O atual sistema tributário brasileiro, pactuado durante os trabalhos da Constituinte de 87/88, herdou muitos conceitos, princípios e tributos adotados pelo modelo implantado pelo regime militar a partir da Emenda nº 18, de dezembro de 1965, e consolidado com as reformas de 66/67.
Mas, o sistema consagrado na Carta de 88 já não é o mesmo. Desde então, muitas mudanças foram introduzidas na formatação do modelo tributário, com as sucessivas mini-reformas sugeridas pelo Executivo Federal. A começar pela criação de uma série de contribuições geradoras de receitas não-compartilhadas com estados e municípios, o que contribuiu para devolver à União o papel centralizador na apropriação das receitas de impostos que a Constituinte pretendeu redistribuir melhor.
A descentralização reclamada pelos estados e municípios que a Constituinte procurou atender, em parte, pretendia corrigir o excessivo centralismo imposto pelo regime militar e que, por sua vez, nada mais era do que uma prática que o Poder Central no Brasil sempre adotou desde os tempos coloniais.
Porém, a descentralização conseguida logo se tornou prejudicada porque não houve a correspondente descentralização dos encargos. Com a diminuição da fatia da União do bolo tributário, o desequilíbrio fiscal das contas públicas na esfera federal foi se agravando, o que levou o governo central a propor sucessivas modificações no modelo tributário, sempre visando aumentar suas receitas. Com isso, a carga tributária foi aumentando e o sistema piorando, com a criação dos chamados “impostos ruins”, incidentes em cascata.
Quando foi instalada a Constituinte, o País apresentava-se com um cenário bastante sombrio. A economia estava em crise e as demandas sociais eram crescentes devido às liberdades conquistadas para reivindicar. No mundo, as experiências neoliberais, lideradas pelos governos de Margareth Thatcher, na Inglaterra, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, abriam caminho para a elaboração de um receituário de ajustes e estabilização das economias em crise, que ganhou o nome de “Consenso de Washington”.
Esse receituário tinha como premissa a diminuição do papel do Estado na área social e o fim de sua intervenção na atividade econômica. As recomendações do tal consenso, com aval do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, começaram a ser aplicadas em países asiáticos e latino-americanos. Elas sugeriam, basicamente, o seguinte:
Ajuste fiscal: o Estado devia se limitar a gastar dentro dos limites da arrecadação, eliminando o déficit público;
Redução do tamanho do Estado: com a limitação de sua intervenção na economia e com o enxugamento da máquina pública;
Privatização: o Estado deveria vender as empresas que não se relacionassem com as atividades específicas da administração pública;
Abertura comercial: com a redução das alíquotas de importação, estímulos às exportações e adesão ao processo de globalização da economia;
Fim das restrições ao capital externo: com a eliminação dos empecilhos aos investimentos estrangeiros, tanto no se tor produtivo quanto no setor financeiro, para que pudessem competir em igualdade de condições com os investidores nacionais;
Desregulamentação: deixando que o mercado regule o funcionamento da economia;
Reestruturação do sistema previdenciário: com a criação de fundos de pensão, administrados pelo setor privado;
Investimentos em infra-estrutura: com a abertura do setor para os capitais privados, em especial nas áreas de energia, telecomunicações e petróleo;
Contenção dos gastos públicos: com o fim da aplicação de recursos públicos em obras faraônicas.
O Brasil estava na contramão desse consenso, pois seu projeto econômico e de gestão estatal se baseava no oposto de tudo que estava sendo sugerido pelo receituário acordado em Washington, a começar pelo aumento dos gastos públicos de um Estado cheio de encargos e com amplos setores da economia estatizados.
A Constituinte contribuiria para aumentar os gastos estatais e ampliar a rejeição às recomendações do consenso, ao conceder estabilidade para contratados pelo serviço público sem concurso e não estatutários; ao universalizar os benefícios da previdência social sem as correspondentes contribuições e consagrar o direito à incorporação de salários e gratificações a servidores que ocuparam cargos de confiança e chefia, inclusive quando da aposentadoria.
