O Brasil deixou de ser colônia em um momento histórico fundamental das transformações políticas, econômicas e sociais, em escala mundial. Depois das revoluções americana e francesa, ocorridas no final do século 18, o capitalismo acelera seu desenvolvimento com a revolução industrial. A partir daí, reformas profundas na política, na economia e na sociedade coincidem com o fortalecimento dos Estados Nacionais, que dão sustentação à expansão do capital, à busca de fontes de matérias-primas e de mercados para a colocação de uma produção de bens de consumo realizada em grande escala.
De modo que a Independência do Brasil, proclamada pelo príncipe português Pedro I em pleno regime escravista, colocava-se na contra mão daquele processo histórico, porque não foi acompanhada de reformas modernizantes profundas. O então príncipe-regente logo se autodenominou imperador, “Defensor Perpétuo do Brasil” e tutor da Nação emergente. Resultado: tivemos uma transição de colônia para independência extremamente conservadora.
A Constituinte, convocada para instituir um Estado Nacional democrático, foi logo dissolvida e a primeira Constituição brasileira outorgada pelo monarca. Nela, admitia-se a existência dos três poderes independentes entre si, mas criava-se a figura do Poder Moderador, um quarto poder, representado pelo próprio imperador. Na verdade, não se instalara um Estado de Direito no nascente Brasil independente, e sim uma ditadura imperial. Reformas? Somente aquelas que serviam aos interesses e propósitos da Corte. O regime escravista iria perdurar ao longo de todo o período monárquico, que durou, quase sete décadas.
O reinado de Pedro I não duraria muito tempo. Terminou em abril de 1831, quando abdicou da Coroa em favor de seu filho de cinco anos. Tem início o período das Regências e, com elas, alguns remendos na Constituição outorgada e nada de reformas para valer. Veio o Segundo Reinado, com o garoto de 15 anos, o lendário Pedro II, proclamado imperador. Sob um regime escravista, o conservadorismo continuava sendo a marca do governo monárquico. O recém criado País continuava inteiramente rural e dominado pelos grandes proprietários de terra, preso à monocultura da cana-de-açúcar e ao trabalho escravo. Isso enquanto a revolução industrial e o capitalismo deslanchavam em escala global.
Com a crise da economia açucareira e com o extrativismo em decadência, o Brasil marcava passo, enquanto a revolução industrial avançava mundo a fora, provocando transformações gigantescas na vida de povos e de nações. Aqui nada de indústria, mercado interno reduzidíssimo e relações comerciais com o mundo absolutamente irrelevantes. O nível de organização social não permitia desenvolver ações que mudassem aquela rotina conservadora em que vivia o País.
O movimento de maior significação e de resistência à situação vigente era dos escravos. A oposição republicana só começou a ganhar corpo já na segunda metade do Segundo Reinado, embora localizada basicamente em São Paulo - na época, uma província muito pobre e de pequena expressão.
Uma guerra desgastante contra o Paraguai e o fortalecimento das forças armadas, provocado por esse conflito, iriam ter como desdobramento uma crise militar, que deu respaldo ao movimento republicano e levou o sistema escravista e o regime monárquico ao colapso. Veio a República, de uma maneira meio enviesada, com um pronunciamento militar diante de “um povo bestificado”, conforme a descrição dos historiadores oficiais e o ensinado nas escolas.
Sem povo participando e sob o controle de forças conservadoras, também a República absteve-se de fazer reformas. Mas, já havia um impulso do capitalismo nascente, que crescia apegado à barra da saia do pé-de-café, cuja lavoura de escala penetrava por todo interior do Estado de São Paulo, além das existentes no Estado do Rio, no Espírito Santo e em Minas Gerais.
Não obstante tais transformações econômicas, não ocorria nenhuma ruptura com os costumes políticos e sociais arcaicos do regime anterior. Os grupos oligárquicos continuaram mandando durante a Primeira República. De modo que reformas profundas, nem pensar. O sistema eleitoral persistia restrito a um universo de eleitores diminuto, e a manipulação dos resultados comprometia todo o processo eleitoral. Os movimentos sociais emergentes eram reprimidos sem contemplação. “Democracia” só para os grupos dominantes. Veio o que historicamente se convencionou chamar de “Revolução de 30”, que deu início à Era Vargas. A partir daí, começava uma nova etapa do período republicano, em meio a uma grave crise econômica que assolava o mundo capitalista, atingindo em cheio o Brasil predominantemente rural e atrasado. A crise impõe à nova ordem algumas medidas reformistas para estimular o capitalismo nascente e dar um mínimo de civilidade às relações de trabalho, tanto na cidade quanto no campo.
