A apostasia consiste, essencialmente, numa tentativa de reabilitação de cultos considerados pagãos, porque não cristãos. Considerada um crime, foi imputada a Bruno pelo Santo Ofício.
A expressão “reabilitar um culto pagão” significa, em última análise, admitir que, após o Cristianismo, outras crenças não mais seriam aceitas, ainda que elas fossem anteriores à cristã. De outra forma, pode significar “buscar um novo sentido”.
Que cultos pagãos Giordano Bruno tentou “reabilitar” ou dar-lhes um novo sentido? Que novo significado foi estabelecido para esses cultos?
YATES (1964), confirma a forte ligação do Filósofo com o hermetismo – vulgarmente identificado como magia –, de onde pode ser justificada a imputação do crime de apostasia.
Em A Causa, o Princípio e o Uno, nos deparamos com várias citações de Bruno acerca de Orfeu, Pitágoras, Platão, Empédocles e Plotino e suas concepções sobre a Inteligência Divina (Deus), conforme discutido neste trabalho.
A primeira indicação dada por Bruno se refere ao Platonismo, que identifica o Entendimento Universal (Inteligência Divina) como o forjador do mundo, ou aquele que tudo produz. Os cabalistas o denominam de semeador; para o Orfismo, é o olho do mundo, ou aquele que tudo vê (o interior e o exterior). Para Empédocles, é o princípio da diferenciação, por causa da geração e corrupção das coisas. Por fim, cita Plotino, para quem o entendimento é pai e genitor.
Todos esses Atributos, longe de negarem a concepção cristã, nela se encontram. Para os cristãos, Deus é o Criador do Mundo, é d’Ele que tudo provém e para onde tudo converge. Onde pois o crime de apostasia? Considerando essa interpretação, como justificar o poder exercido pelo catolicismo e pretendido pelas igrejas reformadas?
Os inquisidores encontravam-se diante de duas dificuldades: admitir que a Verdade é una, podendo se expressar de inúmeras formas, através do tempo e do espaço; e que o Cristianismo não detinha a verdade absoluta, mas apenas reafirmava as interpretações anteriormente intuídas e percebidas.(98) A única forma de evitar esse desfecho seria acusá-lo de apostasia.
Consideraremos, agora, o crime de heresia imputado a Giordano Bruno. Concebemos como herege aquele que se desvia das orientações eclesiais. Essa idéia, por demais reproduzida e não discutida, passou a ocupar “um lugar” no inconsciente dos fiéis católicos, sendo aceita de forma tácita.
Mas, para a Igreja, o que é heresia?
Consultando o Directorium Inquisitorium (99), vemos que o herege é aquele que escolhe outro caminho que não o indicado pela Igreja; escolhe outra forma de expressar a sua crença. É aquele que reflete, pois escolhe. Torna-se o portador de uma visão diferente daquela que lhe foi imposta pelas instituições representativas do poder religioso (igrejas), filosófico (academias) ou politico (Estado).
O “herege” é livre para fazer a sua escolha, já que ela é fruto de uma reflexão seguida de uma ação. Há uma coerência no pensamento considerado herético, pois que é fruto de uma formulação, que se traduz no agir. Para ele, a liberdade de pensamento e de expressão são condições fundamentais na escolha. Nesse contexto, podemos concluir que o herege vivencia liberdade.
O que reafirma o Directorium Inquisitorium?
No Capítulo I – Jurisdição do Inquisidor” – é indicada a “noção de heresia”. Vem do verbo “eleger” (eligo); equivale a elesis. “Heresia” viria então, de “eleição…”
Mais adiante:
“… o herético, ficando entre uma verdadeira e uma falsa doutrina nega a verdadeira e “escolhe” como verdadeira uma doutrina falsa e perversa. Portanto, é evidente que o herético ‘elege’. ” (100)
Considera ainda:
“Na acepção primitiva, o conceito de heresia não tinha nada de desonroso: “heréticos” eram simplesmente todos os que pertenciam a uma escola filosófica. Mas, hoje, esta palavra é condenável e indigna porque designa todos aqueles que acreditam ou ensinam coisas contrárias à fé de Cristo e de sua Igreja.” (101)
É lógica, e baseia-se nas indicações do Manual, a conclusão de que o herege expressa a liberdade em sua forma de pensar e agir. Uma forma de invalidar esse raciocínio é a afirmação de que a escolha do herege é sempre falsa. E por ser falsa deve ser combatida. Ele nunca escolhe a Verdade; se assim o fizesse não se colocaria contra a orientação da Igreja, que é a representante do Divino na Terra, ou como afirmam os autores do manual, “pertence a Cristo”. Tomar uma posição contrária à que orienta a Igreja implica uma atitude anticristã. Essa conclusão é fundamental para que o conceito de heresia defendido pelos inquisidores tenha uma base lógica. Caso contrário, afirmar-se-ia que o Cristianismo é contrário à liberdade, o que seria um absurdo!
