A palavra “cânon” deriva do grego kanon, originado do hebraico qameh, que designa uma espécie de vara delgada e reta utilizada para medição, como uma régua. O termo aparece no livro do profeta Ezequiel, na descrição do homem que trazia na mão uma “vara de medição” (Ez40:3). Esse sentido de medida acabou se expandindo com o tempo, passando a incluir a idéia genérica de gabarito, regra, preceito. Paulo já emprega o termo cânon para designar os “limites demarcados” para a comunidade de Corinto (cf. 2Co10:13) e a “norma de conduta” estabelecida para os Gálatas (cf. Gl6:16). Assim, um Evangelho canônico é tido como um Evangelho que se insere dentro das regras de fé estipuladas pela Igreja, sendo por essa razão considerado legítimo.
Os quatro Evangelhos constantes no Novo Testamento, os de Mateus, Marcos, Lucas e João, são ditos canônicos, isto é, inspirados e autorizados, em contraposição aos textos apócrifos e pseudepígrafos, que não são reconhecidos como verdadeiros.
A expressão “apócrifo” advém do grego apokryphos, que originalmente indicava aquilo que é oculto, secreto. Segundo a Introdução ao Novo Testamento da Tradução Ecumênica da Bíblia, esse termo era “reservado para um certo número de obras que, apesar de certa semelhança com os escritos canônicos do Novo Testamento, eram consideradas como transmissoras de idéias estranhas às da Igreja e, em geral, secretas ou latentes, isto é, reservadas para um ambiente ‘sectário’, único a poder dispor delas para nelas haurir um ‘verdadeiro conhecimento’, ou gnose. Esses livros, embora fossem em certos casos recomendados à leitura individual por seu caráter edificante, deviam permanecer ocultos no decorrer da prática litúrgica pública.”
No início do Cristianismo houve vários movimentos distintos da linha hoje dominante, em especial os chamados “gnósticos”, em que os membros procuravam o aperfeiçoamento pessoal através da gnose (do grego gnosis – conhecimento). Depois que o imperador romano Constantino convocou o Concílio de Nicéia, em 335, o Cristianismo passou a ser a religião oficial do Estado, mais exatamente a linha do bispado de Roma. A partir daí as outras florescentes correntes cristãs foram sistematicamente anatematizadas em sucessivos concílios. Tudo o que não rezasse literalmente pela cartilha romana era tido como heresia. Nesse contexto, o gnosticismo foi considerado pela Igreja uma heresia como qualquer outra, e tratada como tal. Muitos textos evangélicos produzidos nos séculos III, IV, e V foram eliminados por estarem permeados de conceitos gnósticos. De fato, muita coisa ali era completamente incognoscível para o cristão de outrora e também de hoje, como a sabedoria grega e a reencarnação. Uma boa parte desses textos antigos foi descoberta em 1947 na localidade egípcia de Nag Hammadi, e conservados, ou melhor dito escondidos numa biblioteca de escritos gnósticos. Alguns desses manuscritos utilizam e citam o Evangelho de João... Parece que esse Evangelho era de fato o preferido no início do Cristianismo, pois temos cinco cópias preservadas dele do século III, e apenas uma cópia de cada dos outros Evangelhos nessa mesma data.
Quem primeiro cunhou o termo “apócrifo” explicitamente no sentido de não-canônico foi Jerônimo, o tradutor da Vulgata, no ano 405. Com o tempo, essa expressão acabou adquirindo um sentido marcadamente pejorativo, passando a significar toda e qualquer obra herética, espúria, não pertencente ao cânon. Agostinho afirmava que esses livros “contêm alguma verdade, mas, por causa das muitas coisas falsas, não gozam de nenhuma autoridade”. Teólogos do nosso tempo explicam que os textos apócrifos “estão repletos de inexatidões histórico-geográficas e de anacronismos”.
Os textos chamados “pseudepígrafos”, por sua vez, são escritos que circulavam sob o nome de um autor fictício, surgidos no período compreendido entre os séculos III a.C. e I d.C. Os judeus denominam esses textos de “extra-canônicos”, enquanto que os cristãos preferem a expressão “literatura intertestamentária”. Na terminologia protestante, os apócrifos também são designados de pseudepígrafos.
Conforme veremos a seguir, existem apócrifos e apócrifos... Alguns, inclusive, deram origem a dogmas do catolicismo, enquanto que outros, como o 4º livro de Esdras, são verdadeiros tesouros extracanônicos esperando ser descobertos e aproveitados. Sobre essa segunda espécie de livros apócrifos faço coro a um escritor judeu do século I da nossa era, segundo o qual “neles se encontra a origem da compreensão, a fonte da sabedoria e o rio do conhecimento.” Também é interessante que o termo apócrifo apareça, em seu sentido original, nessa sentença da carta aos Colossences: “Nele [conhecimento do mistério] estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento” (Cl2:3).
Outro texto apócrifo que poderia entrar na categoria boa é o “Livro Secreto de João”. Esse livro, que tal como o apócrifo Poimandrés inicia com o intróito “Era uma vez…”, faz uma menção do Criador (chamado ali de “Pai da Totalidade”) como um olho solitário sobre um meio luminoso, evocando a imagem do “olho que tudo vê”, e terminando com uma exortação à raça humana para que acorde e possa ser salva. Alguns desses livros ensinam outros conceitos igualmente corretos, como o de que o “eu” individual pertence ao mundo espiritual. Um deles diz que o conhecimento comum de que dispomos nada mais é do que “raciocínio desacompanhado do saber de Deus.” Muitos outros ensinamentos úteis poderiam ser obtidos dessa classe de livros apócrifos, ditos gnósticos, desde que adequadamente filtrados de toda bobagem mística. Aliás, esse critério deveria ser usado para qualquer texto, canônico ou não. Segue abaixo uma pequena amostragem selecionada em tradução livre:
O fato de informações tão valiosas como essas não estarem na Bíblia, indica que a composição desta contou essencialmente com o intelecto humano, tanto na definição dos textos do Antigo como do Novo Testamento. O critério que guindou os livros bíblicos à categoria de canônicos foi exclusivamente humano, mais exatamente do raciocínio humano, baseado em concepções reinantes nas várias épocas e não necessariamente no valor espiritual dos textos.