Tendo em vista que o nosso País acabara de sair de um longo período de ditadura, e vivendo um momento de fortes demandas sociais, o texto final da Constituição, promulgada pelo Poder Constituinte de 5 de outubro de 1988, foi considerado pelo seu então presidente, deputado Ulisses Guimarães, como a “Constituição cidadã”, levando em conta os avanços apresentados em termos de direitos civis, políticos e sociais. Mas, estava criado um grande problema para as administrações públicas nas três esferas de governo: as receitas estavam longe de cobrirem as despesas.
O Poder Constituinte procurou manter a linha racionalizadora e modernizadora das reformas de 65/67 na modelagem do sistema tributário nacional, mas com importantes inovações. A começar pela inédita descentralização das competências e das receitas dos impostos. Os municípios, também definidos como entes federativos, tiveram suas câmaras de vereadores elevadas à condição de Poder Constituinte municipal nas eleições de 1988, com atribuição de elaborar suas leis orgânicas nos limites das constituições federal e estadual.
Os estados, com a descentralização, ganharam os impostos sobre serviços - combustíveis, telefonia e energia elétrica -, todos incorporados ao anterior imposto sobre circulação de mercadorias, criando-se o ICMS, nosso tributo sobre valor agregado. Os municípios ganharam expressiva participação nas receitas geradas pelos impostos sobre a renda e sobre produtos industrializados, ambos federais. Mais 25 % do ICMS e 50 % do imposto sobre a propriedade de veículos automotores - IPVA -, estes dois últimos de competência estadual.
No mais, a Constituinte definiu o sistema tributário, especificando cinco modalidades: impostos, taxas, contribuições de melhorias, contribuições especiais e empréstimos compulsórios, estas duas últimas de exclusiva competência da União.
Ao concluir seus trabalhos, o Poder Constituinte deu ao sistema tributário brasileiro a seguinte configuração:
Importação de produtos estrangeiros;
Exportação de produtos nacionais ou nacionalizados;
Renda e proventos de quaisquer natureza;
Produtos industrializados;
Operações financeiras;
Propriedade territorial rural;
Contribuições de melhorias;
Taxas.
Transmissão causa mortis e doação de quaisquer bens ou direitos;
Sobre circulação de mercadorias e sobre serviços;
Propriedade de veículos automotores;
Contribuições de melhorias;
Taxas.
Propriedade predial e territorial urbana;
Transmissão inter vivos de bens imóveis;
Sobre serviços de quaisquer natureza;
Contribuições de melhorias;
Taxas.
Ao mesmo tempo em que definiu as competências, as modalidades e a separação dos tributos para cada esfera de governo, a Constituinte estabeleceu limites ao poder de tributar, atribuindo direitos aos contribuintes para evitar o arbítrio e abusos por parte do Fisco.
Embora melhorando, o sistema tributário concebido pela Constituinte de 87/88 começou a ser criticado em seguida à sua aprovação. Uns diziam ser tímido porque não gerava receitas suficientes para pagar a elevada carga de despesas do Estado. Outros criticavam a sua complexidade por exigir um cipoal de legislações, notadamente aquelas que regulamentavam a arrecadação do nosso imposto sobre valor agregado, o ICMS, desdobradas em 27 legislações, uma para cada estado.
Logo se verificou que ainda restavam resquícios de bitributação, ao se constatar que IPI e ICMS se superpunham em uma mesma base de contribuintes e sobre as mesmas mercadorias. Mas, o que mais chamou a atenção foi a defasagem de receitas em relação às despesas da União, razão pela qual o governo federal começava a pressionar o Congresso para iniciar uma reforma tributária, ao mesmo tempo em que propunha a criação de contribuições especiais.
