“Rejeitai toda impureza e todos os excessos do mal, mas recebei com mansidão a Palavra que em vós foi implantada, e que é capaz de vos salvar.”(Tg1:21)
Um dos mais nítidos sintomas do paulatino predomínio do raciocínio nas doutrinas cristãs foi o início do enaltecimento da personalidade terrena de Jesus e eventos relacionados à sua vida (verdadeiros ou não), em detrimento de sua Palavra. O Cristianismo foi se afastando cada vez mais da conduta dos primeiros cristãos, que “no início se tornaram ministros da Palavra” (Lc1:2). A sagrada Palavra de Jesus foi sendo esquecida paulatinamente, soterrada por um culto meramente pessoal que ele jamais quisera. Pouco a pouco a Palavra viva foi sendo envolta numa nódoa de mentira, a princípio tênue, mas que se espessou nos séculos seguintes a ponto de não deixar mais reconhecível os verdadeiros ensinamentos do Filho de Deus.
Do século IV ao VI discutiu-se acirradamente a “natureza de Cristo” ao longo de quatro concílios. Durante todo esse tempo não chegou à mente de nenhum dos ilustres debatedores cristãos a idéia de que se essa questão tivesse a mínima importância para a salvação da alma, Jesus certamente a teria esclarecido com todos os detalhes. Conforme ele fez, por exemplo, na sua explicação sobre os vários planos da Criação: “Na Casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim eu vo-lo teria dito” (Jo14:2). Mas a nenhum daqueles eminentes teólogos chegou esse pensamento tão simples. Nem a eles e nem aos que lhe sucederam, que durante outros tantos séculos ficaram especulando sobre o que teria movido Deus-Pai a criar o Universo… Seria esperar demais de todos esses que sempre se ocuparam de modo estritamente intelectivo com a doutrina professada por Jesus e cuidaram de deslustrar sua Mensagem. Os fiéis de hoje, leigos ou não, se esmeram em entoar hosanas à figura terrena de Jesus de Nazaré, a revestir com palmas os relatos de sua vida, para logo em seguida crucificar dentro de si sua Palavra Salvadora.
Ao longo da Idade Média a devoção à pessoa de Jesus – não a obediência à sua Palavra – cresceu desmesuradamente, ao mesmo tempo em que aumentava na mesma proporção o culto a Maria e aos santos, desencadeando-se ainda um entusiasmo frenético por lugares sagrados. Onde havia escassez de lugares sacros, construía-se um, surgindo então as imponentes catedrais, a maior parte delas dedicadas à Virgem Maria e objeto de acirrada rivalidade entre as cidades da Europa, para ver qual delas edificava a mais suntuosa. Vem também dessa época lúgubre as imagens do Cristo crucificado e a ênfase nas suas chagas e em seu sangue.
Também é desse tempo sinistro da Idade Média a crença de que o moribundo que morresse sem confessar os pecados perderia seu lugar no Paraíso… O recurso aos santos, que por terem amealhado em vida um grande patrimônio de boas obras podiam ceder parte delas a um pobre mortal mediante orações, vem igualmente desse obscuro período da história, tendo sido aprovado no Concílio de Trento. Os santos medievais, inclusive, eram muito mais poderosos que os de hoje, detendo até a prerrogativa de causar doenças ao invés de curá-las, caso ficassem descontentes com seus devotos… Pululavam relatos de vinganças que santos ultrajados eram capazes de exercer sobre os amedrontados fiéis. Nos últimos séculos da Idade Média registravam-se bem umas quarenta doenças diretamente relacionadas a santos.
Realmente, até a chegada da nossa era, nenhuma outra época da história humana mereceu tão apropriadamente o título de Idade das Trevas como a Idade Média. A escritora Karen Armstrong diz que nessa época “as pessoas pareciam concentrar-se em qualquer coisa, menos em Deus.”
Todos esses fatos grotescos, porém, foram uma decorrência natural da crescente supremacia do raciocínio sobre o espírito, pois por sua própria constituição aquele só pode encontrar justificativas e explicações em coisas materiais, terrenas, já que ele próprio é um produto da matéria. O que se acha acima da matéria ele descarta, ou então substitui por configurações de fantasia criadas por ele mesmo. E assim aconteceu que ao longo dos séculos os cristãos foram deixando de lado a Palavra salvadora trazida por Jesus, porque lhes parecia irrelevante, sem importância em face dos aspectos terrenos de sua vida, sistematicamente enaltecidos e invariavelmente desvirtuados pelo clero. Deixaram de lado o mais precioso, menosprezaram o maior tesouro que essa Terra já conheceu e saíram à cata de lantejoulas sem valor.
A fé cristã foi construída em cima da pessoa de Cristo. Contudo, Jesus jamais deu qualquer indicação de que desejava um culto pessoal de si mesmo. Nunca. Muito pelo contrário. Mais de uma vez rejeitou o que era de pessoal em relação a si, sempre indicando para o Pai: viera em nome do Pai (cf. Jo5:43), falava do que vira junto ao Pai (cf. Jo1:18; 8:38), recebia ordens do Pai (cf. Jo10:18; 14:31; 15:10), transmitia a Palavra e o ensinamento do Pai (cf. Jo3:34; 8:28; 12:49,50; 14:24; 17:8,14), realizava as obras do Pai (cf. Jo5:36). Sua doutrina se resumia em fazer a Vontade do Pai. Só no Evangelho de João, Jesus se refere ao Pai mais de uma centena de vezes. Apesar de não ter convivido com o Mestre, o apóstolo Paulo deu mostras de conhecer muito bem seu modo de atuação, pois nunca se preocupou em narrar detalhes da vida pessoal dele em suas epístolas.
Jesus foi a Palavra de Deus encarnada na Terra. Se alguém alimentasse seu espírito com essa Palavra, isto é, se a assimilasse em seu íntimo, passaria então a viver de maneira certa na Criação, e assim acabaria também por alcançar um dia o Paraíso, onde lhe estaria reservado seu galardão, a coroa da vida eterna. Os que assim agiam, e também os poucos que ainda procuram agir dessa maneira hoje, são os “regenerados de semente incorruptível mediante a Palavra de Deus, a qual vive e é permanente” (1Pe1:23).
Em diversas ocasiões Jesus procurou transmitir aos homens essa imagem da Palavra, que era ele próprio, como sendo um alimento espiritual, o pão da vida eterna, mostrando com isso a necessidade absoluta de que eles se alimentassem dela. Vejamos algumas dessas passagens:
“Em verdade, em verdade vos digo: Não foi Moisés quem vos deu o pão do céu; o verdadeiro pão do céu é meu Pai quem vos dá. Porque o pão de Deus é o que desce do céu e dá vida ao mundo. Então lhe disseram: Senhor, dá-nos sempre desse pão. Declarou-lhes, pois, Jesus: Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome, e o que crê em mim jamais terá sede.”
(Jo6:32-35)
“Eu sou o pão da vida. Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram. Este é o pão que desce do céu, para que todo o que dele comer não pereça. Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém dele comer viverá eternamente, e o pão que eu darei pela vida do mundo é a minha carne.”
(Jo6:48-51)
Jesus mostra aqui a diferença entre o maná que alimentou os israelitas no Êxodo (Ex16:15) e o verdadeiro pão da vida, que era ele mesmo. Um alimenta o corpo, o outro o espírito. Jesus, a Palavra encarnada, era o verdadeiro pão vindo do céu:
“Eu sou o pão que desceu do céu.”
(Jo6:41)
Quem se alimenta desse pão da vida, a Palavra de Jesus, jamais morrerá, porque o espírito alcançará a vida eterna. O trecho a seguir reforça o sentido:
“Assim como o Pai, que vive, me enviou, e igualmente eu vivo pelo Pai, também quem de mim se alimenta por mim viverá. Este é o pão que desceu do céu, em nada semelhante àquele que os vossos pais comeram, e contudo morreram; quem comer este pão viverá eternamente.”
(Jo6:57,58)
Jesus também podia afirmar que a Palavra que trazia era sua carne e seu sangue, porque ele próprio era a Palavra encarnada, conforme já reconhecera acertadamente no século II o filósofo cristão Justino de Cesaréia. É esse também o sentido da expressão:
“Quem comer a minha carne e beber o meu sangue, permanece em mim e eu nele.”
(Jo6:56)
Permanecer em Cristo é agir da mesma maneira que ele agiu: “Aquele que diz que permanece nele, deve também andar como ele andou” (1Jo2:6). A palavra “comer” utilizada pelo evangelista João tem em grego o sentido literal de mastigar, indicando aí a necessidade de se “ruminar” realmente a Palavra, de degluti-la integralmente, e não acaso de apenas ouvi-la e considerá-la bela. Para os judeus daquele tempo, a imagem de algo sendo engolido significava exatamente a necessidade de total assimilação, tal como aparece no Apocalipse (cf. Ap10:9) e na narrativa que Ezequiel faz da sua visão: “Abri então a boca e ele me deu o manuscrito a comer. E disse-me: ‘Alimenta-te e sacia-se com este manuscrito que agora te dou’” (Ez3:2,3). De nada adianta ao ser humano saber da Palavra se em tudo não agir de acordo, se não fizer uso dela como alimento para todo o ser. Com tal proceder ele não saciará sua fome espiritual.