Do mesmo modo, foi tão-só o crivo humano que cunhou de apócrifos os mais de 60 Evangelhos conhecidos, como os de Tomé, de Pedro, de Filipe, de Matias, de Bartolomeu, de Nicodemos, de Barnabé, de Gamaliel, de Maria Madalena, dos Ebionitas, dos Hebreus, dos Nazarenos, da Verdade, dos Essênios, dos Egípcios, etc. Particularmente, os Evangelhos dos Nazarenos e dos Hebreus seriam muito parecidos com os canônicos atuais a julgar pelas citações feitas pelos primeiros Padres da Igreja, também chamados Pais ou Patriarcas da Igreja. O Padre da Igreja Clemente de Alexandria, do século II, cita em seus trabalhos o Evangelhos dos Hebreus e também o dos Egípcios. O Evangelho de Barnabé também era muito bem quisto pelas igrejas de Alexandria até o século IV. Depois dessa época, a Igreja determinou que todas as cópias desse Evangelho fossem destruídas, e que qualquer um que fosse pego com o texto deveria ser morto... Tamanha truculência tem uma explicação. Nesse Evangelho Jesus diz que “a pessoa que leva uma vida sem pecado é redimida, porém uma outra que não se arrepende com sua disposição, não se modifica.”
Houve muitos Evangelhos e evangelistas… O próprio Evangelho canônico de Lucas, endereçado a um certo Teófilo, (1) diz em seu prefácio que “muitos houve que empreenderam uma narração coordenada dos fatos que entre nós se realizaram” (Lc1:1). Em Atos dos Apóstolos, Filipe, autor do Evangelho apócrifo que leva seu nome, é textualmente chamado de “o evangelista” (At21:8). Também é significativo que Paulo inste seu colaborador, Timóteo, a “fazer o trabalho de um evangelista” (2Tm4:5), justamente depois de ter ministrado a ele ensinamentos “segundo meu Evangelho” (2Tm2:8).
Em sua obra Tradição Sinótica dos Padres Apostólicos, H. Koster demonstra que a tradição oral e escrita sobre Jesus, independentemente dos Evangelhos escritos, era normalmente utilizada ainda na primeira metade do século. Realmente. Inclusive os atuais quatro Evangelhos canônicos, que se acredita terem sido inspirados pelo Espírito Santo, sequer eram aceitos como tais nos primórdios da Igreja. Segundo Julio Trebolle, durante o século II da nossa era ainda se discutia em algumas igrejas a aceitação de um ou outro dos que não chegaram a entrar no cânon. Uma discussão, por sinal, que ainda continua nos dias de hoje, meio por baixo do pano…
É o caso notório do Evangelho de Tomé, cuja versão mais completa consta de um papiro descoberto no Egito em 1945 e que traz nada menos que 114 ensinamentos de Jesus em língua copta (derivada da egípcia), um após o outro. Esse Tomé seria o mesmo Judas que escreveu a epístola canônica que leva seu nome, pelo menos é assim que aparece num dos fragmentos gregos do texto. Alguns pesquisadores das Escrituras se perguntam se parte dos ensinamentos contidos no Evangelho de Tomé não poderiam ser mais autênticos do que certas palavras atribuídas a Jesus, existentes nos Evangelhos canônicos… Os que fazem uso da chamada crítica da forma asseveram que em alguns casos o Evangelho de Tomé preserva melhor que o de Mateus e de Lucas as formas originais dos ditos de Jesus. O historiador Gerd Theissen sustenta que esse Evangelho é o que com mais probabilidade conservou tradições antigas e autônomas. Há, inclusive, uma escola que advoga ser esse escrito mais antigo que os Evangelhos sinóticos, e muitos até o consideram como sendo o quinto Evangelho. Digno de nota é que faltem nele quaisquer referências à morte de Jesus e à sua ressurreição corpórea… Bem diferente dos Evangelhos sinóticos, que dão uma pequena amostra dos ensinamentos de Jesus e uma avalanche de informações sobre sua paixão, morte e ressurreição. Outro ponto de destaque no Evangelho de Tomé é a clareza em relação à condição de morto ou vivo espiritualmente, conforme indica esse trecho da 11ª sentença: “Esse céu passará e o que está acima dele passará. Mas quem estiver morto não viverá, e aquele que estiver vivo não morrerá!”