Vale dizer que o modelo tributário instituído pós-regime militar estava longe de agradar ao Estado arrecadador, e menos ainda ao contribuinte pagador. A União perdeu receita com ele, estados e municípios ganharam, mas continuam reclamando, e com razão, uma fatia maior na repartição do bolo tributário. Os contribuintes protestam contra a elevação da carga de impostos e do preço a ser pago para recolher os tributos regidos por uma legislação altamente complexa. A sociedade permanece inconformada com o peso dos tributos indiretos e o baixo retorno em serviços prestados pelo Estado em troca da sua contribuição.
De modo que instalou-se o debate voltado para uma reforma tributária que viesse corrigir as distorções do sistema vigente. O contribuinte e a sociedade propõem menos impostos e uma legislação simplificadora. Os empresários reclamam a desoneração do setor produtivo para reduzir custos de produção e poder enfrentar a concorrência nos mercados nacional e internacional. Os governantes dos três níveis da administração estão ansiosos por uma reforma que aumente as receitas, buscando o equilíbrio fiscal.
A União, com o poder do qual dispõe, não tem esperado por uma reforma geral do modelo tributário. Já encaminhou sucessivas propostas genéricas pelas quais nunca se empenhou, enquanto foi conseguindo do Congresso Nacional mudanças tópicas, além da criação das contribuições especiais para fazer caixa e cobrir despesas, o que elevou a carga tributária de 27 % para 35 % em relação ao PIB. Com elas, atenuou seus problemas. A mesma sorte não tiveram os estados e municípios que vivem em aperto fiscal sem precedentes, ainda mais depois que renegociaram suas dívidas com a União, pelas quais pagam 13 % de suas receitas líquidas, e depois que entrou em vigor a Lei de Responsabilidade Fiscal.
As contribuições especiais criadas pela União foram justificadas pela adoção do Sistema Unificado de Saúde pública, o SUS, e pela necessidade de arranjar receita para o custeio do sistema previdenciário universalizado. Assim é que foram criadas, no decorrer de poucos anos após a promulgação da Carta de 88, três contribuições especiais com grande capacidade arrecadatória: a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (Cofins), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido das empresas (CSLL) e a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), geradoras de uma receita de mais de 100 bilhões de reais, em 2002, e que passaram a responder por mais de 43 % das receitas tributárias cobradas pelo governo federal.
A extinção dessas contribuições vem sendo reclamada por empresários e políticos, assim como do PIS/Pasep, uma criação do regime militar. O Executivo federal nunca aceitou extinguir essas fontes de receita, a não ser que apareçam outras que as substituam. E a explicação é simples: enquanto outros impostos mantêm receitas estáveis, e até decrescentes, em termos percentuais em relação ao PIB, como tem ocorrido com o imposto sobre a Renda, as contribuições oferecem crescimento em suas receitas, em termos relativo e também absoluto.
Vejamos: segundo dados da Secretaria da Receita Federal, em 1998 o imposto sobre a renda de pessoas físicas e jurídicas, correspondia a 34,44 % do total da arrecadação federal, já as contribuições especiais respondiam por 31,63 % no mesmo ano. No ano de 2001, segundo a mesma fonte, a receita obtida com o imposto sobre a renda, de pessoas físicas e jurídicas, caía para 32,99 % do total dos tributos arrecadados pela União, enquanto que as receitas obtidas com as contribuições passaram a corresponder a 42,70 % de toda a arrecadação de tributos federais.
Ocorre que as contribuições, um tipo de imposto altamente regressivo mas de fácil arrecadação, não são recomendáveis para fazer justiça fiscal. Contudo, elas são os instrumentos com os quais o governo federal cobre o rombo da Previdência e gera superávites orçamentários para pagamento de parte dos juros da dívida pública.
Contrastando com o crescimento do papel das contribuições para geração de receitas (um imposto que todos pagam), a taxação da renda que poucos pagam vai perdendo peso na arrecadação. A Secretaria da Receita Federal informa que, no ano de 2000, somente 12,49 milhões de declarações de pessoas físicas foram apresentadas, de um universo de 87 milhões de pessoas economicamente ativas, segundo o IBGE, sendo que desse total 76,7 milhões são empregados e, desses, 36,4 milhões com carteira assinada e 40,3 milhões sem registro.