Além do pão, Jesus também utilizou a água como metáfora para a necessidade de os seres humanos assimilarem a Palavra e viverem de acordo com ela. Quando inquirido pela mulher samaritana se ele era “maior que o pai Jacó que lhes dera o poço” (Jo4:12), Jesus respondeu:
“Quem beber desta água tornará a ter sede; aquele, porém, que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede para sempre, pelo contrário, a água que eu lhe der será nele uma fonte a jorrar para a vida eterna.”
(Jo4:13,14)
Jesus repete a analogia da água na passagem abaixo:
“Se alguém tem sede, venha a mim e beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva.”
(Jo7:37,38)
No seu incansável esforço de fazer os homens entenderem que o cumprimento da Palavra que trazia era a única possibilidade de salvação para eles, Jesus ainda fez uso de outros paralelismos:
“Eu sou a Luz do mundo; quem me segue não andará nas trevas, pelo contrário, terá a Luz da vida.”
(Jo8:12)
“Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será salvo.”
(Jo10:9)
“Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá, e todo o que vive e crê em mim não morrerá eternamente. (…)
Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai a não ser por mim.” (1)
(Jo11:25,26;14:6)
Unicamente pela observância irrestrita da Palavra, pelo seu cumprimento, o ser humano pode conseguir sua salvação. Somente este entra de fato pela porta Jesus, a Palavra viva, e por conseguinte segue Jesus com o coração. E somente aquele que o segue pode “nascer de novo” (Jo3:7), e com isso “passar da morte para a vida” (Jo5:24). A Palavra é o Caminho, é a Verdade, é a Vida. A Palavra é. Só a assimilação da Palavra de Deus pode mudar o íntimo do ser humano, seu coração. Assim se cumpre a promessa do profeta Ezequiel, de que o Senhor nos daria um coração novo e colocaria em nós um espírito novo (cf. Ez36:26). Ficaremos assim libertados do antigo “coração de pedra” (Ez11:19), tão pesado, que havíamos moldado para nós mesmos, e que nos faria afundar espiritualmente por efeito da Lei da Gravidade.
É também nesse sentido, de um renascimento espiritual, que o apóstolo Paulo exortou os Efésios a “se despojarem do velho homem e se revestirem do novo homem, criado segundo Deus em justiça e retidão, procedentes da Verdade” (Ef4:22,24), algo que os Colossences também já vinham fazendo: “Não mintais uns aos outros, pois já vos despojastes do homem velho e da sua maneira de agir e vos revestistes do homem novo” (Cl3:9,10). Essa mudança, porém, tem de ser total, nada podendo permanecer do velho, do errado, conforme Jesus já indicara claramente nessas outras analogias:
“Ninguém põe remendo de pano novo em vestido velho, porque o remendo tira parte do vestido e fica maior a rotura. Nem se põe vinho novo em odres velhos, do contrário rompem-se os odres, derrama-se o vinho e os odres se perdem. Mas põe-se vinho novo em odres novos, e ambos se conservam.”
(Mt9:16,17)
O “pano novo” encolheria e repuxaria a roupa, aumentando o rasgão. O “vinho novo” daquela época era suco fresco de uva; à medida que começava a fermentar, os odres novos (feitos de peles) esticariam-se sem se romper, ao passo que os odres velhos se romperiam devido à perda da elasticidade do couro. Jesus quer dizer aqui que essa renovação do espírito humano não pode conservar nada da errônea vida antiga de até então, do contrário advém o desastre. Não pode ser uma nova vida remendada ou um arremedo de vida nova, mas sim tem de ser uma vida realmente inédita, moldada de acordo com a Palavra da Vida, totalmente livre de conceitos antigos.
Em suas epístolas, o apóstolo Paulo também dá mostras, reiteradas vezes, da importância da Palavra da Salvação, que segundo ele tem “o poder de edificar” (At20:32). Nenhuma das comunidades cristãs e nenhum dos companheiros com que ele se correspondia ficou sem saber da importância da Palavra. Assim, os Romanos ouviram que o Senhor “cumpriria Sua Palavra sobre a Terra” (Rm9:28), a qual “estava perto deles” (Rm10:8); os Coríntios souberam que a “Palavra da Verdade era poder de Deus” (1Co1:18, 2Co6:7); os Gálatas foram “instruídos na Palavra” (Gl6:6); os Efésios, “tendo ouvido a Palavra da Verdade” (Ef1:13) foram instados a “tomar a Palavra de Deus como capacete de salvação” (Ef6:17); os Filipenses foram convidados a “preservar a Palavra da Vida” (Fp2:16); os Colossences deveriam ter “a Palavra habitando ricamente neles” (Cl3:16); os Tessalonicenses “receberam a Palavra”(1Ts1:6), a qual “operava eficazmente neles” (1Ts2:13). Timóteo soube que “a Palavra é fiel e digna de inteira aceitação” (1Tm4:9), e foi chamado a “apresentar-se diante de Deus como obreiro, que maneja bem a Palavra da Verdade” (2Tm2:15); Tito foi informado que os presbíteros deveriam ser “apegados à Palavra fiel” (Tt1:9). Por fim, os Hebreus ficaram cientes de que “a Palavra de Deus é viva e eficaz” (Hb4:12), tendo “formado o Universo” (Hb11:3).
Em outras partes do Novo Testamento, a importância da Palavra viva se repete. O grande Tiago nos diz em sua epístola que “fomos gerados pela Palavra da Verdade” (Tg1:18). Nas suas cartas, João adverte que se não reconhecemos nossos pecados, isso é sinal de que “a Palavra não está em nós” (1Jo1:10), ao passo que “naquele que guarda a Palavra, o Amor de Deus é plenamente realizado” (1Jo2:5). O livro do Apocalipse afirma que aquele que guarda a Palavra será do mesmo modo guardado na “hora da provação que há de vir sobre o mundo inteiro” (Ap3:10). Por fim, quando Jesus afirma que “quem não é por mim é contra mim” (Mt12:30), está dizendo que quem não aceitasse a Palavra enviada por Deus (que era ele próprio) e redirecionasse sua vida por ela, estaria se colocando como inimigo dessa Palavra Sagrada, e a si mesmo se condenaria. Vê-se aí que não há neutralidade possível, não há espaço para mornidão nem hesitação. Em relação à Palavra, temos de tomar tudo ou nada!…
No Antigo Testamento, o louvor à Palavra de Deus é presença permanente, como nesse exemplo: “A Tua Palavra, Senhor, é eterna, estável como o céu” (Sl119:89). Quero evocar apenas mais uma frase, belíssima, extraída desse mesmo capítulo do Saltério: “Tua Palavra é lâmpada para os meus pés e Luz para o meu caminho” (Sl119:105).
Nosso Senhor Jesus Cristo esforçou-se de tal modo em incutir nos homens a necessidade absoluta de viverem estritamente segundo sua Palavra Sagrada, deu tantos exemplos nesse sentido, mas tantos, que seu empenho deveria ter se constituído num antídoto eficaz contra o veneno mortífero destilado pelas ulteriores interpretações de sua obra de redenção, segundo a qual seu assassínio teria sido um acontecimento desejado pelo Alto. Quando foi que ele mencionou semelhante disparate? Onde se encontra nos Evangelhos uma única frase sua afirmando ter vindo “expiar os pecados da humanidade”?… Ele nunca falou nada disso, nunca! Muito menos que uma tal coisa pudesse dar-se através do seu assassinato na cruz.
Conforme visto no primeiro volume deste livro, uma parcela do povo judeu era, naquela época, a mais adiantada espiritualmente, razão pela qual Jesus encarnou em seu meio. Como, então, a morte traiçoeira de Jesus pelas mãos daquele povo poderia salvar quem quer que fosse? Como o assassinato do Portador da Palavra Viva, perpetrado justamente pelos que não quiseram acolher essa Palavra no coração, poderia se tornar uma fonte de redenção, um “ato salvífico” para toda a humanidade?
Os primeiros teólogos da Igreja se debruçaram sobre essa questão, tentando encontrar uma solução que aplacasse o mal-estar natural contra uma concepção assim tão repulsiva, de que a morte do Filho de Deus fora um evento previsto, encontrando-se dentro dos desígnios divinos para salvação da humanidade. Se tivessem dado mais atenção à voz de sua intuição, teriam simplesmente jogado no lixo essa bobagem, sem maiores preocupações.
Mas o raciocínio não lhes deu descanso, e daí surgiram múltiplas tentativas de explicação para o enigma. O bispo Irineu, do século II, sustentava que o Criador havia remido seu povo por pagar a Satanás pelo seu livramento. Um século depois, Orígenes tentou aperfeiçoar as idéias de Irineu e se ateve ao trecho do Evangelho de Marcos onde está dito que Jesus “veio para dar a sua vida em resgate de muitos” (Mc10:45). Intrigado com esse resgate, questionou-se: “A quem ele terá dado a vida em ‘resgate de muitos’? A Deus não pode ter sido. Não terá sido, então, ao Maligno? Sim, pois este último nos prendeu até lhe ser pago o resgate por nós, através de Cristo.” Orígenes chegou à conclusão de que Satanás acabou sendo enganado nessa negociação, pois aceitou o resgate sem perceber que não seria capaz de manter o domínio sobre a divindade de Cristo, de modo que as almas de todos os seres humanos, inclusive as dos que já estavam no inferno, também teriam sido libertadas pela morte de Jesus.