Contudo, são medidas reformistas e não reformas, com o agravante de se realizarem em meio a um regime ditatorial e de feroz repressão aos movimentos sociais e às forças políticas de oposição. A Era Vargas dura 15 anos e cai sob o impacto da derrota do nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial. A reestruturação da vida política e a conquista da liberdade para implantar um regime verdadeiramente republicano e democrático, logo seriam interrompidas pelo início da “guerra fria”, envolvendo as superpotências da época (vitoriosas na Segunda Guerra), Estados Unidos e União Soviética.
No Brasil, as forças conservadoras retomam a hegemonia do processo político e o controle dos movimentos sociais, com restrições às liberdades públicas e uma escalada de repressão. De modo que o País passa a conviver com uma Constituição aparentemente democrática, porém sem democracia de fato. Manifestações de rua e greve são proibidas e, se tentadas, duramente reprimidas. As eleições continuam cheias de vícios e de restrições a candidatos opositores, sob alegação de serem “comunistas”.
As forças políticas no poder nem pensam em reformas. Os avanços econômicos e sociais e as transformações provocadas pelo desenvolvimento do capitalismo na região Sudeste do País ocorrem pela própria dinâmica do processo de desenvolvimento, gerador de uma classe média crescente e de um mercado interno que se expande, nunca em razão de reformas profundas.
Assim é que o Brasil, um País de desenvolvimento tardio e conduzido por forças conservadoras, não conseguia passar por um processo revolucionário, seguido de rupturas. Também não passou por um processo de reformas profundas, em nenhum momento de sua história. Provavelmente, são essas as razões do atraso que ainda predomina em grandes extensões do seu território.
Também nunca houve um movimento de grande envergadura por reformas profundas, envolvendo grandes massas e correntes políticas de expressão no jogo do Poder Político. Os movimentos por reformas feitos no País de maior significado ocorreram a partir de 1922, ano em que coincidem: o levante dos Tenentes do Forte de Copacabana, a Semana de Arte Moderna em São Paulo e a fundação do Partido Comunista Brasileiro.
Mas, tais movimentos ainda padeciam da falta de uma participação efetiva, e em grande escala, de forças populares e das classes médias. Entre meados da década de 20 e meados da década de 30, esses movimentos pelas reformas estruturais de profundidade começaram a acumular forças, porém ficaram à deriva da “Revolução de 30”, devido à recusa de Luiz Carlos Prestes de assumir o comando do movimento de rebeldia dos Tenentes, acoplados à Aliança Liberal, que derrubou o governo de Washington Luís e levou Getúlio Vargas ao poder.
E, ao ficarem ausentes do movimento de 30, as forças políticas que propunham mudanças radicais e reformas econômicas e sociais profundas para o País - ou seja, uma ruptura para valer, sofreram forte erosão devido às perdas de aliados importantes e de apoio social. Não obstante isso, essas forças, lideradas por Luiz Carlos Prestes e pelo Partido Comunista, pretenderam fazer mudanças revolucionárias, com a formação de um movimento orgânico, denominado Aliança Nacional Libertadora, uma entidade que se propunha ser o instrumento político para a mobilização de massas e a conquista do Poder.
Com essa perspectiva, em um momento de grande tensão internacional, provocada pela ascensão do nazi-fascismo na Alemanha e na Itália, além de esperanças renovadas pelas promessas não cumpridas da “Revolução de 30” de desenvolver o Brasil e dar melhores condições de vida ao seu povo, as lideranças da Aliança Nacional Libertadora decidiram desencadear um movimento armado, a partir de um levante militar nos quartéis do Rio de Janeiro, movimento que se repetiu em Recife, Pernambuco e Natal, Rio Grande do Norte.
À falta de adesão ao movimento em escala nacional, e sem o apoio militar esperado, o levante fracassou. O governo Vargas, com uma rápida intervenção, consegue dominar os revoltosos. Frustrou-se a tentativa de implementar mudanças radicais por meios revolucionários. A acumulação de forças daqueles movimentos iniciados a partir de 1922 era insuficiente, e irrelevante - por que não dizer? -, para implementar mudança tão profunda nos destinos do País.
De modo que a questão das reformas estruturais profundas só voltaria à ordem do dia do processo político no Brasil, como uma realização factível, depois da crise da renúncia do então recém eleito Presidente Jânio Quadros, quando assume o governo o Vice-Presidente João Goulart, amparado por um grande movimento de resistência ao golpismo e pela democracia. Um movimento cívico-militar, com amplo apoio nas forças armadas, no meio operário, em setores da classe média, e com tendência a crescer no campo.
Naquele momento, finalmente, parecia que o Brasil caminhava para uma ruptura, sem acomodação com as forças conservadoras. Entretanto, a vida mostrou que só parecia, apenas aparentemente, chegado a hora das mudanças e das reformas.
