial.
Acreditamos que levaremos uma vida simples, natural e criativa, absorvendo todas as fontes de energia, harmonia e conhecimentos, dentro e em torno de nós.
Acreditamos que o aprimoramento da vida e da humanidade no nosso planeta deve começar por esforços individuais, assim como o todo depende dos átomos que o compõem.
Acreditamos na Paternidade de Deus, na Maternidade da Natureza e na Fraternidade do Homem.” (140)