Essa primeira tentativa de explicação (bastante pueril, diga-se), sobreviveu na Igreja por onze séculos. O teólogo John Hick ilustra o fato: “Os escritores e pregadores cristãos geralmente aceitavam a idéia de que a raça humana caíra, pelo pecado, na jurisdição do diabo, e que a cruz de Cristo fora parte de uma barganha com o diabo para resgatar-nos.” Uma barganha na qual o diabo teria levado uma senhora rasteira… O Padre da Igreja Gregório de Nissa (335 – 394) expressou a teoria do resgate nos seguintes termos em seu Grande Catecismo: “Deus pesca a humanidade usando a humanidade de Cristo na cruz como isca.”
No século XI, o abade beneditino Anselmo (1033 – 1109) achava meio difícil que o diabo tivesse quaisquer direitos legais válidos em relação ao Criador, e por isso apresentou a sua “teoria da satisfação” para explicar a morte necessária de Cristo. Segundo essa idéia, a desobediência para com o Criador implicava uma desconsideração da honra e dignidade divinas, exigindo em contrapartida uma penitência ou doação a título de compensação. John Hick explica novamente no que consistiu essa teoria: “Como Deus é o Senhor de todo o Universo, a satisfação adequada para uma desconsideração da honra divina não pode ser efetivada, a não ser que o preço pago a Deus pelo pecado do homem seja algo maior do que todo o Universo. Em conseqüência, a morte voluntária de Cristo na cruz constituiu uma satisfação plena pelos pecados do mundo.” Essa teoria da satisfação de Anselmo também ficou conhecida como “teoria comercial”, porque fazia do sacrifício de Cristo uma transação para satisfazer a honra aviltada de seu Pai.
Como se vê, a teoria de Anselmo continuou no mesmo campo do absurdo, do qual já brotara a primeira concepção, a da permuta com o demo. Isso foi uma decorrência direta da sua conceituação, partilhada atualmente por muitos crentes, segundo a qual o Criador é “o maior Ser concebível”. Essa idéia é falsa, porque Deus não pode ser concebido por nenhuma criatura, muito menos por um ser humano. Qualquer filosofia baseada nessa premissa tem de conduzir a erros, como aconteceu com a teoria de Anselmo.
E é nesse terreno de erros que vicejam ainda hoje as imaginações redentoras de todos os cristãos, que continuam acreditando piamente que a culpa da humanidade, recebida por herança de Adão e Eva, tenha sido remida com um sacrifício mortal e voluntário do Filho unigênito do Criador do Universo. Essa concepção incoerente é a que permanece em vigor nos dias de hoje, com o nome de “conceito penal-substitutivo”. (2)
Segundo esse conceito, com sua morte voluntária Jesus cumpriu o antigo preceito judaico, constante no livro de Levítico, do “bode enviado ao deserto como rito de expiação” (cf. Lv16:7 10,21,22). Desse modo, ele teria sido literalmente o “bode expiatório” dos pecados da humanidade… É impossível encontrar um adjetivo adequado para qualificar razoavelmente uma estultice desse grau. Se os partidários dessa concepção tivessem uma pálida idéia do papel que desempenham com isso, desejariam sumir para os confins de todos os mundos. Nenhum deles ousaria sequer pronunciar novamente o nome de Jesus, tamanha sua vergonha.
Aliás, os dez primeiros capítulos desse livro de Levítico, integralmente moldados pela tradição sacerdotal, (3) parecem mais um detalhado manual de bruxaria do que qualquer outra coisa. Se não estivessem na Bíblia seriam seguramente condenados na Inquisição, tostados juntamente com seus leitores e leitoras, em cumprimento da ordem: “Não deixarás com vida uma feiticeira” (Ex22:17). Só o que se vê ali são receitas de sacrifícios e holocaustos, para se conseguir o perdão dos pecados através do sangue de animais imolados. Animais que deviam ser queimados num altar de sacrifícios, para produzirem um “perfume aplacador ao Senhor”… (cf. Lv1:9,13,17;3:5;4:31; etc.). Uma variante criminosa de antigos cultos pagãos, onde se acreditava que a fragrância da queima de incenso subia até a divindade cultuada.
É incrível que tenha havido (ou que ainda haja) alguém capaz de acreditar que o Todo-Poderoso Criador se alegraria com o assassinato de animais inocentes, e que isso ainda poderia servir para obter o perdão dos pecados. Esses sacrifícios praticados pelo povo eleito não se diferençavam em nada dos exercidos por seus vizinhos pagãos de Canaã. Até mesmo os termos usados para os diferentes tipos de sacrifícios eram iguais aos dos povos idólatras que circundavam Israel. A Bíblia de Jerusalém diz que certas disposições do Deuteronômio e do Código da Aliança do Êxodo se reencontram, “com estranha semelhança”, nos códigos hitita, mesopotâmico, e na coleção de leis assírias… É de se perguntar quantos sacerdotes idólatras, assassinos de animais, daquela época remota, não terão reencarnado em povos degenerados dos tempos posteriores, para repetir suas abominações em novos cultos sangrentos, como os dos Astecas e tantos outros da mesma espécie. Quero transcrever aqui uma passagem do livro apócrifo de Enoch em sua versão eslava, capítulo 58:
“Não haverá neste mundo julgamento de toda alma viva, mas somente do homem. Mas para as almas dos animais há um lugar e uma mansão no grande eão. Porque não ficará aprisionada até o Grande Julgamento a alma de nenhum animal criado pelo Senhor, e todas as almas acusarão o homem... Todo aquele que manchar a alma do animal, todo aquele que alimentar mal a alma do animal, manchará a sua própria alma.”
A Bíblia mostra que foi preciso esperar pela chegada de profetas do calibre de Jeremias, Isaías, Amós e Oséias para que os crimes contra os animais começassem a ser postos de lado entre o povo eleito: “Não falei a vossos pais e nada lhes prescrevi a respeito de holocaustos e sacrifícios, no dia em que os fiz sair do Egito” (Jr7:22); “De que me serve a multidão dos vossos sacrifícios? diz o Senhor. Os holocaustos de carneiros, a gordura dos bezerros, estou farto deles. Não agüento mais crimes e festas” (Is1:11,13); “Se me ofereceis holocaustos e oblações, não os aceito, nem ponho os Meus olhos nos sacrifícios das vossas vítimas” (Am5:22); “Eu [o Senhor] quero amor e não sacrifícios, conhecimento de Deus e não holocaustos” (Os6:6).
Agora, uma pergunta: Como, depois dessas denúncias tão incisivas contra sacrifícios de qualquer espécie, alguém ainda pode supor que o Senhor tenha enviado Seu próprio Filho Jesus como “cordeiro pascal” para a humanidade, a fim de ser por ela imolado como “holocausto expiatório” sobre o imenso altar dos seus pecados? Como pode alguém que não tenha um coração de pedra acreditar nisso? Como é possível ter brotado na cristandade semelhante concepção?…
A suposição de que Jesus tenha vindo à Terra com a estranhíssima missão de ser assassinado por criaturas humanas transviadas é tão extravagante, tão incongruente, tão incrivelmente presunçosa e tola, que tem de trazer algum desconforto interior a qualquer um cujo espírito não esteja totalmente soterrado por entulhos dogmáticos. Inquieto, o ser humano de espírito vivo ouve a voz da sua intuição e reflete: “Se a morte de Jesus, por si só, salva os crentes, então ele não precisaria ter deixado nenhum ensinamento adicional aos seus ouvintes. Não precisaria ter insistido tanto com eles sobre a maneira correta de viver. Não faria nenhuma diferença ser ou não ser ímpio, desde que se tenha fé na sua morte redentora... Mas e se ele não tivesse morrido na cruz?... E se a sua morte tivesse ocorrido de maneira diferente, não violenta? Significaria então que sua extensa doutrina seria destituída de valor, visto que ninguém pode alcançar por si mesmo a salvação?... Se eu não posso alcançar a salvação pelas minhas próprias mãos, então não poderia tampouco ser condenado por meus pecados... Nesse caso, por que Jesus veio pagá-los para mim?”
Este é um tipo de inquietação espiritual a bem-dizer sadio, muito bem-vindo mesmo, porque tal desassossego íntimo pode se converter numa preciosa bóia de salvação para o cristão cujo espírito ainda é capaz de movimentar-se e de se fazer valer. Contudo, caso a pessoa sufoque sua admoestadora voz interior, então ela mesma joga fora essa bóia de salvação e submerge com as demais, as quais já há muito se desfizeram de suas bóias no mar revolto das doutrinas desfiguradas por mãos humanas. Os cristãos que se empenham em livrar-se de suas próprias bóias de salvação, e os que já conseguiram (ou que nunca dispuseram de uma), procuram justificar a concepção do sofrimento necessário e da morte indispensável de Jesus com algumas passagens escolhidas do Antigo e do Novo Testamento.
No Antigo Testamento, a preferida para essa finalidade é o capítulo 53 do livro de Isaías. Nos versículos 4 e 5 deste livro consta que um certo “ele” (sem menção do nome) sofreria por culpa de outrem, como se tal coisa fosse possível e até desejada pelo Alto. Essa figura é conhecida como servo sofredor. Diz o texto: “Ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si; (…) foi traspassado pelas nossas transgressões e moído pelas nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados.” O versículo 10 desse mesmo capítulo ainda ratificaria essa situação de sacrifício desejado: “Todavia, ao Senhor agradou moê-lo, fazendo-o enfermar.”