A bandeira do movimento, do qual participavam o próprio Governo Goulart e amplos setores da sociedade, era “Pelas Reformas de Base”. O nome era esse mesmo, “reformas de base”, que incluíam a reforma política, com liberdade de organização partidária, adoção da cédula única de votação, acesso gratuito ao rádio e à televisão aos candidatos e partidos políticos, voto aos analfabetos, soldados, cabos e sargentos e permissão da reeleição do Presidente.
Incluíam, também, a reforma agrária, com a desapropriação das propriedades de mais de 500 hectares, e a distribuição da terra para quem desejasse lavrá-la. Reforma urbana, com a intervenção do poder público no uso do solo para programas de moradia popular e controle dos preços dos aluguéis. Estatização de todo o setor petrolífero, que deveria ser passado para o monopólio da Petrobrás, envolvendo prospecção, refino, distribuição, importação, industrialização dos seus derivados e encampação das refinarias particulares.
Monopólio estatal de todo o setor de geração e distribuição de energia elétrica, com a encampação das empresas privadas existentes. Monopólio estatal de todo o setor de telecomunicações, com a encampação das empresas privadas existentes. Monopólio estatal de todos os setores da economia considerados estratégicos.
Monopólio do câmbio e intervenção na política de preços no mercado de varejo para conter a alta do “custo de vida”. No entendimento da época, a inflação não era a vilã do assalariado e do consumidor, e sim o “custo de vida”, ou seja, os preços das mercadorias eram aumentados por causa da especulação e da ganância do comércio. Então, bastava controlar os preços, por decreto, e o “custo de vida” seria contido. A palavra de ordem era “abaixo a carestia”, além do congelamento dos preços.
Não será preciso dizer que, com essa ingênua compreensão dos problemas do País, era difícil vencer. A encampação das refinarias particulares de petróleo, o decreto que confiscou as terras numa faixa de 50 quilômetros nas margens das rodovias e ferrovias para fins de reforma agrária, o decreto que proibia aluguéis acima de um salário mínimo para imóveis de dois dormitórios e imóveis não disponibilizados para aluguéis na forma do decreto que ficavam sujeitos à desapropriação faziam parte do programa de reformas. Esses decretos e a rebeldia nos quartéis, envolvendo cabos, sargentos e marinheiros, deram os motivos para um rápido esvaziamento de apoio ao governo e ao movimento pelas “reformas de base”, jogando o grosso das forças sociais e políticas para o lado dos grupos golpistas. Estes acumularam um tal nível de apoio político e social, suficiente para desfechar o golpe e derrubar o governo Goulart em apenas dois dias, sem qualquer resistência de maior significado e sem nenhum tipo de enfrentamento militar.
Frustraram-se, mais uma vez, as esperanças de se fazer reformas profundas no País. Veio a ditadura na esteira desse segundo fracasso das forças reformistas.
O regime militar instalado no País não se propôs a fazer reformas, ao contrário, declarou-se contra as reformas “comunizantes”. Dizia ser de reação às tentativas de reformas promovidas por “forças subversivas a serviço do comunismo internacional”. Apesar disso, o regime militar tinha que enfrentar a crise vivida pelo País, com inflação alta e estagnação econômica devidas à queda dos investimentos do capital nacional e estrangeiro.
Como balizamento para sua ação, o regime militar não apresentava propostas de reformas, mas tinha uma doutrina elaborada a partir de uma análise geopolítica que reservava ao Brasil um papel de potência regional alinhada à defesa da “civilização ocidental e cristã”. Para tanto, a doutrina esboçava um projeto de “fortalecimento do Poder Nacional”, ou seja, o fortalecimento do Estado Nacional, garantidor da acumulação acelerada do capital, para desenvolver ramos estratégicos da economia e implantar uma indústria de base, de bens de capital e de armamentos.
Por paradoxal que possa parecer, para realizar esse projeto o regime militar, além da dura repressão policial contra seus opositores, teve que retomar bandeiras do movimento pelas “reformas de base”. Entre elas, uma escalada estatizante, envolvendo todos os setores estratégicos da economia, tais como energia elétrica, petróleo e petroquímica, telecomunicações, mineração, siderurgia e até setores da indústria leve, com forte participação acionária do BNDES.
Também são fundamentais as reformas do Judiciário, do sistema educacional e, principalmente, do Estado, dando novo formato à Federação, redefinindo as competências de encargos e de tributação das diferentes esferas da administração. São questões que estão sendo levantadas neste trabalho, ao se tratar do sistema tributário e do regime previdenciário. Para melhor atender à população e à cidadania, o Estado da União tem que diminuir, para reduzir custos. O Estado nos estados e nos municípios precisa aumentar, com mais recursos para prestar serviços de qualidade à sociedade como um todo. O Estado da União é muito caro porque quer ser prestador de serviços à sociedade, mas, pelo gigantismo da estrutura burocrática e pelas distâncias de um País de dimensões continentais, acaba tendo um custo exorbitante e eficiência nula.