Também digno de nota, mas muito digno mesmo, é esse outro trecho do apócrifo Evangelho dos Nazarenos, também conhecido como Evangelho da Vida Perfeita: “Mas eis que um maior que Moisés está aqui, e ele vos dará a mais alta Lei, e esta Lei obedecerás. (…) Aqueles que acreditam e obedecem salvarão suas almas, e aqueles que não obedecem as perderão. Pois digo a vós, a não ser que a vossa justiça sobrepuje a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino do céu” (EvNz25:10). Esse trecho é muito semelhante à passagem correspondente no Evangelho de Mateus (cf. Mt5:20), com exceção da frase em itálico, justamente a mais importante. O descobridor desse Evangelho, o reverendo irlandês G. J. Ousley, escreveu um assombroso prefácio para a edição original inglesa de 1880, onde se lê: “Os primeiros Padres cristãos fizeram bem seu trabalho de destruir as fontes e registros dos quais reuniram informação e dados colocados por eles na Bíblia. Mas falharam em destruir todos. Alguns escaparam, e como é descoberto aqui e ali por pesquisadores pacientes. É surpreendente ver como o mundo foi enganado pelos Padres cristãos.” Um pequeno extrato desse Evangelho, contendo algumas palavras atribuídas a Jesus, esclarece o motivo dessa destruição sistemática de fontes levada a efeito pelos primeiros dirigentes cristãos:
“Porém, tempo virá quando trevas cobrirão a Terra e obscurecerão pesadamente o povo, e os inimigos da Verdade e da Justiça regerão em meu nome, e estabelecerão um reino desse mundo, e oprimirão os povos,… colocando por minhas doutrinas opiniões dos homens, e ensinando em meu nome o que não ensinei, e obscurecendo muito o que por suas tradições tenho ensinado. Porém, sejam de bom ânimo, porque tempo também virá quando a Verdade que esconderam será manifestada, e a Luz brilhará, e as trevas serão afastadas, e o verdadeiro reino será estabelecido nesse mundo.”
Vemos uma situação análoga no Evangelho de Tomé, naquele dia em que os irmãos e a mãe de Jesus vão procurá-lo: “Teus irmãos e tua mãe estão de pé do lado de fora. Ele lhes disse: ‘Aqueles que estão aqui e que fazem a Vontade de meu Pai é que são meus irmãos e minha mãe. Eles é que entrarão no reino de meu Pai’.” A parte em itálico, a mais importante desse pronunciamento de Jesus, não consta do mesmo episódio narrado nos Evangelhos canônicos (cf. Mt12:47-50; Lc8:20,21).
O Evangelho dos Essênios também traz uma passagem bastante desconfortável para a ordem teológica atual:
“Um dia, Jesus sentou-se entre as pessoas que ouviam suas palavras maravilhadas. Ele disse: ‘Não procure a Lei nas escrituras, pois a Lei é vida, enquanto a escritura é morte. A Lei é a Palavra viva do Deus vivo aos profetas vivos para os homens vivos. Em tudo que há vida, está escrita a Lei. Você a encontra na grama, nas árvores, no rio, na montanha, nos pássaros do céu, nos peixes do mar, mas busque-a principalmente em si mesmo. Deus não escreve a Lei em livros e sim no coração e no espírito.”
Uma prova indireta de que os ensinamentos originais de Jesus foram alterados pela nascente Igreja do ocidente, é que coisas muito distintas dos dogmas eclesiásticos foram encontradas em países não cristãos, registradas em papiros da época do início do Cristianismo.
No ano de 1890, o viajante russo Nicolas Notovitch sofreu um acidente (quebrou a perna) durante uma travessia pela região da Caxemira indiana. Impossibilitado de prosseguir viagem, foi tratado pelos médicos da região e resolveu aproveitar o tempo para conhecer um mosteiro do lugar. Lá ele se deparou com um papiro escrito em caracteres tibetanos, que narrava aspectos da vida de Jesus. Durante meses ele tomou ciência do que o papiro dizia, auxiliado por um lama. Posteriormente, publicou um livro sobre o assunto, não sem antes ter sido severamente advertido por um cardeal de Roma, a quem inadvertidamente falara do seu achado. O papiro tibetano narra vários episódios conhecidos da vida de Jesus, alguns concordes com os Evangelhos e outros nem tanto. Abaixo, algumas passagens mais interessantes:
“Uma criança maravilhosa nasceu na terra de Israel. O próprio Deus falava pela boca dessa criança. A criança divina começou desde cedo a falar sobre um Deus único e invisível, exortando as almas daqueles desencaminhados ao arrependimento e à purificação dos pecados dos quais eram culpados.”
O modo do nascimento da criança divina e o aspecto principal de sua missão é narrado de uma forma particularmente bela:
“O Espírito Eterno, residindo em local de completo repouso e suprema beatitude, acordou e separou-se por período indefinido do Ser Eterno, para mostrar dali em diante, disfarçado sob a forma humana, os meios de auto-identificação com a divindade e a obtenção da felicidade eterna. E para demonstrar, por seu exemplo, como a humanidade pode obter pureza moral, e pela separação de sua alma da espiral mortal, atingir os degraus da perfeição necessária para entrar no reino do céu, que é imutável, e onde os reinos de felicidade são eternos.”
Em relação à morte do Messias, o papiro afirma que se tratou de um crime bárbaro:
“A terra tremeu e os céus lamentaram, porque um grande crime foi cometido na terra de Israel. Pois eles torturaram e mataram o grande e justo, que encarnou na forma de simples mortal para fazer o bem e destruir os espíritos malignos.”
O destino no Juízo dos que desencaminham os seres humanos com crença falsa já está traçado:
“Honre o Dia do Julgamento, pois Deus infligirá uma terrível punição sobre aqueles que desencaminharam Suas crianças.”
O papiro também apresenta o seguinte dito atribuído a Jesus que, embora inexistente na Bíblia, se coaduna perfeitamente com a verdadeira doutrina dele:
"Aquele que recuperou a pureza original morrerá obtendo a remição dos pecados. Da mesma forma que um pai age com suas crianças, também Deus julgará os homens após a morte, de acordo com as leis de Sua compaixão.”