Não é impressionante? Se esse “ele” for realmente Jesus, então as Escrituras afirmam categoricamente que ao Seu onipotente Pai, o Todo-Poderoso Criador, Fonte da Justiça perfeita e do Amor que tudo abrange, “agradou moê-lo”! Agradou moer Seu próprio Filho!
Qualquer um, cristão ou não, cujo espírito ainda esteja vivo tem de se chocar com essas palavras. Não é possível diferentemente. Qualquer um que ainda dispuser de um sussurro que seja de intuição tem de rejeitar de pronto esta passagem, por absurda e inverídica! Como, então, o Altíssimo, que Jesus chamava de “Pai santo” e “Pai justo” (cf. Jo17:11,25), poderia regozijar-se em moer Seu Filho unigênito, uma parte Dele mesmo?… Moer Seu dileto Filho, de quem dissera: “Este é o Meu Filho amado, em quem me comprazo” (Mt3:17)! E sobre quem ainda repetira por ocasião da transfiguração: “Este é o Meu Filho muito amado; a ele ouvi” (Mc9:7). A ele ouvi!... Ouvi!! Não a ele matai!
Ouvir, para em seguida cumprir! E com isso participar das bênçãos reservadas aos servos úteis na vinha do Senhor. Servos úteis do Senhor, que fizeram jus à coroa da vida eterna. Assim é o sentido completo do “ouvir” nos relatos bíblicos, como nesse outro exemplo: “Quem ouve a minha Palavra, tem a vida eterna…” (Jo5:24).
O que pode, sim, intrigar as pessoas ainda vivas em si, é o fato de o profeta Isaías ter escrito semelhante despautério sobre esse “servo sofredor”. Nessas pessoas, a intuição, mesmo que já quase liquidada pelo carrasco raciocínio ainda se faz ouvir vez por outra… Nelas, “mesmo depois de morto, Abel ainda fala!” (Hb11:4). E então elas se perguntam: “Como pôde o profeta mais famoso e respeitável do passado, citado nominalmente mais de vinte vezes no Novo Testamento, referenciado outras dezenas de vezes, ter escrito tamanha insensatez? Justamente ele, que sempre dá tanta importância à decisão pessoal dos seres humanos, os quais nunca são salvos ou condenados sem que eles próprios o determinem? Será que Isaías não sabia o peso que suas palavras teriam no futuro? Será que ele não estava cônscio da imensa responsabilidade que assumia ao escrever para a posteridade?”
Isaías certamente estava cônscio de sua responsabilidade, mas não o impostor que escreveu essas barbaridades no seu lugar. Conforme explica o renomado pesquisador Samuel Schultz em sua obra A História de Israel no Antigo Testamento, os capítulos de nºs 44 a 55 do livro de Isaías foram escritos por um autor anônimo que viveu por volta de 580 a.C., entre os cativos da Babilônia. Esse autor, chamado hoje de Segundo-Isaías ou Dêutero-Isaías, convenientemente acobertado pelo anonimato, não teve nenhum escrúpulo em introduzir suas baboseiras num dos livros mais importantes da Bíblia. Mas, como não existe crime perfeito, este também deixou pistas: No início do seu livro Isaías cita sua atividade no tempo do rei Ozias – século VIII a.C. (cf. Is6:1), enquanto que no capítulo 44 é mencionado Ciro, rei da Pérsia no século VI a.C. (cf. Is44:28;45:1), portanto duzentos anos depois. Nessa “segunda parte” do livro o vocabulário e o tema principal são completamente diferentes; também não se fala mais uma única vez do próprio autor, e a Assíria, que dominou o reino do norte – Israel, em 722 a.C., é substituída pela Babilônia, que destruiu o reino do sul – Judá, em 587 a.C.
Os que ainda hoje defendem a autoria única de Isaías para todo o livro se rejubilam, extasiados, com a extraordinária profecia que menciona expressamente o nome de um rei – Ciro, duzentos anos antes do seu nascimento… Nem passa pela cabeça deles que os trechos que fazem menção a Ciro possam ter sido escritos depois da sua época e de seu reinado, por um outro autor. Com ar intrigado, o tradutor da Vulgata, Jerônimo, afirma que Isaías parece “estar contando a história do que já aconteceu, ao invés do que ainda está para acontecer”... Esse tipo de ocorrência, porém, é muito bem conhecido dos estudiosos da Bíblia, que o chamam de vaticinia ex eventu – “previsão depois do fato acontecido”. Assim, até eu.
Mas o Dr. Schultz e outros pesquisadores vão mais além, e afirmam que os capítulos de nºs 56 a 66 do livro de Isaías também não são de sua autoria, mas sim de uma terceira pessoa, dessa vez o “Trito-Isaías”, que seria possivelmente um discípulo do Dêutero-Isaías e teria transcrito as condições de vida em Judá no século V a.C. Observa-se que no trecho correspondente a esse Trito-Isaías existem algumas passagens conservadas do livro original de Isaías, dificultando ainda mais o reconhecimento do texto verdadeiro. O lume para discerni-las é a severidade. O texto original do profeta Isaías é extremamente severo e condenatório, enquanto que os trechos enxertados nos capítulos finais da obra são ternos e brandos, às vezes abordando trivialidades picarescas, como a do Senhor conclamando os animais para o repasto em conjunto: “Vós, todos os animais do campo, todas as feras dos bosques, vinde comer” (Is56:9). Muitos estudiosos, inclusive, não limitam o livro a apenas esses dois autores extras, mas adicionam no cadinho numerosos outros autores ainda, a maioria dos quais teria vivido depois do exílio babilônico, chegando até ao século II a.C.
O que nos causa uma certa perplexidade é o fato de os pesquisadores não darem maior importância à existência dessas falsificações comprovadas. Segundo opinião corrente, tal prática servia para “honrar” ou “homenagear” o legítimo autor, ou simplesmente garantir a aceitação do novo texto. Alguns até destacam especialmente a obra do Dêutero-Isaías, chamando-a de “Livro da Consolação de Israel”. Fala-se aí da “profunda e orgânica concepção dêutero-isaiana”, a qual constitui “um fenômeno literário raríssimo, de um texto ativo que remete continuamente a si mesmo”; isso sem mencionar os muitos outros comentários, artigos e pesquisas sobre esse Dêutero-Isaías publicados nos últimos decênios. Parecem estar querendo transportar para os tempos bíblicos a condescendência com a falta de ética que impera nos dias de hoje… Os que sustentam a idéia de “plágios homenageantes” para os textos da antiguidade, bíblicos ou não, certamente não conhecem um relato de Orígenes que, escrevendo por volta de 200 d.C., nos conta de um sacerdote que fraudou um livro sobre Paulo e foi desmascarado; por conta disso, o fraudador perdeu o emprego e foi solicitamente deportado por seus superiores.
Podemos pelo menos afirmar agora que o próprio Isaías não escreveu nenhum desconchavo, pois até há pouco ele era tido como único autor do livro que leva seu nome. Todas as “contribuições” dos demais autores do seu livro passaram à posteridade, desde aquela época, como tendo sido escritas pelo próprio Isaías, fato que não desestimulou os dinâmicos intérpretes adulteradores das Escrituras. O modelo dêutero-isaiano do “servo sofredor” foi introduzido sub-repticiamente na Epístola de Paulo aos Romanos (cf. Rm4:25), apesar de estar claro hoje, conforme assevera o pesquisador Giuseppe Barbaglio, que o acréscimo é completamente estranho ao apóstolo. O renomado biblista e bispo da Igreja Luterana, Eduard Lohse, afirma que “em lugar algum [do antigo Israel] falava-se de um Messias sofredor, que suportaria ultrajes e a morte pelos pecados do povo.” Nunca existiu na literatura judaica nada que sequer se aproximasse da idéia de um salvador da humanidade que a redimiria pelo sofrimento próprio e uma morte sacrifical. O chamado servo sofredor do Dêutero-Isaías é, assim como seu criador, um impostor, uma fraude, sem nenhum respaldo na antiga tradição hebraica.
Mesmo no Novo Testamento, as referências à concepção de morte e sofrimento necessários para Jesus são tão parcas, tão precárias, que causa estranheza a alguns pesquisadores mais atentos. Giuseppe Segalla, por exemplo, professor de Novo Testamento numa faculdade italiana de Teologia, admite que “a escassa utilização do tema suscita um problema real”, e ainda afirma: “Francamente, a gente deveria esperar um recurso mais freqüente a esses cânticos [de sofrimento necessário] e de caráter mais claramente teológico.” O também acadêmico Gerd Theissen, professor de Novo Testamento na Universidade de Heidelberg, mostra-se igualmente admirado pelo não aproveitamento nos Evangelhos da estória do servo sofredor do Dêutero-Isaías: “É espantoso o fato de alguns motivos do Antigo Testamento não terem sido aproveitados [no relato da paixão].” A Tradução Ecumênica da Bíblia também confessa sua perplexidade ante a inexistência nos Evangelhos de alguma alusão ao servo sofredor do Dêutero-Isaías: “É impressionante que a narrativa da paixão não contenha, na origem, nenhuma referência explícita à descrição do servo de Javé conforme Is53.” Já a pesquisadora Morna D. Hooker é mais objetiva, e simplesmente nega a presença de qualquer “cristologia do servo sofredor” em todo o Novo Testamento.