Já o Estado local, como prestador de serviços à sociedade, é mais ágil, mais barato e muito mais eficiente. Ainda mais se submetido a mecanismos de controle social, no próprio local onde opera. O fortalecimento do Estado, nas esferas da administração estadual e municipal, é um dos primeiros passos para se combater a fome, a miséria e a pobreza por um custo menor, ou por custo nenhum, na medida em que programas de investimentos em áreas carentes gerem emprego e renda.
Para enfrentar essa questão da diminuição do Estado da União a uma dimensão restrita à necessidade de cumprir suas funções como regulador e controlador dos serviços públicos e garantidor da unidade e segurança nacionais, é preciso ter a coragem de reconhecer que não temos e não precisamos ter um Estado Nacional forte, com ambições expansionistas ou de subjugar outros países. O Brasil é um País pacífico, desejoso de buscar a integração com outros povos por meio de cooperação econômica, científica, cultural e relações amistosas. Então, por que manter uma estrutura estatal tão onerosa na esfera da União, em detrimento de uma estrutura mais eficiente na esfera do Poder local?
É preciso enfrentar com coragem e sem preconceito essa bobagem de Estado mínimo e Estado máximo, a partir de uma suposta confrontação entre o liberalismo e o socialismo, quando, na verdade, se trata de discutir qual das esferas do Estado, hoje em dia, deve ser máxima e qual deve ser mínima, em um país que não tem pretensões belicistas e está cheio de problemas sociais para resolver. Se trata, portanto, de discutir que o Estado na União, como tem funcionado, é um sorvedouro de dinheiro público sem oferecer quase nada à população, com o agravante de não ser, também, um Estado militarmente forte, haja vista a situação em que se encontram as forças armadas, desaparelhadas até do indispensável para alimentar e vestir os seus soldados.
De modo que cabe a pergunta: que Estado máximo é esse? Máximo para quem? Para os moradores de Guaribas, lá no Piauí? Para os moradores das centenas de favelas plantadas nas nossas cidades, que não encontram opções para levarem uma vida mais digna? A quem está servindo esse Estado máximo que temos aí e que consome 63 % das receitas de uma carga tributária equivalente a 35 % do PIB nacional? Para onde está indo tanto dinheiro sem a menor serventia social? Que Estado máximo é esse que, para implementar um programa de combate à pobreza, não obstante os imensos recursos dos quais dispõe, não revela o menor pudor em apelar para a caridade pública e para doações? É provável que somente os especuladores, os grupos de privilegiados que mamam nas tetas desse Estado, os banqueiros e outros aproveitadores é que poderiam responder a tais perguntas.
Vamos discutir esse Estado com toda a seriedade que um momento de mudanças exige. Vamos abrir as inúmeras caixaspretas que existem por aí e descobrir para onde vão os recursos públicos que não chegam às pessoas mais necessitadas da população. A hora para discutir isso é agora. Não vamos perder essa oportunidade e frustrar as esperanças de milhões de brasileiros que votaram pelas mudanças.
Concluindo essas considerações, a título de abertura desse trabalho, alertamos o leitor para o fato de que as propostas aqui apresentadas não esgotam o bloco de reformas reclamadas pelo povo brasileiro. Mas, com elas, acreditamos que as instituições do Estado poderão funcionar melhor, a democracia ganhar um significado mais amplo, a participação popular fluir com mais confiança em um futuro que trará melhores condições de vida para o povo trabalhador, através de uma melhor distribuição de renda nacional, de um maior acesso à educação, à saúde e à moradia.
Não temos a pretensão, também, de estar dando a receita final para a solução dos problemas do País, mas consideramos ser uma contribuição válida e pertinente para o debate de temas relevantes sobre as reformas que se pretende realizar nessa etapa histórica vivida pelo Brasil. Estamos abordando temas que consideramos mais abrangentes e prioritários, envolvendo o bloco de reformas colocado para discussão e que tem sido objeto de polêmica entre autoridades e segmentos mais ativos da sociedade.
Assim é que vamos adiantar, aqui, quais os temas escolhidos para a abordagem formulada neste trabalho. São eles:
Trata-se, portanto, de um trabalho envolvendo aspectos das reformas econômicas, sociais e políticas, que vão estar na ordem do dia ao longo deste ano e, provavelmente, dos próximos anos. As propostas apresentadas são inovadoras, ousadas e compatíveis com os novos tempos que pretendemos viver. Elas, se concretizadas, vão contribuir para desenvolver o Brasil, tornar o Estado como um todo mais eficiente, este País mais justo, com suas instituições democráticas mais fortes.
Os Autores