Um antigo manuscrito chinês também traz informações sobre os ensinamentos de Jesus. O instigante extrato abaixo foi obtido pelo pesquisador indiano Fida Khan, com auxílio de um grupo de especialistas e tradutores:
"Yesu [Jesus] proclamava-se o Salvador do Mundo. Ordenou que os discípulos observassem os Dez Mandamentos, entre os quais se incluem a proibição de homicídios e a obtenção de alegria eterna por meio de boas ações. Pregou que as ações demoníacas mergulham o indivíduo no inferno, onde o tormento e a miséria são eternos. Um pecado cometido conscientemente não pode ser tolerado nem perdoado.
Essa última sentença é uma explicação clara e singela do significado do “pecado cometido contra o Espírito Santo”, já abordado.
Para tentar descobrir o que mais foi banido da doutrina original do Mestre, resta-nos recorrer aos textos não canônicos que chegaram até os nossos dias, mas sempre submetendo-os ao prisma severo e implacável da lógica e da justiça, para limpá-los de toda nódoa de fantasia e misticismo.
O mencionado Evangelho de Tomé é um desses textos mais conhecidos, mas vários outros Evangelhos apócrifos também comportam aspectos interessantes, que despertam a argúcia de pessoas espiritualmente despertas. No Evangelho de Pedro, por exemplo, chama atenção não haver ali nenhum indício de uma pretensa salvação pela cruz. No Evangelho de Maria Madalena, a protagonista explica a Pedro que a origem do pecado é culpa exclusiva do ser humano, conforme lhe teria sido revelado pelo próprio Mestre: “Somos nós que fazemos existir o pecado, quando agimos conforme nossa natureza idolátrica”, diz Maria Madalena. O Cristianismo oficial da época rejeitou esse Evangelho porque considerava um total absurdo uma mulher ser depositária da sabedoria de Jesus… O Evangelho dos Ebionitas, por sua vez, opõe-se decididamente à doutrina da concepção virginal de Jesus, afirmando sem meias palavras que ele foi gerado de sêmen humano. Os Elquesaítas, outro grupo cristão contemporâneo dos Ebionitas, também rejeitavam a doutrina do nascimento virginal, asseverando que Jesus “nasceu como os outros homens”.
É verdade que vários outros relatos dos Evangelhos apócrifos são, ao contrário destes, registros fantasiosos, grotescos mesmo, sem nenhum compromisso com a realidade. (2) Mas também é verdade que a escolha dos quatro Evangelhos canônicos não teve nenhuma influência divina como a Igreja quer fazer crer, tendo sido pautada exclusivamente em concepções doutrinário-teológicas. O teólogo Rochus Zuurmond, professor de Teologia Bíblica da Universidade de Amsterdã, esclarece: “Sem dúvida, a Igreja estabeleceu seu cânon com base em determinadas suposições dogmáticas, freqüentemente em consciente polêmica contra grupos que invocavam a autoridade de escritos cuja autenticidade reivindicavam.”
Vejamos o que diz o pesquisador Raul Branco a respeito do portentoso Concílio de Nicéia: “A maior sistematização dos textos ocorreu por ocasião do Concílio de Nicéia, convocado e presidido pelo imperador Constantino, em virtude de crescentes dissensões sobre questões de fé que tinham importantes implicações políticas. Graças a autoridade do imperador, que seguidamente tinha que moderar discussões entre bispos exaltados e arbitrar soluções para questões doutrinárias sobre as quais quase nada conhecia, foi possível selecionar aqueles textos que viriam formar a base dos Evangelhos a serem incluídos na Bíblia, os quais, mais tarde, ainda sofreram modificações. Constantino, que tratava as questões religiosas somente do ponto de vista político, assegurou a unanimidade banindo todos os bispos que não quiseram assinar a nova profissão de fé.”
Como se vê, foi graças à atitude de um imperador romano e não a de um papa ou qualquer outro clérigo, que os Evangelhos canônicos consolidaram sua entrada na Bíblia, num Concílio não muito conciliatório. Todavia, os argumentos em favor de uma ratificação divina da autenticidade dos quatro Evangelhos continuaram a se propagar, sob diferentes formas, ao longo dos ulteriores períodos do Cristianismo. Um exemplo: no início do Evangelho de Lucas, lemos: “A mim também pareceu conveniente escrever-te” (Lc1:3). Certos copistas simplesmente acrescentaram em seus manuscritos uma referência ao Espírito Santo nessa frase, e a nova versão inspirada ficou assim: “A mim e ao Espírito Santo também pareceu conveniente escrever-te”. A menção ao Espírito Santo deveria dar uma legitimidade inatacável ao seu Evangelho. No livro de Atos nos deparamos com a mesma estratégia: “Pois decidimos, o Espírito Santo e nós, não vos impor nenhum fardo” (At15:28).
Apesar dos esforços paroxísticos dos dirigentes cristãos de todos os tempos em tentar comprovar uma diretriz divina na escolha dos textos canônicos, os fatos históricos demonstram que o tão agitado cânon bíblico só foi sedimentar-se após uma sucessão infindável de discussões acaloradas, contendas mui pouco fraternas e rixas nada inspiradoras entre os dignitários eclesiásticos. E isso tanto para o Antigo como para o Novo Testamento. O Apocalipse, por exemplo, demorou a entrar no cânon devido à imensa desconfiança da Igreja em relação a esse gênero de literatura. No Concílio Constantinopla I, no ano 360, o livro não aparece na lista canônica de então. Mas, como depois a opinião era de que parecia ter sido mesmo escrito por São João, acabou sendo aceito. O Concílio Toledo IV, em 633, fez uma declaração de legitimidade do livro com base na autoria de São João.