Por que será que não há nos relatos da paixão de Cristo nenhuma menção a esse servo sofredor inventado pelo Dêutero-Isaías? Uma boa resposta é de que não há porque não existe…
Outra passagem do Antigo Testamento utilizada para se tentar justificar de alguma maneira o sofrimento e morte de Jesus é um trecho do livro do profeta Zacarias: “Eles contemplarão aquele a quem transpassaram” (Zc12:10). Os exegetas atuais vêem nesse transpassar a imagem do soldado romano espetando uma lança no flanco de Jesus, quando este pendia na cruz (cf. Jo19:34). Não vamos entrar aqui no mérito da diferença entre espetar e transpassar, mas apenas dizer que, novamente, não há nenhuma indicação da identidade desse “aquele”. E, mais uma vez, por incrível que pareça, esse trecho também não é de autoria do profeta Zacarias, mas sim igualmente de um “Dêutero-Zacarias”, inserido nesse livro sabe-se lá por quem nem quando. Só para constar: os capítulos 9 a 14 do livro de Zacarias, de autoria do “Dêutero”, apresentam um vocabulário e estilo muito diferentes dos capítulos 1 a 8, e aparece a convocação de um ataque militar à Grécia (cf. Zc9:13), que ainda estava engatinhando no cenário mundial ao tempo do verdadeiro Zacarias, no século VI a.C.
No Novo Testamento podemos destrinchar uma outra tentativa hercúlea de se comprovar a idéia de um sacrifício mortal previsto para Cristo, portanto de se justificar o injustificável. Essa bizarra bazófia aparece na Epístola aos Hebreus, (4) numa referência ao salmo 40:7, que faria alusão à encarnação de Cristo “num corpo destinado ao sacrifício”. Em Hb10:5,6 podemos ler: “Pelo que, ao entrar no mundo, diz: sacrifício e oferta não quiseste, mas corpo me preparaste; não te deleitaste em holocaustos e ofertas pelo pecado.” No entanto, o texto hebraico original do salmo referenciado diz textualmente: “Sacrifícios e ofertas não quiseste, abriste os meus ouvidos; holocaustos e ofertas pelo pecado, não os requeres (Sl40:7)”
Julio Trebolle, autor de A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã, explica que o texto original do Sl40:7 não utiliza o termo hebraico “corpo”, como tampouco a tradução grega do Antigo Testamento, a Septuaginta, a qual apresenta corretamente o termo ôtia (ouvidos) e não sōma (corpo). Deixemo-lo esclarecer como surgiu mais esse imbróglio: “A argumentação da carta aos Hebreus baseia-se num duplo erro de leitura: duplicação do ‘s’ (sigma – última letra da palavra anterior) e confusão da letra ‘m’ com as duas letras seguintes ‘ti’; esses erros deram como resultado que da leitura ‘s ôtia’ surgiu ‘s sōma’. Esse erro da carta aos Hebreus passou inclusive mais tarde para numerosos manuscritos do Saltério, pois os copistas cristãos davam mais autoridade à leitura da citação neotestamentária do que ao Saltério.” Em outras palavras, tentou-se confirmar a concepção de uma morte prevista para Jesus com a expressão “corpo me preparaste”, a qual surgiu de um escabroso erro de cópia nos manuscritos do Novo Testamento!
O erro de cópia mencionado acima, apesar de grosseiro, não é o mais acintoso. Se parece ter sido involuntário, o mesmo não se pode dizer da tradução do salmo 22 para o latim na versão da Vulgata, a qual serviu de base para todas as demais traduções nas línguas modernas. No original hebraico, o versículo 17 deste salmo diz o seguinte: “Um bando de malfeitores me envolve, como para retalhar minhas mãos e meus pés.” A expressão “como para retalhar” é a tradução correta do hebraico ke’erô, do verbo ’arah. Como se menciona aí mãos e pés na iminência de serem feridos, os tradutores ou revisores da Vulgata latina logo viram nisso uma ótima oportunidade de ajeitar o texto para uma profecia sobre a futura crucificação de Jesus. Assim, o correspondente trecho na Vulgata ficou dessa forma: “Um bando de malfeitores me envolve, eles furaram minhas mãos e meus pés.” Pronto! Mais uma profecia genuína para o sofrimento e morte previstos para Jesus Cristo!… Que o texto original nada tem a ver com Jesus atestam mais uma vez os próprios Evangelhos, visto que nenhum dos evangelistas se valeu dessa “profecia” para legitimar o sofrimento do Messias na cruz.
Uma outra tentativa ocorreu com a descrição, no livro de Deuteronômio, sobre a maldição a que fica sujeito quem é enforcado numa árvore (cf. Dt21:22,23). Como em hebraico a palavra que designa árvore – ’ets também significa madeiro, lenha, ou qualquer outra coisa feita de madeira, os sempre vigilantes algozes de Cristo viram nisso mais uma “profecia” escondida para sua morte na cruz. O termo correspondente em grego dessa palavra é usado no Novo Testamento também com vários outros sentidos, como “porretes” (Mt26:47), “tronco” (At16:24), “alicerce” (1Co3:12) e também “árvore” (Ap2:7; 22:2).
Outro empreendimento original foi a tradução ajeitada para o grego do Salmo 96:10, onde no início aparece em hebraico: “o senhor reina” (cf. Sl95:10). Os alvoroçados tradutores gregos transformaram essa frase em: “ele reina da árvore”, querendo dar a entender que Cristo já reinava sobre o mundo quando estava pregado na cruz… Felizmente, essas duas últimas “comprovações” de morte profetizada para Jesus se mostraram tão canhestras, que não tiveram vida muito longa.
As demais passagens assacadas ao Antigo Testamento como “provas” da morte necessária de Jesus na cruz são escárnios ao bom senso, insultos à qualquer consciência honesta, vitupérios lançados contra a vivacidade do espírito humano e ofensas dirigidas à inteligência.
Uma dessas quer ver na “serpente de bronze” que teria sido fixada numa haste por Moisés, e que seria capaz de curar quem olhasse para ela, a prefiguração de Cristo sendo erguido na cruz (cf. Nm21:8,9; Jo3:14). Bem fez o rei Ezequias – cujo nome significa “o Senhor fortaleceu” – que acabou estraçalhando a tal serpente (cf. 2Rs18:4).
A serpente sempre aparece em destaque nos muitos cultos idólatras de séculos passados, como um testemunho do afastamento voluntário da criatura em relação ao único Criador. A divindade negativa Tiamat era representada na literatura mesopotâmica como dragão e às vezes como uma serpente gigantesca. A tribo israelita de Dan, a primeira das doze a cair na idolatria e alvo de descrições pouco lisonjeiras no Antigo Testamento (cf. Jz18:30; 1Rs12:29; Jr8:16), tinha como símbolo a serpente. Baal era associado ao touro e por vezes à imagem de uma serpente No antigo Egito, o terrível deus Rá (Sol em egípcio) era mostrado com uma cabeça de falcão, sobre a qual havia um disco solar envolto por uma serpente. (5) A imagem de uma cobra enrolada numa haste como símbolo de cura é recorrente em toda a história antiga. Conforme explica Roselis von Sass em O Livro do Juízo Final, a serpente foi acrescentada ao bastão de Asklepios, o grande enteal da cura, por renegados sacerdotes de ídolos. Essa representação teve grande aceitação desde então, a ponto de os médicos de hoje usarem nos seus anéis o símbolo de Lúcifer…
Outra passagem “comprobatória” da morte imprescindível do Filho de Deus é a imagem de Jonas dentro do peixe. Jonas teria ficado três dias e três noites dentro de um grande peixe ou baleia enviado pelo Senhor para engoli-lo (cf. Jn2:1), e isso seria a prefiguração de Jesus sendo sepultado “no coração da terra por três dias e três noites” (Mt12:40), portanto um evento previamente delineado para o Filho de Deus. Será mesmo necessário refutar isso? Então a imagem mitológica de Jonas viajando num submarino-cetáceo é a antevisão de Jesus no sepulcro? O que uma coisa tem a ver com a outra? Nem matematicamente há coerência nisso, pois o túmulo de Jesus só foi visto vazio duas noites depois de sua morte, e não três. E Jonas também não ficou literalmente dentro de nenhum peixão, mas sim clamou por ajuda quando se encontrava mergulhado em grande aflição, imerso numa profusão de influências más: “Eu clamei ao Senhor no meio da minha tribulação, (…) clamei desde o ventre do Sheol [infernos] e Tu escutaste a minha voz” (Jn2:3). Ele se sentia dentro da barriga de um verdadeiro inferno, e não na de uma baleia.
Foi pena que Mateus ou os revisores do seu texto não tenham visto a passagem correspondente do Evangelho de Lucas, pois lá, sim, está claro a relação de Jonas com o Filho do Homem: “assim como Jonas foi um sinal para os ninivitas, assim também será o Filho do Homem para esta geração” (Lc11:30), uma profecia que seria cumprida naquelas pessoas durante a época do Juízo Final. Nada a ver com o sepultamento de Jesus.
Outro ponto em que os fundamentalistas cristãos se agarram, agora no Novo Testamento, para tentar justificar a doutrina de sofrimento e assassinato indispensáveis para Jesus é o capítulo 24 do Evangelho de Lucas. Nesse trecho aparecem inicialmente “dois varões com vestes resplandecentes” dizendo às duas mulheres que tinham acabado de encontrar vazio o sepulcro de Jesus que “importava que ele fosse entregue nas mãos dos pecadores, fosse crucificado e ressuscitasse no terceiro dia” (Lc24:7). Posteriormente, o Jesus ressuscitado repreende dois discípulos pela sua aparente descrença: “Porventura não convinha que o Cristo padecesse e entrasse em sua glória?” (Lc24:26). O versículo seguinte comprovaria essa necessidade de sofrimento suportado por Cristo: “E começando por Moisés, discorrendo por todos os profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras.” (Lc24:27).