O baixo rendimento do imposto sobre a renda para as receitas que formam o bolo tributário se deve a que poucos pagam e, praticamente, a não existência de progressividade na taxação dos rendimentos. Os que podem pouco estão nivelados com os que podem muito. Basta lembrar que só existem duas alíquotas no Brasil: a de 15 %, para quem tem rendimentos de R$ 1.057 a R$ 2.114 por mês, e a de 25 %, para quem tem rendimentos superiores a R$ 2.115 por mês, sendo que esta última alíquota foi elevada provisoriamente para 27,5 %.
Nota-se que um assalariado que ganha pouco mais de 2 mil reais por mês tem seus minguados rendimentos taxados no mesmo nível daqueles cujos rendimentos podem chegar a 10, 20, 50, 100 mil reais mensais, isso em um país de escandalosa concentração de renda, diferentemente de países onde há uma mais justa distribuição da renda, cuja progressividade, em várias alíquotas de taxação da renda, propicia mais justiça fiscal. A Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que congrega os países mais industrializados, registra as alíquotas máximas de taxação sobre a renda. Vamos citar alguns países para comparação com o Brasil. Veja tabela:
País | Alíquota Máxima (%) |
---|---|
Fonte: OCDE | |
Bélgica | 65,0 |
França | 54,0 |
Alemanha | 53,0 |
Itália | 51,0 |
Japão | 50,0 |
Reino Unido | 40,0 |
Estados Unidos | 39,0 |
Brasil | 27,5 |
Dá para perceber que a nossa situação, em comparação com esses países, onde a renda é distribuída com mais justiça, é extremamente desfavorável. Nesses países, citados na tabela, é notória a progressividade e a taxação leva em conta a capacidade contributiva dos detentores da renda. No Brasil, é notória a regressividade em todos os tipos de tributos, inclusive o da renda. Quem pode muito quase não paga.
Se o nosso modelo tributário está cheio de distorções, cheio de “impostos ruins” que criam o chamado “custo Brasil”, se é um modelo que não estimula a produção e o crescimento econômico, então, a reclamada reforma tributária torna-se imperativa neste momento de crise de financiamento do Estado e de sua dívida pública. Mais ainda, para soltar as amarras que seguram o crescimento de um País que precisa gerar emprego e riqueza, para combater a miséria e as desigualdades sociais e regionais. Já se viu que as reformas tópicas ou mini-reformas empreendidas por iniciativa do Executivo federal só pioraram o sistema saído da Constituinte.
Cabe, portanto, ao Congresso Nacional, tomar em suas mãos a iniciativa da reforma do modelo tributário vigente. Reforma inovadora, sustentável e indutora do desenvolvimento da economia nacional. Essa iniciativa é tanto mais importante e premente, considerando o acelerado processo de deterioração das finanças públicas que vem se agravando desde a implantação do plano de estabilização da moeda, em meados de 1994, quando foi lançado o real. Por não ter sido alicerçado em um rigoroso ajuste fiscal, o plano não conseguiu firmar-se até os dias de hoje. Ao primeiro sinal de crise em qualquer lugar do mundo, fica a economia brasileira exposta aos seus efeitos pelo precário equilíbrio dos nossos indicadores macroeconômicos.
Vale lembrar que, antes da adoção do plano de estabilização, a administração pública recorria à emissão de papel-moeda para financiar gastos e déficits orçamentários. Uma prática irresponsável pela qual a sociedade pagou um alto preço durante várias décadas. Sem o “dinheiro fácil” saído das rotativas da Casa da Moeda para cobrir os rombos que persistiam, nossos governantes passaram a recorrer à emissão de títulos da dívida pública. Com taxas de juros suicidas, as dívidas, tanto da União quanto de estados e municípios, foram se multiplicando. Como consequência, logo os fundamentos do programa de estabilização foram se deteriorando.
