Em todos os períodos da história humana, podemos encontrar narrativas acerca dos seres da natureza, chamados de entes da natureza, ou enteais, A narração que segue, trata da atuação de Prometeu, apresentada por Roselis Von Sass:
“Ele trouxe o fogo do Olimpo em forma de bolas. Com enorme séqüito foi a todas as regiões reservadas para os enteais da parte mais fina e da parte mediana da matéria grosseira, bem como da matéria fina, tendo colocado por toda a parte as bolas de fogo nos pedestais de metal erigidos para tal finalidade.
(…) Indescritível foi o júbilo dos povos enteais ao ver as colossais colunas de fogo em suas regiões, cuja luz vermelha parecia ocupar o mundo todo. A respeito das bolas de fogo, há uma circunstância toda especial. Quando Zeus, o senhor do Olimpo, visita os extensos reinos da parte olímpica, são levadas antecipadamente as bolas de fogo, de modo que por toda a parte as altas colunas de fogo, com sua luz flamejante, anunciem a sua vinda ou sua presença. O fogo olímpico é inseparável de Zeus. É uma parte de sua irradiação, que se condensou e se manifesta como elemento ardente… Todos os povos enteais conheciam o significado das bolas de fogo: seu amo achava-se a caminho para auxilia-los em sua grande aflição. Nunca tal coisa havia acontecido antes. Prometeu, contudo, informara-os de que Zeus, o senhor de todos eles,lhes enviara o fogo sagrado do Olimpo para proporcionar-lhes coragem e força, a fimde preserva-los, e poderem resistir aos inimigos.
(…) Prometeu é um titã e, como tal,de inimaginável tamanho e forç masculina. Quando aparece em alguma parte, vem sempre acompanhado de um grande séqüito de águias gigantescas, de cor vermelha.” (111)
Continuamos a nossa discussão sobre a atuação do filósofo, junto à Igreja Católica e Academias Universitárias. A natureza do seu pensamento e suas idéias avançadas para o contexto da época, foram consideradas, uma transgressão. Trataremos então dessa transgressão ao pensamento institucionalizado – seja religioso ou filosófico. Constitui-se numa verdadeira luta contra a intolerância, o preconceito e a ignorância. Para Giordano Bruno, é profundamente injusto submeter-se, sujeitar-se ou crer apenas por costume. É algo irracional conformar-se com uma opinião pelo número de pessoas que a possuem. (113)
Ele foi preso, torturado e condenado como inimigo da fé cristã. De fato, era algo audacioso rejeitar todo e qualquer princípio de autoridade, negar o dogma da Transubstanciação, da Trindade (a partir da visão católica) e defender a idéia da pluralidade dos mundos habitados.
Voltaremos nosso olhar para a modernidade, mais precisamente o período Renascentista. Caracterizado pelo florescimento das ciências, das artes e filosofia, mais que um movimento cultural, constituiu uma ruptura com a arte, religião e filosofia medievais.
Nesse contexto, identificamos Giordano Bruno como um dos grandes pensadores da Renascença e transgressor da visão de mundo oficial. Nessa discussão, reside o objeto do nosso trabalho: a transgressão de Giordano Bruno foi um ato político ou uma mera desobediência religiosa?
A rejeição do princípio da autoridade nos faz compreender que, para ele, a Verdade a ser conhecida não é propriedade do ser humano, tampouco de autoridades; para encontrá-la, basta escutar a voz da natureza.
A não-submissão do pensamento à ortodoxia religiosa e à filosofia aristotélica – que veiculava a visão de mundo da época -, é um traço característico da luta ideológica do filósofo.
Em linhas gerais, Religião e Filosofia tinham como fundamento a astronomia de Ptolomeu, que compreendia a Terra como um ponto imóvel e privilegiado no centro do Universo. Bruno, ao contrário, defendia a constante transformação do Universo e via o mundo como realidade material e espiritual, sem, entretanto, colocar alguma oposição entre os dois termos.