Dessas passagens se inferiu então que o sofrimento de Jesus, sua crucificação e a suposta ressurreição no terceiro dia eram acontecimentos há muito previstos para o Messias, em “todas as Escrituras”. Tudo muito bem, se não fosse por um pequeno detalhe destoante: Em todo o Antigo Testamento não há um único versículo sequer a profetizar que o vindouro Messias teria de sofrer, morrer crucificado e ressuscitar no terceiro dia! Nada! O que existem são tentativas toscas de discernir em passagens isoladas do texto veterotestamentário algo que pudesse comprovar a necessidade do sofrimento e da morte violenta de Jesus. Quem inseriu essa passagem no Evangelho de Lucas colocou aí deliberadamente a expressão genérica “todas as Escrituras”, porque ele próprio não poderia dizer a que sofrimentos, afinal, se referem todas as Escrituras. Segundo o Dr. Gerd Theissen, “não há nenhum registro pré-Novo Testamento para a noção de um Messias sofredor.” Sim, messianismo e sofrimento sempre foram dois conceitos mutuamente excludentes na literatura hebraica.
No próprio Evangelho de Lucas, onde aparece essa expressão, há também uma indicação contrária a essa idéia, quando o bom ladrão, reconhecendo os efeitos da reciprocidade, se dirige ao outro para dizer que o sofrimento de ambos era justo, porém não o de Jesus: “Para nós é justo sofrermos, pois estamos recebendo o que merecemos, mas ele [Jesus] não fez nada de mal” (Lc23:41). Nenhum estudioso das Escrituras logrou atingir, nos milênios seguintes, a compreensão daquele simples ladrão na cruz, que devido a um discernimento claro, profundamente intuído, pôde remir seus pecados imediatamente e ingressar no Paraíso naquele mesmo dia, conforme prometido por Jesus. Com sua disposição interior totalmente renovada, ele de fato “nasceu de novo” ali, naquele momento, e pôde ingressar no reino espiritual, pois tão-somente com esse renascimento interior pode um pecador obter perdão de seus pecados e ascender até o reino do espírito. Não foi por outro motivo que Paulo exortou aos Efésios: “Precisais renovar-vos pela transformação espiritual de vossa mente” (Ef4:23). Para os demais, diz Jesus, fica vedado o acesso até lá: “Em verdade, em verdade te digo que aquele que não nascer de novo não pode ver o reino de Deus” (Jo3:3).
Será que nenhum cristão consegue entender que Jesus jamais, jamais teria rogado no Getsêmani para que o cálice do sofrimento lhe fosse desviado se sua morte na cruz fosse um sacrifício necessário?… Mas ele sabia que aquele sofrimento todo não precisava existir, que era uma conseqüência direta da má vontade humana, e por isso rogou ao Pai: “Abba!, suplicava ele. Tudo te é possível; afasta de mim este cálice!” (Mc14:36).
A doutrina do sofrimento e morte previstos para Jesus, o tenebroso dogma da “expiação vicária” (quando uma outra vida é oferecida como remição em lugar daquele que pecou), é uma invenção posterior da doutrina cristã, inserida no Novo Testamento para legitimá-la. Cegados que foram pela adulação dos áulicos luciferianos, os cristãos de hoje têm a ousadia aterradora de imaginar que o onipotente Criador, Senhor de Todos os Mundos, teria enviado Seu Filho unigênito a essa Terra com a deliberada intenção de que fosse crucificado, para expiar assim o pecado da humanidade corrompida. Os pecadores teriam com isso oferecido a Deus o Seu Filho em sacrifício por seus próprios pecados...
Quão valiosos não deveriam ser então os seres humanos para Ele! Depois de terem rejeitado com um sorriso arrogante os auxílios trazidos pelos Precursores, depois de terem escarnecido de Seus profetas, de os terem apedrejado e matado, depois de terem transformado esse planeta num charco venenoso com sua vontade má, suas palavras maldosas e seus pensamentos pestilentos, depois de tudo isso, nada mais natural, segundo sua opinião, que Deus tenha oferecido Seu Filho em holocausto, para que ela, a humanidade tão importante, pudesse ser içada confortavelmente de sua cova espiritual já tão profunda, escavada por ela mesma diligentemente durante milênios e milênios.
É para se rir e chorar ao mesmo tempo.
Os cristãos parecem desconhecer que “os preceitos do Senhor são retos e alegram o coração” (Sl19:8). Qual deles, ainda vivo espiritualmente, poderia dizer com honestidade que seu coração se alegra com os sofrimentos e a morte horrível de Jesus? Ninguém, nesse tempo todo, deu ouvidos à advertência do Filho de Deus de que “quem se mantém contra o Filho não verá a vida, mas sobre ele permanece a Ira de Deus” (Jo3:36)?…
Parece que ninguém tampouco deu a devida importância a esse aviso tão claro de Jesus dirigido aos judeus, o povo eleito:
“Bem sei que sois descendência de Abraão, contudo procurais matar-me, porque minha Palavra não está em vós.”
(Jo8:37)
Contudo procurais matar-me… Pelo fato de a Palavra do Filho de Deus, a Palavra da Salvação, não ter encontrado eco no íntimo dos descendentes de Abraão, é que eles queriam matá-lo! Aqueles judeus não tinham mais a capacidade de assimilar a Palavra divina:
“Não sois capazes de escutar a minha Palavra.”
(Jo8:43)
Não eram capazes porque nada mais da Verdade perdurava em seus corações, e Jesus lhes falava justamente dela: “É porque digo a Verdade que não me acreditais” (Jo8:45). A quantos fariseus de hoje Jesus repetiria essa sentença?...
Jesus deixa claro que a intenção dos fariseus de assassiná-lo era algo abominável, e afirma que Abraão, a quem eles chamavam de pai, jamais faria isso:
“Se fôsseis filhos de Abraão, faríeis as obras de Abraão! Agora, porém, vós pretendeis matar-me, a mim, um homem que vos comunicou a Verdade que recebi de Deus. Isso não o fez Abraão!”
(Jo8:39,40)
Na seqüência, Jesus diz que o intuito deles em matá-lo provinha na verdade do diabo, que por ser assassino desde o princípio era o verdadeiro pai deles. Era, pois, desejo do diabo – nunca de Deus – que Jesus fosse morto:
“Se Deus fosse vosso pai, ter-me-íeis amor, pois é de Deus que eu saí e vim. (…) Vós tendes por pai o diabo, e quereis realizar os desejos de vosso pai. Ele foi assassino desde o princípio, e não esteve pela Verdade, porque nele não há Verdade.”
(Jo8:42,44)
Foi pelas mãos dos judeus daquele tempo, o povo eleito, que a humanidade inteira “negou o Santo e Justo, e matou o Autor da Vida” (At3:14,15). Com isso os seres humanos tornaram-se “traidores e assassinos do Justo” (cf. At7:52), “crucificado que foi por mãos de iníquos” (At2:23).
Aos verdadeiros cristãos, ainda capazes de refletir por si mesmos, bastaria se desvencilharem por apenas alguns instantes dos grilhões da fé cega para constatarem quão absurda, quão incrivelmente absurda é essa concepção da morte indispensável de Cristo. Aqui e ali ainda se vê alguns exemplos disso, reações de cristãos ainda vivos em si, inconformados com esse dogma abominável de um assassinato indispensável de Jesus:
A verdade é uma só: a morte de Jesus na cruz foi uma tragédia desmedida que não precisava ter acontecido; foi um crime bárbaro, hediondo. E tão pavoroso, por tratar-se do Filho de Deus, que só mesmo uma humanidade apodrecida na alma seria capaz de consumá-lo. Assim, a humanidade, que já vinha pecando abertamente contra seu Criador há milênios, com o assassinato de Jesus sobrecarregou-se com uma nova culpa, de cuja amplitude ela nunca poderá inteirar-se totalmente. Todos os crimes praticados pela raça humana em toda sua existência de milhões de anos, juntos, não perfazem sequer uma sombra do ignominioso ato praticado contra o Filho de Deus em seu invólucro terreno. Não se igualam, em ignomínia, a um único espinho cravado na testa de Jesus Cristo, quando foi por ela coroado após lhe ter transmitido com todo Amor do mundo sua Palavra Sagrada.
“Está consumado!” (Jo19:30), foram as últimas palavras de Jesus na cruz. A gravidade que essas palavras encerram para a humanidade, ninguém por certo ainda pôde intuir.
Os seres humanos assassinaram o Filho de Deus! Aquele que veio lhes trazer a possibilidade de salvação através da sua Palavra! Essa é a verdade! E o peso dessa culpa descomunal recai integralmente sobre a humanidade agora, na época do Juízo, que com o ato da crucificação colocou-se resolutamente ao lado das trevas, em sua luta final contra a Luz. “A Luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a Luz; porque as suas obras eram más” (Jo3:19). A humanidade preferiu Barrabás a Jesus, escolheu Lúcifer como seu senhor e rejeitou o próprio Criador. Essa decisão, fruto do livre-arbítrio, selou o destino dos seres humanos.