Para agravar o desequilíbrio fiscal de um sistema de governança desabituado a zelar pela estabilidade da moeda nacional, começaram a aparecer os chamados “esqueletos” de programas sociais mal sucedidos, na forma de contas a pagar ou de dívida a ser reconhecida. Um enorme estoque das chamadas “moedas podres” foi desovado no programa de desestatização, reduzindo drasticamente o efeito arrecadador das privatizações a um nível muito aquém do desejado e irrelevante para conter a progressão da dívida pública.
É inegável que o Plano Real lançado no último ano do Governo Itamar Franco, foi resultado de competente engenharia econômica e um avanço importante na luta para derrotar a cultura inflacionária que se enraizou no País. Mas ele não começou, como já foi visto, ancorado na responsabilidade fiscal. Ao contrário, as âncoras recomendadas pelos criadores do plano foram o dólar barato, para facilitar as importações e impedir o desabastecimento, e juros altos, para inibir o consumo. Com tais âncoras o plano não se sustentou. Veio a crise cambial do final de 1998 e início de 1999. Com ela a ameaça da sobrevivência do plano.
Para enfrentar a crise e tentar segurar o programa de estabilização, o Brasil teve que recorrer ao Fundo Monetário Internacional, providência que já não adotava em mais de uma década. O FMI concordou em conceder uma “ajuda” de US$ 41,3 bilhões para restabelecer a saúde do real, porém, mediante a condição de um ajuste fiscal rigoroso, capaz de gerar superávites primários de mais de 3 % em relação ao PIB. Foi uma exigência vexaminosa feita pelo Fundo, mas o nosso Governo teve que aceitar para conseguir o empréstimo. Foi assim que, finalmente, começamos operar a gestão das finanças públicas com responsabilidade fiscal e monitorados pelo FMI. Nessa altura dos acontecimentos, os fundamentos do plano de estabilização já estavam arruinados.
E assim continua até hoje. Os superávites, que vêm sendo alcançados às custas de uma carga tributária crescente e inibidora do crescimento econômico, não estão sendo suficientes para quitar nem a metade do custo da dívida pública. As oscilações descontroladas do câmbio desorganizam as finanças das empresas que importam insumos e têm dívidas no exterior. A alta exagerada da moeda americana já vem influenciando gravemente a elevação dos preços internos e provocando o retorno de um ciclo inflacionário indesejável. A taxa de inflação de 2002 foi três vezes maior do que a meta estabelecida pelo Banco Central. Todos esses elementos negativos mostram a insegurança quanto à continuidade do plano de estabilização.
Isso tudo apesar de já terem havido mais dois “socorros” do FMI depois do primeiro acordo firmado em 1999. O último, que está em vigor, é de mais de 30 bilhões de dólares e, mesmo assim, as vulnerabilidades da nossa economia continuam presentes. Vale dizer, portanto, que o ajuste fiscal tardio perdeu a eficácia que teria no início do programa de estabilização. A lição a ser tirada de todo esse processo é de que, em uma sociedade que pretende ser desenvolvida e próspera, não se pode conviver com a irresponsabilidade fiscal. O Estado precisa se organizar de tal forma que seus gastos não podem estar sempre acima das suas receitas, sob pena de se expor a um colapso econômico, tal como ocorreu recentemente com a Argentina. E aí não tem por que reclamar do FMI e, ao mesmo tempo, buscar sua “ajuda”.
Uma sociedade que pretende ser desenvolvida e próspera, ainda mais em um grande país cheio de recursos, tem que andar com suas próprias pernas. Não pode ficar esperando “ajuda” de ninguém para resolver seus problemas. Tem que tomar em suas mãos a gerência de seus destinos, com relações múltiplas com os povos do mundo inteiro, mas sem ingerências e dependências externas. E quando essa sociedade tem pela frente desafios da ordem dos que temos aqui no Brasil, é preciso, além de administrações públicas austeras e responsabilidade fiscal sem tergiversações, muito sacrifício, feito por todos e não apenas pela parte da população mais desfavorecida, como normalmente acontece em nosso País.