Ao se reportarem à “acepção primeira” do conceito de heresia, os inquisidores referem-se aos gregos, que não a consideravam “desonrosa”. Essa passagem é fundamental para que percebamos o encadeamento lógico do pensamento inquisitorial.
Não se pode negar a História, sob pena de inviabilizar o fundamento legal que se pretendia dar à acusação de heresia, e muito menos negar que os gregos tinham a liberdade como princípio – ainda que somente para os cidadãos. Nem aos “seus” a Igreja reservava esse direito.
Esse foi o caminho traçado pela Igreja Católica e mais adiante pelas igrejas reformadas. A Verdade é própria da Igreja, não cabendo, portanto, a nenhum fiel lançar-lhe alguma dúvida ou questionamento. A Igreja detém a verdade, que lhe foi “conferida pelo Criador”. Ela (a Verdade) não pode ser procurada – como faziam Bruno e outros hereges. Ela deve ser aceita a partir da interpretação católica. A dúvida conduz à heresia; por isso não deve existir. Caso ela surja, deve ser combatida juntamente com o seu portador – o herege.
Na Introdução do Directorium Inquisitorium, Leonardo Boff anota:
“… nessa visão, o portador da verdade é intolerante. Deve ser intolerante e não tem outra opção. Caso contrário a verdade não é absoluta. Só os que não possuem a verdade podem ser tolerantes, consentir a dúvida. Permitir a busca. Aceitar a verdade de outros caminhos espirituais.” (102)
Relembrando a postura da Igreja Católica no Século XVI, percebemos que não há lugar para a tolerância. Os fiéis seguidores da Igreja, e ela mesma, não podem fugir da intolerância consigo e com os outros.
Em relação a si próprio, o fiel não pode jamais ser portador da dúvida; em relação ao outro, deve denunciar à Inquisição. Aquele que mantém a dúvida e busca dirimi-la através de outras explicações que não a única admitida pela ortodoxia, já incorreu no crime de heresia.
Resta somente condená-lo; afastá-lo da comunidade. Nessa “guerra” contra a dúvida e a heterodoxia – que a Igreja passou a identificar com o mal – todos os meios foram utilizados.
O primeiro ato da Igreja Católica foi o aniquilamento da liberdade. Essa condição é fundamental para que ela continue a existir como instituição ligada ao poder temporal. A liberdade torna a Igreja desnecessária. Senão vejamos:
Partindo desse discurso, o inquisidor torna-se necessário e tem como objetivo “defender” a Igreja e a fé cristã, podendo, desta forma, investigar, interrogar, convocar, prender, torturar, sentenciar e conduzir o herege à morte.
Considerando que o primeiro passo é negar a liberdade, o que dizer da origem do Cristianismo, que decorre justamente dela?
O Cristianismo, em sua origem, foi a religião da liberdade; a religião dos que não tinham voz: pescadores, samaritanos, prostitutas, ladrões e que desde a atuação de Jesus, O Cristo, enfrentou a intolerância do Judaísmo.
Consideramos necessário ampliar a discussão acerca da liberdade e da religião, que deverá abranger não só o Cristianismo mas todo e qualquer pensamento religioso que vise a alargar a visão do ser humano acerca do Criador, do Mundo e do Universo, e tenha como fundamento libertá-lo do dogmatismo, da intolerância e do autoritarismo.
Dessa forma, inúmeros credos religiosos presentes na história da humanidade podem ser considerados religiões libertadoras, desde que sejam compreendidas à luz da intuição e não pela razão instrumental. (104)
É esta a grande contradição dos Tribunais da Inquisição: negar a liberdade. Como isso seria possível, sem negar o Cristianismo originário?
Jesus, O Cristo, foi perseguido, interrogado, preso, torturado e assassinado porque a liberdade foi banida do Judaísmo, através da ação autoritária dos escribas, que se consideravam detentores da Verdade Divina. Séculos mais tarde, a Igreja Católica institui os Tribunais da Inquisição, que trilha os mesmo caminhos da moral farisaica, sufocando toda e qualquer atuação que vise a retomar a Verdadeira Religião, baseada na Misericórdia, na Tolerância e na Justiça.
Giordano Bruno em A Causa, o Princípio e o Uno adverte: “Ponderai, ponderai em vosso íntimo e apelai para a inteligência para que vejais que vosso rigor é somente expressão de mania e furor frenéticos. Quem é mais insensato e tolo senão o que não vê a luz?” (105)
A formação dos Tribunais do Santo Ofício que, segundo Leonardo Boff (106), seguem “uma lógica férrea e irretorquível”, revela também que as religiões institucionalizadas, mais precisamente a Igreja Católica, não conseguiram ir além da lógica farisaica, esquecendo-se da advertência: “Se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos Céus”. Na prática, essa lógica se expressa no total desprezo pelo outro, na arrogância e na legitimação do princípio de autoridade.