Em relação ao Antigo Testamento é digno de nota o caso do Cântico dos Cânticos de Salomão, uma coletânea de versos licenciosos que foi guindada à canonicidade. Se esse Cântico dos Cânticos é parte integral da Palavra Inspirada, como asseguram ainda tantos teólogos, porque será então que, já no início da era cristã, o famoso rabino Aqiba excluía da ressurreição quem ousasse declamar trechos desse livro durante os banquetes? Por que será que os outros rabinos o interditavam para menores de trinta anos? E porque será que sua divulgação pública, no ano de 1570, granjeou ao imprevidente frei Luiz de Leon, célebre professor da Universidade de Salamanca, cinco anos de cárcere? Um frei preso por divulgar trechos da Palavra divina?…
Na Bíblia judaica, o Cântico dos Cânticos (cujo significado em hebraico é “o melhor cântico”) pelo menos só aparece na terceira parte do cânon – os Escritos, porém na Bíblia grega e na Vulgata latina ele é estranhamente classificado como um dos livros sapienciais. Na Vulgata recebe o elegante nome de Cantares (cantigas), e pelo fato de Salomão ser mencionado no primeiro versículo é conhecido como Cantares de Salomão.
A respeito desse Cântico dos Cânticos “canônico”, talvez seja útil inteirarmo-nos da opinião do Dr. Andrew Greeley, renomado estudioso da Bíblia. Além de sacerdote da diocese de Chicago, Greeley é sociólogo, jornalista, doutor em filosofia e autor de mais de cem trabalhos acadêmicos e 60 livros. Vejamos alguns comentários do padre Greeley sobre o Cântico dos Cânticos em seu livro A Bíblia e Nós: “A despeito das metáforas que temos dificuldade em entender, juntamente com certas traduções terríveis (e às vezes desonestas), a natureza erótica do Cântico dos Cânticos é patente. Muita gente fica imaginando o que o Cântico dos Cânticos está fazendo na Bíblia. (3) Alguns cristãos simplesmente eliminaram-no. Outros, especialmente os católicos, resolveram a questão do erotismo do Cântico dos Cânticos simplesmente deixando de comentá-lo. Na maior parte da história dos judeus e dos cristãos, o problema do erotismo gritante do Cântico dos Cânticos foi tratado com alegorias. (…) O Cântico dos Cânticos foi colocado no cânon da Sagrada Escritura por ser muito apreciado pelo povo israelita; parecia um bom lugar para conservá-lo. (…) O Cântico dos Cânticos é poesia erótica (alguns poderiam considerá-la libertina) escrita por uma mulher muito desinibida (também alguns podendo considerá-la libertina), que considera o relacionamento metafórico entre dois amantes um motivo para entregar-se até com mais prazer às delícias do amor humano. (…) Os professores e educadores religiosos evitam o Cântico dos Cânticos por ser excessivamente vívido, realista e sensual. Talvez viesse a provocar maus pensamentos nas pessoas… Por isso, fingimos que ele não existe ou fazemos uma tradução em que toda a sensualidade contida nele seja suprimida.”
Já foi constatado que esse Cântico dos Cânticos possui inegáveis paralelos com antigas canções de amor egípcias. Provavelmente originou-se delas. Apesar de uma certa resistência, o livro foi aceito como parte do cânon judaico durante o Sínodo de Jamnia (alguns chamam de Concílio), em 90 d.C., não porque fosse considerado uma alegoria, mas sim devido à sua popularidade. E, posteriormente, como já aparecia tanto na Bíblia hebraica como na versão grega da Septuaginta, passou sem maiores dificuldades para o cânon cristão.
De qualquer maneira, para os que não precisam fingir nada para ninguém, inclusive para si mesmos, o diagnóstico lúcido do padre Greeley constitui uma pá de cal na idéia de uma “inspiração divina” para a escolha dos livros canônicos. O critério de escolha do cânon inteiro foi sempre exclusivamente humano, sujeito a todos os erros, falhas e falta de discernimento dos sacerdotes judeus e cristãos, capazes, sim, de ver algo de útil nesse lascivo Cântico dos Cânticos e rejeitar uma preciosidade como o Livro de Enoch, de que tratarei mais à frente.
Devido a esse critério de escolha exclusivamente humano das Escrituras, e por isso mesmo restrito, a própria Epístola de Tiago por um triz também não foi excluída do Livro dos Livros. Justamente essa epístola tão importante, apresentada em estreito paralelo com o modo de pregação de Jesus, toda feita de conselhos e exemplos, que em linguagem franca exorta as pessoas o tempo todo a transformarem em ação sua boa vontade, justamente ela esteve a ponto de ser condenada. O que a salvou, e isso só no século IV, foi o fato de a Igreja ter percebido que seu autor fora, com toda a probabilidade, o meio-irmão de Jesus, distinguindo-o de dois apóstolos homônimos: Tiago filho de Alfeu e Tiago filho de Zebedeu. (4) Essa opinião de autoria já fora manifestada no século II por Clemente de Alexandria e Orígenes. Ainda outros documentos atestam o parentesco de Tiago com Jesus. O historiador Flávio Josefo fala em sua obra Antiguidades Judaicas sobre “Tiago, o irmão de Jesus que é cognominado o Messias”, e o historiador Hegesipo, do século II, também alude a “Tiago, o irmão do Senhor”, afirmando ainda que ele era conhecido por todos como “Tiago, o Justo”. Paulo também fala de Tiago como irmão do Senhor em sua carta aos Gálatas: “Decorridos três anos, então subi a Jerusalém para avistar-me com Cefas, e permaneci com ele quinze dias; e não vi outro dos apóstolos senão Tiago, o irmão do Senhor.” (Gl1:18,19). Desta vez, o malfadado conceito de família acabou ajudando indiretamente a posteridade, ao lhe garantir a autenticidade da Epístola de Tiago…
É claro que também pesou o alto conceito que Tiago desfrutava entre os apóstolos, como se depreende dos episódios em que Pedro manda avisá-lo assim que sai do cárcere (cf. At12:17), e em que Paulo aceita os conselhos dele (cf. At21:18-26). O Evangelho de Tomé também não deixa dúvida sobre a reputação de que Tiago gozava naquele tempo, confirmando o epíteto de “Justo” mencionado por Hegesipo: “Os discípulos disseram a Jesus: ‘Sabemos que nos deixareis. Quem será o nosso líder? Jesus lhes respondeu: ‘Não importa aonde chegueis, é para Tiago Justo que devereis ir.” Interessante notar que a Tiago, que conviveu estreitamente com o Senhor, não adveio nenhuma idéia de uma morte salvífica na cruz e de uma ressurreição física para o meio-irmão... Em nenhum momento sua epístola faz qualquer alusão à morte expiatória de Cristo e à sua ressurreição.