Não se pode perder de vista que as dívidas interna e externa já estão na casa dos 70 % do PIB, que a inflação já é uma ameaça ao bater nos dois dígitos em 2002, o que não acontecia há cerca de oito anos. Esses desajustes não vão ser superados com “ajudas” de órgãos ou banqueiros internacionais, o que só contribuiria para perpetuar a dependência e a pobreza da Nação. Esses desajustes terão que ser superados com a renegociação da dívida pública e muito esforço fiscal.
Contudo, para que as negociações da dívida sejam sustentáveis, o Estado brasileiro terá que dispor de um sistema tributário consistente, gerador de recursos suficientes para recuperar a sua credibilidade, além de indutor do crescimento econômico. Essa é a única saída para que o nosso País deixe de depender das chamadas “ajudas” que só estimulam o adiamento da solução para os nossos problemas econômicos e sociais.
Com um sistema tributário mais justo e adequado às necessidades de desenvolvimento da economia nacional, o Brasil não precisará recorrer ao capital especulativo, nem interno nem externo. Internamente, a poupança privada irá naturalmente para o sistema produtivo, gerando emprego, renda e mais riqueza. Já os capitais externos virão porque, aqui, vão encontrar oportunidades para fazer bons negócios. Mas, para que isso ocorra, os fundamentos da nossa economia terão que se apresentar sólidos, a começar pela área fiscal.
Se, na área fiscal, o País se apresenta saudável e seguro, os outros fundamentos macroeconômicos - entre os quais, o câmbio estável, os juros baixos, a inflação sob controle e a saúde da moeda - também seguirão a mesma tendência. Tudo isso fará do Brasil um lugar atraente para grandes investimentos, em razão de seu imenso potencial de riquezas e enorme mercado consumidor, premissas essenciais para o desenvolvimento de uma economia de perfil global e de escala. Atingir tais objetivos é possível, mas para tanto uma reforma tributária profunda e inovadora torna-se vital. As distorções do atual sistema precisam ser eliminadas.
Nosso modelo de tributação é benevolente para com o capital e as elevadas rendas, porém extremamente severo para com os assalariados, para com a população de baixa renda e para com os consumidores, porque se apóia nos impostos indiretos. Ele taxa com severidade os que podem menos e trata com tolerância os que podem mais. Além de tudo isso, é ainda a população de menor renda quem paga o amargo preço dos impostos invisíveis, representados pelas elevadas taxas de juros e de inflação; hoje, as duas, somadas, representam uma terrível erosão nos rendimentos daquela parte da população menos protegida e dependente do crediário para ter acesso a bens de consumo de maior valor. A proposta aqui sugerida pretende corrigir essas distorções.
Estamos entrando em um novo momento histórico em nosso País. Um novo governo começa a gerir os destinos do Brasil carregando as maiores esperanças de justiça e uma vida melhor. É hora de mudar o modelo fiscal para fazer justiça e dar curso a um ciclo de desenvolvimento sustentado e distribuidor das riquezas criadas pelo trabalho dos brasileiros, e em todo território o nacional. É preciso considerar que o Brasil está entrando em um novo século carregando os mesmos problemas com os quais se defrontava no início do século passado, que fez dele um País desigual e injusto, pobre para a imensa maioria e opulento para uma parcela mínima da população.
Não obstante o imenso potencial de riquezas, o Brasil começa o século 21 com, praticamente, as mesmas áreas de algum desenvolvimento e alguma prosperidade, tal como começou o século 20. Na maior parte do seu imenso território, continuam reinando a pobreza, o atraso social e os grupos oligárquicos que sempre frearam o progresso nacional. Os diversos sistemas tributários adotados até aqui têm sido usados para sustentar privilégios de uma minoria que usufrui dos benefícios de um “Estado máximo”, enquanto reserva à imensa maioria um “Estado mínimo” ou “Estado nenhum”. Essa atitude tem muito a ver com a persistência do atraso econômico e social da Nação, da concentração de pequenos pólos de desenvolvimento em uma área reduzida do território nacional e da absurda concentração de renda pessoal que vigora no País.