Jesus, o Amor de Deus, foi crucificado. A Palavra de Deus que ecoou pela Terra foi silenciada. Com cravos foram perfurados as mãos e os pés do único que “tudo tem feito bem” (Mc7:37). Esse pesadelo inacreditável abalou profundamente os discípulos, de uma maneira tal que nem podemos imaginar. Quando conseguiu se recompor, Pedro acusou os judeus de terem agido assim “por ignorância” (At3:17), e reiterou seu repúdio com acusações recorrentes de assassinato: “Este Jesus, que vós crucificastes (…); vós o matastes, pregando-o numa cruz (…); aquele que conduz à vida, vós o matastes (…); Jesus Cristo, o Nazareno, a quem vós crucificastes (…); eles o mataram, suspendendo-o no lenho da cruz” (At2:36,23; 3:15; 4:10; 10:39). Seu amigo Paulo, por sua vez, foi ainda mais veemente ao informar os Tessalonicenses que “a morte dos profetas e do Senhor Jesus não agradaram a Deus” (cf. 1Ts2:15), e que, por causa disso, “a ira de Deus está prestes a cair sobre eles [os autores]” (1Ts2:16).
Essa declaração do apóstolo Paulo deve, inclusive, ter acalmado os nervos dos gregos de Tessalônica (atual Thessalonike), antiga capital romana da Macedônia, fundada em 300 a.C. no norte da Grécia, pois naquelas comunidades helenistas Jesus era conhecido como o theios anēr – homem divino – expressão já utilizada por Homero em seus poemas e também por Platão. O theios anēr Jesus era para eles um herói divino e milagreiro, cuja morte na cruz fora somente um final incompreensível, verdadeira “loucura para os pagãos” (1Co1:23). Sim, uma completa e tresvairada loucura, incompreensível para qualquer ser pensante, pagão ou não, daquela época e também da atual, pois a crucificação tinha um caráter tão humilhante e degradante, era tão cruel e horrenda, que se destinava apenas a escravos amotinados, criminosos notórios, rebeldes e revolucionários, não podendo sequer ser aplicada a cidadãos romanos, aos quais não era permitido nem mesmo açoitar. Romanos culpados de algum crime eram executados à espada. A pena horrorizava gregos e romanos cultos, pois ainda era antecedida de uma flagelação para enfraquecer a resistência do condenado, tal como fez Pilatos em relação a Jesus (cf. Mt27:26). Flávio Josefo conta que em certas épocas se podiam ver nas estradas romanas extensas fileiras de cruzes nas margens, com os corpos crucificados de insurretos a servir de exemplo aos transeuntes. Segundo seu relato, as colinas ao redor de Jerusalém chegaram a ser totalmente desmatadas para se obter a madeira necessária para a confecção das cruzes. O próprio local do Gólgota ficava ao lado de uma estrada importante, para que todo mundo pudesse ver o que acontecia a quem desafiava a lei romana. A prática da crucificação, possivelmente adotada dos antigos fenícios, só foi abolida no Império Romano durante o reinado de Constantino, no século IV da nossa era.
Os pagãos de todos os tempos, que não se encontravam tolhidos pela crença cega cristã, jamais puderam aceitar voluntariamente nenhuma “teologia da cruz”. Para eles isso sempre foi mesmo uma grande loucura, desde priscas eras até a idade moderna. Um exemplo: durante as infrutíferas tentativas de evangelizar o Japão, o governo daquele país publicou um édito, no ano de 1614, no qual acusava os cristãos de “disseminar uma lei maligna e depor a verdade”, citando o apego dos missionários à cruz como indicativo de que aprovavam atos criminosos…
Um milênio e meio antes vemos uma atitude similar em Estevão, o primeiro mártir do Cristianismo e sem dúvida um dos mais corajosos. Estevão nunca encarou a morte de Cristo como um evento necessário, e declarou prontamente aos integrantes do Sinédrio, o tribunal judeu: “Qual dos profetas vossos pais não perseguiram? Eles chegaram a matar os que anunciavam de antemão a vinda do Justo, este mesmo que agora traístes e assassinastes!” (At7:52). Portanto, segundo Estevão o Justo foi traído e assassinado. Foi, pois, no dizer de Estevão, vítima de um assassinato!...
Realmente, só mesmo a mais ilimitada arrogância, aconchavada com a mais mórbida auto-ilusão, ambas acobertadas pela mais rija indolência espiritual, podem afastar para longe da consciência cristã as evidências nítidas, constantes nos próprios Evangelhos, de que a morte de Jesus foi um ato contrário à Vontade de Deus. Um despertar para a realidade pode eventualmente surgir da análise, sem idéias pré-concebidas, de alguns aspectos referentes à atuação de Judas Iscariotes: (6)
Confrontados com a incrível perfídia de Judas, alguns estudiosos se consolam mutuamente dizendo que a “psicologia dele permanece um mistério”, e que sua traição faz parte de um “misterioso desígnio divino”. Na realidade, não há mistério algum. A traição de Judas foi o que toda traição é: um ato da mais baixa vilania e covardia. E sendo praticada contra o Filho de Deus só poderia ser mesmo obra das trevas, conforme comprova esse comentário de Jesus dirigido aos chefes dos sacerdotes e da guarda do templo no momento em que vieram prendê-lo: “Esta é a vossa hora e o poder das trevas” (Lc22:53).
O príncipe dessas trevas, Lúcifer, acercou-se ainda uma vez de Jesus quando este agonizava na cruz. Foi no momento em que ele se assustou e bradou: “Meu Pai, por que me abandonaste?” A essas palavras o tenebroso desapareceu, e Jesus viu diante de si filas intermináveis de auxiliadores luminosos. Agora, mais uma pergunta: Por que Jesus teria lançado esse apelo se a sua morte na cruz era um acontecimento desejado por Deus? Alguém acredita mesmo que naquela hora ele demonstrou dúvidas quanto aos desígnios de seu Pai?…
A suposição pueril, presunçosa, arrogante, estúpida mesmo, de uma morte necessária de Jesus não resiste a uma análise imparcial. Além da asquerosa traição de Judas Iscariotes, a quem “melhor seria não haver nascido” (Mc14:21), e que por causa do seu crime “se transviou do apostolado” (At1:25), ainda outros fatos demonstram a incoerência dessa idéia grotesca de uma morte prevista para o Filho de Deus.
José de Arimatéia, por exemplo, era um “membro respeitável do Sinédrio” (Mc15:43), mas era igualmente “homem bom e justo, que não tinha concordado com o desígnio e a ação dos outros” (Lc23:50,51). Esse José, então, justamente por ser homem bom e justo, não havia concordado com as intenções malévolas dos outros integrantes do Sinédrio, que “procuravam um falso testemunho contra Jesus para fazê-lo condenar à morte” (Mt26:59). Ora, os adjetivos que designam José de Arimatéia teriam de ser, pois, exatamente o inverso: “mau e injusto”, caso a morte de Jesus fosse, de fato, um evento desejado e previsto.
A própria mulher de Pilatos ainda tentou, no último instante, dissuadir o prefeito romano de condenar Jesus por pressão dos judeus. Quando Pilatos estava no tribunal, perguntando ao povo se queriam libertar Barrabás ou Jesus, ela mandou dizer-lhe: “Não te envolvas com esse justo, porque hoje, em sonho, muito sofri por teu respeito” (Mt27:19). Infelizmente, a premonição onírica da mulher de que Jesus era inocente, e a conseqüente advertência que fez chegar ao seu marido, visto não se tratar de um réu comum, não surtiram efeito.
Pilatos agiu como se não tivesse outra alternativa. Na tradição primitiva da Igreja ele foi até transformado em santo posteriormente, permanecendo como tal na Igreja Etíope. São Pilatos… Um santo sempre pronto a fazer o que era certo, desde que não lhe trouxesse prejuízos políticos. Sua atitude de lavar as mãos em sinal de isenção fez com que o julgamento perdesse sua formalidade segundo o direito romano, pois nesse caso o povo passava a ser o juiz supremo, com exclusão da figura do Estado. Esta é a razão de não haver nenhuma menção ao processo de Jesus nos registros romanos. Para o Império Romano o julgamento dele simplesmente não existiu.
Em sua Antiguidades Judaicas, Flávio Josefo confirma que Jesus foi condenado por pressão das autoridades religiosas: “Quando Pilatos, por sugestão dos principais homens entre nós, condenou-o à cruz, aqueles que o amavam não o abandonaram de início.” Essa obra de Flávio Josefo, composta de vinte volumes e muito bem conceituada até hoje, narra toda a história do povo judeu até a sedição final contra Roma, que terminou com a destruição de Jerusalém, em 70 d.C.
Nos textos de Flávio Josefo e nos Evangelhos vemos nitidamente que nenhuma das pessoas próximas ao Mestre se mostrou conformada com sua morte. Quando, depois do assassinato na cruz, Jesus apareceu aos dois discípulos no caminho de Emaús, localidade situada a onze quilômetros de Jerusalém, e lhes perguntou sobre o que falavam, estes “pararam entristecidos” (Lc24:17), e responderam que estavam assim devido à odienta crucificação perpetrada pelos dignitários religiosos: “Os nossos sumos-sacerdotes e os nossos magistrados o entregaram para ser condenado à morte e o crucificaram” (Lc24:20). Esses dois discípulos não estavam preparados para a morte de Jesus e nem a esperavam. Muito pelo contrário. Estavam entristecidos, abatidos ao extremo com o infausto acontecimento. Nem a eles, nem a nenhum dos outros seguidores de Jesus daquela época acorrera a idéia de uma morte prevista e necessária para o Messias, “conforme as Escrituras”… Quando Jesus foi arrancado brutalmente de seu convívio e morto pouco depois de uma forma tão horrorosa, eles todos ficaram estupefatos, atônitos, completamente transtornados. Arrasados, viram o chão abrir-se sob seus pés.