Os critérios para se determinar o que era ou não canônico nunca foram critérios propriamente, mas uma balbúrdia só. O próprio Livro de Daniel só conseguiu entrar na lista de livros canônicos (aparentemente por volta de 165 a.C.) porque sua autoria foi atribuída a um profeta bastante conhecido, Daniel, que o teria escrito em 537 a.C. Contudo, por não ter desempenhado formalmente o cargo de profeta entre os israelitas, seu livro consta apenas da terceira divisão da Bíblia hebraica – os Escritos, ao invés da segunda – os Profetas, como seria de se esperar. No entanto, foram encontradas oito cópias desse livro entre os manuscritos do Mar Morto, em Qumran, o que demonstra a importância do texto para aquela comunidade do deserto. No Novo Testamento, o livro de Daniel foi avalizado por Mateus quando este reproduziu a expressão “abominação da desolação” utilizada pelo profeta (cf. Dn9:27; Mt24:15).
Eclesiastes foi outro livro que entrou para o cânon pela tangente por assim dizer. Julio Trebolle diz que pesava sobre a obra a acusação de conter passagens que tocavam a heresia. Já em relação ao livro de Ester, se reprovava a narração da história do matrimônio entre uma heroína judia e um pagão estrangeiro, sem aparecer nenhuma crítica contra um fato assim tão condenável… O livro de Ezequiel também não era muito bem-visto até o século I da nossa era, pois o Judaísmo oficial considerava perigoso a idéia de o profeta ter visto o trono de Yahweh fora da Palestina... (cf. Ez1:26;10:1). O livro nunca era lido na sinagoga.
Entre os textos que quase conseguiram passar no rigoroso vestibular canônico, mas acabaram sendo barrados na última hora, temos ainda: Epístola de Barnabé, Primeira Epístola de Clemente, Pastor de Hermas e Doutrina dos Doze Apóstolos. Isso, apesar de esses textos (e mais de uma dúzia de Evangelhos não canônicos), serem normalmente citados como Escritura Sagrada pelos Padres da Igreja nos primórdios do Cristianismo. Hermas era, ele próprio, um desses Pais Apostólicos, e sua obra Pastor era muito bem-vista. Nela, ele afirma ter sido um escravo que enriqueceu, e numa alusão muito clara à Lei da Reciprocidade diz que perdeu tudo devido aos seus “pecados interiores”. Em relação à Epístola de Barnabé, o bispo Eusébio de Cesaréia sustentava em seu tempo, sem êxito, que deveria fazer parte do conjunto de livros canônicos, visto Barnabé ter sido muito próximo do apóstolo Paulo...
E assim aconteceu que esses antigos e conceituados escritos acabaram sendo barrados… Mas, como uma espécie de prêmio de consolação, o antiqüíssimo e respeitadíssimo códice Sinaiticus exibe em seu austero corpo canônico os textos integrais da Epístola de Barnabé e do Pastor de Hermas, além da Primeira e Segunda Epístolas de Clemente, enquanto que o não menos antigo e respeitado códice Vaticanus estranhamente não comporta os quatro primeiros capítulos de Gênesis e cerca de 30 salmos. Por sua vez, o códice Regius do século VIII inova ao contemplar salomonicamente os dois trechos finais existentes para o Evangelho de Marcos: as conclusões curta e longa. Já o famoso compêndio Cânon Muratori, que teria sido estabelecido pela Igreja de Roma nas últimas décadas do século II, e foi descoberto pelo bibliotecário Muratori na Biblioteca Ambrosiana de Milão, marca sua presença por não trazer a Epístola de Tiago, a dos Hebreus, uma das de João e nenhuma das de Pedro, mas comporta a apócrifa Sabedoria de Salomão e um inusitado Apocalipse de Pedro, sobre o qual o compilador anônimo desse cânon registra, preocupado, que “alguns de nós não querem que seja lido na Igreja”. Por fim, ainda nos quedamos atônitos, catatônicos, ao contemplar antigas Bíblias da Igreja Armênia exibindo orgulhosamente a Terceira Epístola de Paulo aos Coríntios…
Seria bom, aliás, que as pessoas soubessem que a apócrifa Epístola de Barnabé é avalizada pelo famoso códice Sinaiticus, pois aí talvez se interessassem em conhecê-la mais amiúde. E então veriam, surpresas, que nela o termo “Filho do Homem” aparece em claro contraste com a expressão “Filho de Deus” (cf. EpBr12:10), indicando de maneira inequívoca tratar-se de duas personalidades distintas.