Ao mesmo tempo em que negava a visão filosófica e religiosa baseada no dogma, na intolerância e na submissão do pensamento, reafirmava o mundo não como realidade concreta e acabada, mas em vias de transformação. Foi, também, o filósofo da afirmação. Considerava que todo o Universo e seus corpos são transmutáveis; para ele nada era imóvel no universo.
“ (…) a terra não é mais centro do que qualquer outro corpo mundano, e certos e determinados pólo em relação a qualquer ponto do éter e espaço mundano; e o mesmo acontece com todos os outros corpos, os quais, sob diferentes pontos, todos são ao mesmo tempo centros, pontos de circunferência, pólos, zênites e outras coisas mais. Portanto, a terra não se encontra, em absoluto, no meio do universo, mas só em relação a esta nossa região.” (114)
Reafirmava ainda a existência de outras terras e sóis infinitos (porque inumeráveis). Considerava que todas as espécies colaboram com a construção de um Universo Infinito, já que de infinitas terras semelhantes à nossa se originam outras terras e que todos os corpos são passíveis de transformação: “todos difundem parte de si e sempre a ele voltam, emitem algo próprio e recolhem o que é alheio.”(115)
Somente a imaginação nos dá a ilusão de que a nossa Terra é o centro do universo, que é fixa e imóvel. A razão, ao contrário, nos dá a certeza da existência de outros mundos:
“ (…) não se opõe à razão a existência de outras terras, mesmo que elas se movimentem ao redor deste sol, e não se manifestem a nós, seja por causa da maior distância, seja por causa do menor volume…” (116)
Encarcerado em condições precárias, numa cela infecta e de proporções inferiores ao seu tamanho, Bruno recebia a recompensa pela sua ousadia. É visto como um transgressor do pensamento filosófico e da religião, já que reafirma a filosofia dos Caldeus, dos Egípcios, dos Órficos, dos Pitagóricos e dos Magos, em contraposição à filosofia que nos convém ou que convém aos poderes constituídos.
Desta forma, ele se contrapõe aos doutores de Oxford e reafirma não só a Filosofia Antiga, como também outros filósofos mais próximos do seu tempo, como Alberto Magno, Nicolau de Cusa e Nicolau Copérnico.
Ao considerar a idéia da Transcendência e da Imanência, Bruno ergue mais um ponto de discordância com o pensamento de seu tempo.
O Criador está fora do mundo, por não se confundir com ele; e ao mesmo tempo a ele se revela através de seus atributos. É a mente por sobre as coisas; a mente que tudo ordena para o Bem e para o Belo; está acima das medidas e concepções humanas. É Excelso e reina acima de toda a contingência material!
Ele dava aos homens do seu tempo e aos que viessem depois a liberdade de questionar a idéia repassada por séculos e séculos, pelas religiões institucionalizadas. O filósofo, nos conduziu por novos caminhos: fez-nos entender que a percepção da Divindade, poderia ser diferente daquela que nos foi apresentada como imagem ideal. Entretanto, devemos considerar, que independente da interpretação, - ortodoxa ou heterodoxa -, estamos ainda bem distante de compreender o Criador de todos os mundos e Magnífica Força que nos mantém vivos. Qualquer que seja a compreensão, é ainda profundamente limitada.
Bruno foi pressionado para silenciar. É necessário silenciar diante da autoridade para preservar a própria vida. Mas ele recusava a calar-se. Sua convicção o colocava no centro das desconfianças eclesiásticas. Foi muitas vezes acusado de sofista ou criador de novas seitas. Lamentava-se muitas vezes e sentia-se incompreendido. Considerava-se um estudioso das coisas da natureza; estava preocupado com o alimento da alma, com a cultura do espírito e do intelecto. Seu objetivo era deixar algum fruto útil do seu trabalho, como a semente faz ao campo.
Queria abrir o sentimento aos que estivessem privados da Luz. Procurou destronar a idéia de uma ‘verdade’ absoluta e dogmática, divulgando os princípios da Filosofia Antiga. Encontramos aqui o resgate da tradição para se contrapor ao silêncio imposto pelo poder constituído.