Os Tribunais da Inquisição tornaram impossível o florescimento da liberdade no interior da religião católica. Os que foram condenados pelo crime de heresia, buscavam desesperada e heroicamente, reafirmar a liberdade, travando um embate histórico/imanente – porque localizado no tempo e no espaço – metafísico/transcendente, por questionar a ortodoxia religiosa e seus representantes.
E a liberdade conseguiu sobreviver aos tribunais e às fogueiras? Como exterminá-la, se ela é a “essência do espírito”? (107) Como atingi-la, se ela é imaterial? Novamente em discussão a imanência e a transcendência. Pode-se aniqüilar o herege, mas não a razão primeira de sua existência, a liberdade. Mas como impedir que ela se espalhe? Restou, aos tribunais da Inquisição, a utilização da violência e do terror, a fim de que o “exemplo” não fosse seguido; resulta daí a severidade da repressão.
Segundo Leonardo Boff, “… a heresia é tida como crime político de lesa-majestade”. (108) O herege é, portanto, um condenado político, devendo ser cassado e perseguido não só pela Igreja, mas também pelas autoridades e fiéis em geral. Estimula-se a delação ainda que ela contrarie o princípio fundamental do Cristianismo: o amor e a solidariedade; ela se torna um instrumento da obediência cega à hierarquia eclesial.
Movidos pela fé cega e pelo medo, os “fiéis” abrem mão da liberdade, própria do espírito humano. O herege, ao contrário, traz em si a consciência de que a liberdade é inalienável e que é um valor do qual não se pode abrir mão, sem deixar de lado a dignidade. Hegel considera que “O Espírito, (…) é aquilo que tem o seu centro em si mesmo. Ele não tem unidade fora de si, mas a encontrou: está em si e consigo. A matéria tem substância fora de si, o Espírito é o ser-em-si-mesmo (a existência autocontida). Mas, a liberdade é precisamente isto. (…) Eu sou livre quando estou comigo. Essa existência autocontida do Espírito é a consciência própria, a consciência de si.”(109)
Claro está que Hegel não se referia aos movimentos heréticos, mas ao desenvolvimento da História Universal. O nosso propósito é identificar a idéia de liberdade contida nas heresias. O que nos conduziu até Hegel foi o fato de considerar que, através da Cristandade, a humanidade tomou conhecimento de que a liberdade é a essência da natureza humana.
Como foi possível, em nome da Religião do Amor e da Liberdade, a instituição da inquisição? Este comportamento tem como expressão a violência física e jurídica contra a pessoa humana e contra os fundamentos do Cristianismo. Para Leonardo Boff, a violência da Igreja Católica se expressa na forma da distribuição do poder sagrado, apenas para um pequeno grupo; a grande maioria é excluída. (110)
Nesse processo de exclusão, há um momento histórico importante: a transformação do cristianismo em religião oficial do Império Romano levou à sua institucionalização e à distinção entre os leigos e o clero, que antes inexistia, visto que os cristãos vivam em comunidades igualitárias e fraternas, com a total ausência de uma hierarquia eclesial. Em tais comunidades, predominavam características pessoais e não institucionais, já que a “autoridade” era moral e não jurídica.
A partir da institucionalização do Cristianismo, surge o clero, que assume as diretrizes da fé e impõe normas e ritos. Nesse processo, se dá a articulação entre o poder religioso e o poder político. A fim de que essa “aliança” se concretize, torna-se necessário impor limites aos “fiéis” e silenciar os “infiéis”. A relação é necessariamente de poder: há os que podem pensar, falar e decidir e há os que devem apenas aceitar as idéias do clero como se viessem do Criador. O poder dos clérigos faz-se divino; desobedecê-lo é desobedecer ao Ser Supremo. Desta forma, justifica-se a violência e a intolerância.
A luta pela liberdade revela o alcance social e político da condenação de Giordano Bruno: como membro da Igreja e como seu fiel seguidor, ele deveria ter se submetido aos dogmas católicos; jamais questionar as guerras religiosas e a imposição hierárquica. Deveria sobretudo admitir que a Verdade se encontra na Igreja e que ela age de acordo com a Vontade Divina.
Por tal submissão, Bruno deveria abrir mão de um direito mais que filosófico, porque humano: a busca da Verdade. Por tal submissão, ele deveria negar a fé que depositava no gênero humano.
Onde estaria, pois, a Liberdade?
Na verdade, em Giordano Bruno, não nos deparamos com um conceito formal de liberdade. Consideramos, entretanto, que toda a sua vida reflete a busca da Verdade, sem a qual a liberdade é impraticável.
Deve-se buscar a veracidade desta ou daquela idéia na razão e na natureza; na mente e no coração, ou seja, na ciência e na adequação desses preceitos à Verdade Espiritual, que se expressa no mundo físico (é o que ele denomina “ouvir a voz da natureza”).