Também seria ótimo se os crentes conhecessem melhor a obra do Padre Clemente do século II, pois ele ensinava com justeza que na encarnação do Filho de Deus o Verbo unira-se a uma alma humana, que em sua preexistência se mantivera pura. Verbo, como se sabe, é o mesmo que Palavra. Em “Um Hino ao Salvador”, Clemente denomina Jesus Cristo de Palavra Eterna e Luz Eterna. A sua mencionada Primeira Epístola, apócrifa como a Segunda, traz a reprodução de uma fala de Jesus muito semelhante ao sermão do monte, e sobre a qual não se pode tecer nenhuma crítica de autenticidade, tamanha sua clareza em relação à Lei da Reciprocidade: “Antes de tudo queremos nos lembrar das palavras do Senhor Jesus que ele ensinou como mestre da mansidão e da paciência. Pois ele disse assim: ‘Sede misericordiosos para alcançar a misericórdia; perdoai para serdes perdoados. Como fazeis, assim vos será feito; como dais, assim vos será dado; como julgais, assim sereis julgados; e, como sois bondosos, assim vos será feita bondade; com a mesma medida que medis, sereis medidos’” (1Clem13:1,2). Essa frase, de sentido tão verdadeiro, não se encontra na Bíblia porque o escrito que a comporta não é considerado canônico. Talvez a causa da rejeição de Clemente resida no tipo de ensino que ele e seu colega Orígenes ministravam numa das primeiras escolas cristã, pois ambos ensinavam que dos três significados possíveis dos textos das Escrituras: o literal, o moral e o espiritual, o mais fundamental e imprescindível era o espiritual…
Outra sentença de Jesus citada pelos primeiros Padres e que não entrou na Bíblia é esta: “Como sois encontrados, assim sereis conduzidos para o Juízo”. Nesta frase está declarado tacitamente que, no Juízo Final, não contaria mais o que o ser humano fora no passado, em outras vidas, mas sim como ele seria no presente, isto é, durante o tempo do Julgamento! Uma frase de importância capital, desconhecida dos cristãos porque não é canônica.
Também é costume dizer nos meios teológicos que os textos mencionados nas Escrituras que não chegaram até nós não poderiam mesmo ser canônicos, do contrário o Espírito Santo com certeza não deixaria que se perdessem (!). É o caso, por exemplo, de uma antiga e desconhecida carta do apóstolo Paulo aos Coríntios, mencionada em 1Co5:9. Por esse critério, também temos de considerar como não canônica a perdida Epístola aos Laodicences, mencionada em Cl4:16, enquanto que o bilhete particular dirigido pelo apóstolo a seu amigo Filemon, com apenas um capítulo de 25 versículos (totalizando 335 palavras em grego), tratando de um assunto particular e corriqueiro, por não ter sumido nas dobras do tempo… é canônico! Pelo mesmo motivo também é canônica a minúscula terceira carta de João, que embora comportando algumas frases interessantes, é dirigida ao seu amigo Caio para discussão de um assunto exclusivamente pessoal.
Para termos uma melhor noção do tamanho da confusão gerada na formação do cânon bíblico, vamos lembrar inicialmente que a tradução grega da Bíblia feita no século III a.C. – a Septuaginta, já contemplava vários livros não existentes no antigo cânon hebraico (a Tanak judaica (5)), e que durante o século I a.C. essa versão grega ainda foi objeto de diversas recensões. Naquela época havia o Cânon dos Hebreus Helenizados, que incluía os livros extras, e o Cânon Palestinense, que os excluía. Quando os cristãos assumiram a organização do Antigo Testamento, acharam por bem rejeitar alguns dos escritos aditivos existentes na Septuaginta, a saber: Salmos de Salomão, Odes, Primeiro Livro de Esdras, Terceiro e Quarto Livro dos Macabeus. A Igreja passou a denominar os livros extras remanescentes de “deuterocanônicos”, isto é canônicos em “segunda (dêutero) instância”. São eles: Judite, Primeiro e Segundo Livro dos Macabeus, Tobias, Eclesiástico (Sirácida ou Ben Sira), Baruc (com Epístola de Jeremias), Sabedoria, fragmentos gregos adicionais ao Livro de Ester (cerca de cem versículos) e alguns acréscimos no livro de Daniel.
Esse catálogo oficial de livros do Antigo Testamento foi promulgado no ano 393 no Concílio de Hipona (África do Norte), sendo posteriormente confirmado pelo Concílio de Cartago em 419, em contraposição, aliás, ao que fora discutido anteriormente no Concílio de Laodicéia, por volta do ano 360, onde os deuterocanônicos haviam sido rejeitados. Mas o Concílio de Trulico, em 692, se encarregou de embaralhar tudo de novo ao ratificar tanto o cânon de Laodicéia como o de Cartago. Em relação ao Novo Testamento a situação não era melhor, pois a Igreja síria se recusava a incluir no seu cânon o livro do Apocalipse, as três epístolas de João, as duas de Pedro, a de Judas e a de Tiago, enquanto que a Igreja do Ocidente, por sua vez, não considerava canônica a Epístola aos Hebreus.
Mais tarde, após a reforma protestante, as Igrejas ortodoxas do Oriente se dividiram, com algumas delas aceitando os livros deuterocanônicos dos católicos e outras não, ao passo que a Igreja etíope, na contramão da polêmica, resolveu acrescentar mais oito livros ao seu cânon. Por essa época, Lutero havia retomado a questão do cânon do Antigo Testamento, excluindo dele todos os deuterocanônicos (embora aconselhasse sua leitura), e propondo como critério escriturístico unicamente “o que leva a Cristo e comunica Cristo”, o que fez alguns argumentarem que nesse caso haveria então “um cânon dentro do cânon”. Sem se importar muito com isso, os reformadores passaram a denominar de apócrifos os antigos livros deuterocanônicos dos católicos, causando uma previsível confusão com os textos apócrifos previamente existentes.