Bruno não falava por si mesmo, mas pelos Antigos. Quem ousava dizer que eles estavam errados? A experiência dos Antigos contestava a idéia de uma verdade acabada. Para Bruno, o resgate da Tradição era condição primeira para continuar falando.
E continuava: na cela, no tribunal, no caminho que trilhou até chegar ao local da execução. Como uma tentativa última e desesperada, ele bradava aos quatro cantos as suas verdades e convicções. Foi despojado de suas roupas e amarrado; teve a língua presa para que não pudesse falar…
Declarado herege impenitente, pertinaz e obstinado, Bruno foi proscrito da Igreja Católica, como um anti-cristão. Mesmo tendo consciência sobre a sua sorte, não conseguia calar. Recorria ao poeta Tansillo, para superar o sofrimento e a angústia que dilacerava sua alma: “Compreendo muito bem que cairei por terra morto; mas que vida se pode igualar a esta minha morte?” (117)
No preâmbulo da obra O Infinito, o Universo e os Mundos, há uma reflexão sobre as perseguições que vinha sofrendo; estava plenamente consciente de que suas idéias não agradavam a todos ou talvez à maioria. Em meio às perseguições, resolveu não desistir.
Não se considerava o instaurador de uma grande e única verdade. Sua meta era a liberdade de pensamento e a tolerância. Afirmava que se houvesse erro em suas palavras, este por certo não era intencional; ao falar e escrever não o fazia por amor à vitória em si mesma, mas por amor à Verdadeira Sabedoria. Por isso sofria e se angustiava.
Em fevereiro de 1600, Giordano Bruno foi levado ao Campo das Flores e queimado em cumprimento à sentença ditada pelo Tribunal da Inquisição. Era uma condenação de suas idéias e obras. Antes do século XVIII, nenhuma delas foi traduzida. Os países católicos silenciaram…
Bruno foi condenado à morte, mas sua voz continua a ser ouvida: não se pode mais falar em Infinitude do Universo, Pluralidade dos Mundos ou na idéia da Transcendência e Imanência do Ser Criador, sem que isto nos lembre de sua trajetória.
Quando a intolerância se faz sentir, quando novas fogueiras voltam a arder ou quando novos tribunais são erigidos, vê-se aí a sua imagem. Relembrando Prometeu, o fogo pode ser visto como símbolo da liberdade, da vitória sobre a intolerância e sobre a violência. Do ponto de vista dos hereges, é o símbolo da transgressão às religiões dogmáticas. O fogo do amor e da esperança, expressou-se na atuação de Prometeu. Essa era a missão do Filósofo: trazer esperança e luz às consciências!
O fogo que consumiu Giordano Bruno foi também o “amor heróico” pela Verdade, que está ligada à tolerância e à reafirmação da liberdade. A busca de uma realização interior que deveria ser dividida com todos, já que o filósofo não fala para si, nem para uma única pessoa, mas para a humanidade.
A angústia do não falar, do silêncio imposto, pesa bem mais que a própria condenação. Por isso, diante dos inquisidores, Bruno considera: “tendes mais medo de pronunciar a sentença, que eu a escutá-la!”
Qual a razão da insubmissão aos tribunais eclesiásticos?
Não submeter-se é negar a autoridade e um plano predeterminado para os seres humanos. É a reafirmação da individualidade e do livre-arbítrio, ainda que seu desdobramento esteja voltado para uma coletividade (O filósofo não escreve e não fala para si mesmo, mas para outras pessoas). Esse exemplo é evidenciado em Prometeu: de uma atitude individual – a decisão de trazer o fogo aos que estavam privados de luz, – seguiu-se um ato coletivo – todos saberiam que havia esperança e razão para lutar.
Na atitude do filósofo, vemos,- a partir de uma decisão individual -, um ato político no rompimento com a visão de mundo aristotélica e consequentemente uma superação da ciência e religião medievais. Na verdade, ao defender uma nova Cosmologia (Heliocentrismo, Infinitude do Universo, Pluralidade dos Mundos), Bruno propunha uma reforma científica e religiosa. Tornava-se necessário admitir outras concepções. Tal atitude conduziria, inevitavelmente, à liberdade e à tolerância.