Contudo, fechando obstinadamente os olhos a todas essas evidências de um assassínio da mais baixa espécie, abafando a voz de sua intuição tal como fez Pilatos, que no começo até “estava decidido a soltá-lo” (At3:13) pois “bem sabia que eles haviam entregado Jesus por inveja” (Mt27:18), muitos cristãos gostam de citar especialmente o versículo a seguir, como prova de que Jesus desceu à Terra com a deliberada intenção de se deixar crucificar:
“Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o Seu Filho unigênito, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna.”
(Jo3:16)
Esses fiéis acham que o “dar” que aparece aí tem o mesmo significado de “mandar Seu Filho para a morte.” Nada poderia estar mais terrivelmente longe da verdade.
O sentido correto é: o Amor do Criador é tão imenso, tão incomensurável, que Ele separou uma parte de Si mesmo e a enviou ao meio dos seres humanos terrenos, que se haviam transviado totalmente por culpa própria, com a finalidade de fazê-los retomar o caminho certo pela observância de Sua Palavra, para que mesmo essas criaturas tão insignificantes não precisassem se perder, como efeito final e automático das leis da Criação. Foi este o verdadeiro, o único e grande sacrifício de Amor do Pai celeste, que “não quer que pereça nenhum destes pequeninos” (Mt18:14). Foi esta a legítima e única graça oferecida por Deus-Pai aos seres humanos, por intermédio de Seu Filho: a “graça de Deus que vos foi concedida em Cristo Jesus” (1Co1:4), que consiste na nova possibilidade de salvação, da qual eles já haviam se excluído por inteiro.
Jesus suportou todo o sofrimento inenarrável das torturas e a pavorosa morte na cruz para com isso deixar claro quão sério, quão imensamente sério era para a humanidade seguir os preceitos contidos em sua Palavra, única possibilidade de escapar da condenação: “Pensai naquele que sofreu da parte dos pecadores tal oposição contra si, a fim de não vos deixardes desacorçoar pelo desânimo” (Hb12:3); “Cristo também padeceu por vós, deixando-vos o exemplo, para que sigais os seus passos” (1Pe2:21).
A crucificação de Jesus Cristo foi o sinal mais drástico que poderia ser dado sobre a necessidade absoluta, premente, de integração do ser humano à Palavra Salvadora, para que este não continuasse a pecar e, assim, ainda pudesse ser salvo. Seu “precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula” (1Pe1:19) impresso na cruz foi o selo de sua convicção, a marca da gravidade da resolução a ser tomada pelos seres humanos: viver ou não segundo sua Palavra salvadora. Com esse ato extremo ele sobrepujou as trevas: “Eu venci o mundo” (Jo16:33), proclamou ele diante dos discípulos.
O verdadeiro significado da morte de Jesus, da forma como ocorreu, deveria dar mais o que pensar aos cristãos.
Podemos dizer que em seu imenso amor Jesus se mostrou disposto, sim, a “dar sua vida em resgate de muitos” (Mt20:28; Mc10:45). Em resgate de muitos, bem entendido, e não em resgate de “todos”, pois quem não se mostrasse disposto a viver estritamente segundo seus ensinamentos jamais poderia ser salvo. A salvação estaria reservada, única e exclusivamente, àqueles que se tornassem “consagrados pela Verdade” (Jo17:19), através da observância irrestrita da “Verdade que está em Jesus” (Ef4:21), que era sua Palavra Sagrada, a Palavra da Verdade. É este o único caminho aberto pelo Salvador para o perdão dos pecados. E é neste sentido que se deve entender essas palavras do Salvador:
“Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos. Vós sois meus amigos, se praticais o que vos mando.”
(Jo15:13,14)
Seremos amigos do Senhor Jesus, por quem ele se dispôs a dar sua vida, se praticarmos o que ele nos ordenou. Somente assim seremos seus amigos! Essas palavras são, pois, suficientemente claras e categóricas, a ponto de não se poder sofismar aí sobre nada. O mínimo que se poderia esperar dos cristãos depois da morte de Jesus é que estes, em obediência à Lei do Equilíbrio, se esforçassem em viver segundo seus ensinamentos. Outra coisa não era de se esperar deles. No entanto…
Quando João diz que “Deus enviou seu Filho unigênito ao mundo, para vivermos por meio dele” (1Jo4:9), fica então estabelecido que só poderemos alcançar a vida eterna se vivermos “por meio de Cristo”, ou seja, se vivermos segundo sua Palavra, que é ele próprio. É esse também o sentido dessa sentença de Jesus: “Permanecei em mim, e eu permanecerei em vós” (Jo15:4).
A crucificação de Cristo, o Amor de Deus encarnado, jamais poderia reconciliar o Criador com Suas criaturas. Nunca. Como os cristãos podem ser tão cegos? Como alguém ainda pode acreditar em tamanho despautério?… Como, pergunto, a escuridão que cobriu toda aquela região no dia da crucificação, do meio-dia às três horas da tarde, e o terremoto que sacudiu violentamente a terra, a ponto de partir as rochas ao meio (cf. Mt27:45,51), podem ter sido sinais de uma reconciliação divina? Como?... Por que então “todas as multidões reunidas para este espetáculo, vendo o que havia acontecido, retiraram-se a lamentar, batendo nos peitos” (Lc23:48)?... Essa cena não dá o que pensar? Como alguém ainda pode ver no véu do Santuário rasgado de alto a baixo, no momento da morte do Filho de Deus, o sinal de uma reaproximação da divindade com a raça humana? Pois é exatamente o inverso! O inverso!
Que estes prestem bem atenção nesse extrato do livro profético judaico Testamento dos Doze Patriarcas, escrito entre 137 e 107 a.C., encontrado junto aos Manuscritos do Mar Morto, e tirem suas próprias conclusões: “Um homem que renovará a Lei pela força do Altíssimo será para vós um corruptor, e finalmente será morto em meio ao ódio. Em nenhum momento será reconhecida a sua dignidade; assim permitireis que o sangue inocente recaia sobre vossa cabeça. (…) O véu do Templo rasgar-se-á, de sorte a não mais ocultar os vossos opróbrios.”
Veremos mais à frente que o capítulo final do Evangelho de Marcos foi alterado e mutilado já no início da era cristã; contudo, um dos antigos manuscritos que sobreviveram apresenta uma versão desse capítulo acrescido de uma significativa sentença atribuída a Jesus. O leitor atente bem, mais uma vez, às palavras dessa sentença perdida: “Eu fui entregue à morte por aqueles que pecaram, a fim de que se convertessem à Verdade, e para que não pequem mais, a fim de que recebam a herança da glória de justiça espiritual e incorruptível que está no céu.”
Sobre a imensa gravidade do crime praticado contra Jesus, Paulo disse aos Coríntios: “A sabedoria que Deus preordenou desde a eternidade não foi conhecida por nenhum dos poderosos deste século, porque se a tivessem conhecido jamais teriam crucificado o Senhor da Glória” (1Co2:7,8). Portanto, afirma Paulo, se os poderosos daquela época tivessem algum conhecimento da sabedoria de Deus jamais teriam crucificado Jesus! Jamais! Alguém pode entender isso em toda sua gravidade? Essas palavras do apóstolo não dão o que pensar aos cristãos?… Não retumbam em seus ouvidos como uma advertência gravíssima? Como podem ainda atrever-se a afirmar que Jesus morreu por eles e por toda a humanidade?
A morte de Jesus na cruz foi o maior crime de todos os tempos, cujo retorno recai agora com ímpeto avassalador sobre essa mesma humanidade. O acerto de contas do Gólgota chegou: “É o Dia da Vingança do Senhor, ano de desforra para a causa de Sião”(Is34:8). Só o saber de que uma tal concepção será esmigalhada no Juízo Final ainda concede algum alívio e consolo. O medo brotará agora nas almas das arrogantes criaturas. Indescritível em seu horror, extinguirá para sempre a vaidade nas hostes cristãs.
É, sim, absolutamente certo dizer que o Redentor veio ao mundo para salvar os pecadores, e também que morreu devido à nossa culpa: “Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores” (1Tm1:15); “Jesus, Senhor nosso, foi entregue por causa das nossas faltas” (Rm4:25); “Cristo morreu por nossos pecados” (1Co15:3). Ele morreu, portanto, devido aos nossos pecados, por causa da nossa culpa! Algo que não precisava e não devia acontecer! Jesus morreu, sim, devido à culpa da humanidade, contudo ele não morreu pela humanidade! Nunca!
Só mesmo a portentosa presunção humana, cuja magnitude roça o infinito, pôde conceber uma idéia tão infame como essa, de que a expiação de seu lastro de pecados pudesse se dar através do assassinato de um Filho de Deus. Todavia, há ainda uma passagem do Evangelho de Lucas que desmonta de vez essa teoria insustentável de uma morte prevista para Jesus. Basta que a respectiva pessoa, cuja intuição não esteja totalmente soterrada, atente um pouco, somente um pouco, nessas palavras da inavaliável intercessão de Cristo enquanto agonizava na cruz: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem!” (Lc23:34).