Em vista disso, o Concílio de Trento decidiu, no ano de 1546, republicar oficialmente, sob pena de excomunhão, o cânon da Bíblia católica. O decreto do Concílio afirmava que “a verdade cristã está contida nos livros sagrados e na tradição da Igreja”, e que “a Bíblia deve ser interpretada segundo as diretrizes da Igreja”. A partir daí, os católicos passaram a ser obrigados a aceitar esses livros como “sacros e canônicos, integralmente, com todas as suas partes, conforme lidos na Igreja Católica e contidos na edição latina universalmente divulgada.” Essa edição latina era a Vulgata, obra que o citado Concílio decretou ser “texto autorizado em matéria de fé e de vida”, e sobre a qual o inquisidor espanhol León de Castro declarou em 1576: “Nada se pode mudar que discorde da edição latina da Vulgata, nem um único período, uma única conclusão ou uma única cláusula, uma única palavra de expressão, uma única sílaba ou ponto.”
Todavia, em 1590, constatou-se que a edição dessa Vulgata intangível e universalmente divulgada, levada a efeito sob os auspícios do papa Sixto V, estava eivada de erros, além de trazer em seu bojo, como apêndice, três livros apócrifos: Oração de Manassés, 1Esdras e 4Esdras. Em vista disso, seu sucessor imediato, Clemente VIII, providenciou uma edição revisada do texto autorizado, a chamada Vulgata Sixto-Clementina de 1600, declarada oficialmente (e novamente) irreformável. Em 1943, o papa Pio XII explicou que a autenticidade da Vulgata então vigente era jurídica, e não crítica, garantindo que era “autêntica pelo seu longo uso por parte da Igreja”, ratificando estar livre de erros de fé e de moral. Porém, tão logo encerrou-se o Concílio Vaticano II, em 1965, a Igreja Católica publicou uma outra versão dessa Vulgata livre de erros. Foi mais uma versão reformada, denominada agora “Nova Vulgata”, trazendo alterações substanciais em relação à versão anterior. E assim, para encurtar a estória, o Antigo Testamento da Bíblia Cristã aparece hoje em dois cânones bastante modificados ao longo do tempo: o chamado “amplo” dos católicos e o “restrito” dos protestantes. Ambos sujeitos ainda a controvérsias sobre o que é “inspirado” e o que é “revelado”, pois argumenta-se aí que se a inspiração produz livros sagrados, a revelação é o atestado de uma verdade. Alguém, por acaso, consegue ver em toda esse imbróglio algum sinal de condução divina?…
Se todos os livros bíblicos foram escritos sob inspiração do Espírito Santo, então os egípcios também foram igualmente inspirados, porque boa parte dos ditados constantes no livro de Provérbios (de Pv22:17 a Pv24:22) são transcrições do documento egípcio Instrução de Amenemope, escrito por volta de 1200 a.C., portanto mais de duzentos anos antes do reinado de Salomão, a quem se atribui a autoria dos provérbios. Além de egípcias, também se constatou influências acadianas nesse livro.
Mencione-se ainda que há quem faça uma diferenciação entre livro canônico e inspirado; assim, todos os livros inspirados seriam canônicos, mas nem todos os canônicos seriam inspirados. O livro canônico de Eclesiastes, por exemplo, não é considerado inspirado por alguns biblistas. Aliás, o termo “inspiração”, tão exaustivamente repetido pelos teólogos em suas justificativas canônicas, não aparece em lugar nenhum da Bíblia. O mais próximo que temos disso é a repisada frase: “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil para ensinar, para argumentar, para corrigir...” (2Tm3:16).
Antes de mais nada, não existe nada “inspirado” diretamente pelo sempiterno Deus, porque Ele, o Senhor, se encontra a uma distância inconcebível de Suas criaturas mais perfeitas, quanto mais de um simples ser humano. O que existem são escritos indiretamente inspirados, de pessoas para isso agraciadas, que se sintonizaram acertadamente na Vontade de Deus, a qual perflui toda a Criação. O Espírito Santo é a Justiça e a Vontade viva de Deus. Só um texto que se ajuste inteiramente a essa Justiça e Vontade, sem lacunas, pode, talvez, ousar atribuir a si a condição de indiretamente inspirado. E dessa espécie não faz parte “toda Escritura” absolutamente. Conforme alguns estudiosos imparciais já constataram, a tradução correta da afamada sentença da Segunda Epístola a Timóteo é: “Cada Escritura que é inspirada por Deus é útil para ensinar, para argumentar, para corrigir...” Uma simples reordenação, que faz toda a diferença entre o falso e o verdadeiro. Isso, sem falar que o termo “inspirada” que aparece na frase não tem nada a ver com inspiração propriamente, significando apenas “Escritura revestida de autoridade”, conforme explica o especialista B.B. Warfield. O Dr. Warfield é insuspeito para dar essa opinião, pois foi um dos mais ardorosos defensores da inspiração inerrante da Bíblia.
Certos partidários da inerrância bíblica afirmam que a Igreja primitiva, absolutamente, não decidiu quais livros deveriam entrar no cânon sagrado, tendo apenas confirmado aqueles que o povo de Deus já reconhecia como Sua Palavra. Que esse povo tenha escolhido ao longo dos séculos textos adulterados, cuja interpretação o desobrigasse da indispensável movimentação espiritual, escamoteando tudo o mais, não tem a menor importância para eles. Nem são mais capazes de compreender que o onipotente Criador jamais poderia ser autor de tantos absurdos e que, devido a isso, chamar indistintamente esses textos das Escrituras de Palavra de Deus – Vox Scriptura, Vox Dei – não passa de uma enorme, de uma colossal blasfêmia. E também nunca poderão apresentar aí nenhuma desculpa de um desconhecimento qualquer, pois a ignorância nessas coisas só decorre também da crônica indolência de seus espíritos.