A melhoria do modelo fiscal conseguida na Constituinte de 88, principalmente no tocante à modernização, racionalidade e efeito arrecadador, foi insuficiente para acabar com as distorções. Os defeitos já criticados à exaustão (regressividade e dificuldades de harmonização com outros sistemas de parceiros comerciais) persistem. Permanecem impostos anacrônicos, de altos custos para administrar, baixa capacidade de gerar receitas e complicadores do sistema.
E se tudo isso não bastasse, constatam-se falhas gritantes na legislação que propiciam e estimulam a “guerra fiscal”, envolvendo estados e municípios, além da abertura de brechas para a elisão, sonegação ou contestação de débitos tributários na justiça, sem falar na enorme inadimplência que eleva a dívida ativa a dezenas de bilhões de reais. Os 55.767 artigos, os 33.374 parágrafos, os 23.497 incisos e as 9.956 alíneas, números contabilizados envolvendo a nossa legislação tributária, atestam sua complexidade e o custo elevado de sua administração. Percebe-se que o avultado número de dispositivos e normas não é suficiente para torná-la invulnerável ao contrário, é nesse emaranhado da legislação que a vulnerabilidade do sistema aparece e oferece as armas para a burla adotada por aqueles que não querem pagar os impostos devidos.
A excessiva centralização das receitas na esfera da União, e também das competências, é uma prática historicamente adotada e decorre da visão dos tempos do Brasil rural, salpicado de alguns núcleos urbanos sujeitos à tutela do Poder Central. Era a visão de que o País deveria ser administrado como se uma fazenda fosse. É provável que as expressões “Fazenda pública”, “Secretaria da Fazenda”, “Ministério da Fazenda” (e não da economia ou das finanças) contenham, no fundo, a concepção de que o Brasil altamente urbanizado deva continuar sendo tratado e administrado como se fosse uma fazenda de um senhor que, antes, do Rio de Janeiro e, hoje, de Brasília, controla toda a vida de seus moradores…
Essa concepção centralizadora precisa ser mudada para que o sistema tributário se torne mais justo e compatível com uma federação republicana. Precisa ser mudada, também, para que a gestão fiscal seja mais transparente, mais eficaz, mais econômica e de maior rendimento social. Não é possível que a União continue mantendo sob sua competência 68,7 % da arrecadação e abocanhando 62,31 % das receitas obtidas com a cobrança de impostos.
Temos, portanto, um sistema fiscal cheio de defeitos, mas é verdade também que já demos alguns passos para melhorá-lo na direção certa. Já temos uma Lei de Responsabilidade Fiscal que começa produzir uma nova cultura de governança no País. Recentemente, o Congresso Nacional aprovou uma legislação que permite às administrações tributárias terem acesso a dados dos contribuintes suspeitos de sonegação, sem os entraves que a falta de uma regulamentação clara de dispositivo constitucional apresentava para que se fizesse uma efetiva fiscalização do “patrimônio, dos rendimentos e das atividades econômicas do contribuinte”, conforme prevê o parágrafo 1º do Art. 145 da Constituição Federal.
Partindo dessas considerações, apresentamos a seguir um esboço da proposta que reforma o sistema tributário nacional e altera dispositivos do capítulo I, do título VI, da Constituição Federal, com o propósito de simplificar o sistema, diminuindo o número de impostos, eliminando aqueles que não exercem nenhum papel arrecadador, ampliando a base de contribuintes, reduzindo o papel centralizador da União, valorizando o papel do Poder Local - tanto estadual quanto municipal -, desonerando a folha de pagamento para que o setor produtivo seja mais competitivo e definindo mais claramente as competências de cada esfera de governo.